terça-feira, 13 de junho de 2017

O HOMEM



A praça estava inquieta naquela manhã de sábado. Balões de diversas cores, tamanhos e formatos eram ofertados por ambulantes que aproveitavam o grande número de crianças para faturarem um extra. Próximo ao coreto, um grupo de adolescentes cantava ao som do violão tocado por um deles. Divergiam na escolha do repertório e circundavam o instrumentista como se cada um quisesse fazer valer a sua preferência. Embora teriam definido a canção, nunca a cantavam integralmente devido a não saberem a letra ou algum componente errar na execução. Em uma das extremidades, um posto da polícia militar atendia a pequenas ocorrência e fornecia orientação ao público. Crianças eram conduzidas em velotróis, bicicletas, sob a supervisão dos pais e ao centro, bem próximo no corredor dos coqueiros, um terminal fora instalado e receberia hoje as últimas manifestações da eleição que definiria o nome o gorila, recém chegado na capital. Além desse batismo, seria inaugurada também a moradia totalmente reformada e adaptada às necessidades do animal.

Seis chafarizes, distribuídos em a pequena fonte, emitiam fortes jatos que quase alcançavam a copas das árvores. As crianças entretinham-se, enquanto esperavam na fila de votação, com apostas em qual jato alcançaria maior altitude. Torciam, barulhentas, observando o lançamento ininterrupto das águas e o declínio destas ao ponto de partida, formando borbulhas e promovendo um frescor aos mais próximo da fonte. Os pais se entreolhavam, cada qual torcendo ponderadamente por sua prole. Divertiam-se, meneando cabeça, invejosos das alegrias dos pequenos. Uniformes de coelhinha, macaquinha e demais personagens da fauna desfilavam em vistosas jovens, as quais distribuíam brindes e folhetos comerciais aos eleitores. O direito ao voto estava limitado à idade máxima de quatorze anos, embora alguns adultos tentassem convencer ao mesário em também opinar, bem como tentavam influenciar suas crianças em suas escolhas, causando, portanto, pequenos conflitos entre filhos convictos de suas opiniões No entanto, a maioria que transitava a praça naquela manhã teria o mesmo objetivo: escolher o nome para o novo hóspede do zoológico municipal e conhecer a maquete da nova moradia adaptada para o célebre antropóide.

A este pleito incorporou Cândido, um maltrapilho garoto que agora ocupava o penúltimo lugar na fila. Era a sua primeira vez como eleitor e, logo nas primeiras horas do dia, já estava de pé. Passou rapidamente água no rosto, calçou suas chinelas e foi à padaria do Senhor Zeca, na intenção de faturar o desjejum para seguir caminho. Acostumado à política do velho empresário, tomou da vassoura que ficava a um compartimento externo à padaria e varreu toda a calçada ao redor, colhendo o lixo e depositando-o ao pé do viaduto da Rua dos Tamóios onde dividia a estadia com três companheiros. À noitinha, com o tráfego já mais disperso, lançaria as sacolas, que já anunciavam mau cheiro, ao rio que dividia a avenida, conforme orientação do dono da padaria. Após a faxina, arranjou entre as calçadas as placas que anunciavam as ofertas do dia e ajeitou duas mesinhas utilizadas para lanches rápidos.

- Bom dia, seu Zeca, - apresentou-se ao senhor barrigudo e sério, vestido de surrado avental, que dava algumas ordens atrás do balcão.

Recebeu o cumprimento em forma de um copo pequeno de café com leite e um pão aparentemente de véspera. Sorvia e mastigava sofregamente a oferenda, ou o seu pagamento pela tarefa prestada. Enquanto comia, seus olhinhos miúdos e vivos procuraram a televisão que dizia as notícias da manhã. O aparelho fora instalado a um canto próximo ao caixa, e só recebia admiradores quando exibia os programas de esportes, geralmente ao meio dia, apesar de permanecer em funcionamento durante todo o expediente do estabelecimento. Um plantão anunciava já os primeiros movimentos na praça e os preparativos para o último dia para se definir a identidade do macaco. Uma sinopse sobre a origem do protagonista foi exibida e logo após um especialista em zootecnia fornecia rápidas explicações sobre a origem e manias do astro. Cândido mastigava com os olhos a matéria, atento a qualquer som ou imagem emitida pelo televisor, enquanto levava o copo mecanicamente à boca aberta, mal sentido o previsível paladar daquela refeição matinal.
- Vou lá votar!... –Disse entusiasmado, mesmo pra si, porque o velho dava de ombros sempre que o menino dizia algo. Desta vez, entretanto, soltou apenas um grunhido, praguejando algo que dava a entender que o povo não tinha o que fazer, para querer votar em macaco. – Onde já se viu... lamentava-se, enquanto organizava algumas moedas na gaveta do caixa.
A ansiosa criança depositou o copo embaçado sobre o balcão, balbuciou um rápido “Deus te aumente, seu Zeca” como agradecimento ao o velho, o qual respondeu descaradamente um mecânico amém, talvez esquecido da limpeza realizada pelo garoto. Este dirigiu-se, lépido, ao seu abrigo. Lá chegando, retirou de uma sacola plástica esfarrapada um retrato. Beijou-o demoradamente após mirar a desbotada fotografia que exibia quatro sorridentes rostos: uma mulher e três crianças. Os  cabelos desalinhados, o cenário ao fundo da imagem, as roupas puídas e o sorriso sofrido denunciavam presumível pobreza do elenco. Seguro firmemente pelas mãos de uma dessas crianças, um animal de pelúcia, de cor negra, arregalava os olhos para a máquina fotográfica, roubando a cena.
O tal brinquedo estaria nas mãos de Cândido, herdado como presente de papai Noel, segundo a história narrada por sua mãe naquela noite de natal. Moravam em um barraco dentre muitos erguidos no morro, localizado na zona sul da capital. A mãe se dividia entre duas patroas, servindo a uma nas tarefas culinárias e outra na limpeza da casa. Na ocasião fizera a promessa aos filhos que se mantivessem o bom comportamento em casa e que ajudassem nas tarefas diárias, receberiam uma lembrança quando viesse o Natal, doada pelo Papai Noel. Embalada pela doce mentira, prometeu que escreveria uma carta, ainda que não soubesse lidar com as letras, ao natalino velhinho. Relataria o comportamento de seus três filhos, conseguindo, como recompensa, um presente para cada um deles.
O planejamento até que foi seguido com sucesso. Os filhos, entre um briga e outra, assistiam à tevê pelas manhãs e punham em ordem a casa à tarde. Variavelmente ainda sobrava um tempo para brincadeiras no quintal. A ~mO álcool e a droga foram mais convincentes e a incerteza apoderou-se do desconfiado pai, o qual não assumiu qualquer vínculo com o recém nascido. A mãe deu-lhe o nome de Cândido, em homenagem ao avô que possuía o mesmo nome e não estaria presente para ver aquela candura de olhos vivos, mexendo os braços e pernas desordenadamente. Um ano se passou e outro namorado apareceu e lhe trouxe uma filha, abandonando-as, a pequena ainda lactente. O terceiro veio com promessas mais concretas, embora não as cumprissem. Trouxe também consigo os vícios com álcool e drogas. Um ano depois, outro rebento, compondo a família que posava naquela fotografia. Maria então trabalhava dia e noite para sustentar os três filhos com idade de dez, sete e seis anos respectivamente, além de um amasiado ocioso.
Todos essas mazelas não foram, portanto, suficientes para fazê-la desistir de seu intento. Namorou por um ano um gorila de pelúcia que jazia em um dos em quartos que fazia a limpeza. O brinquedo já fora lançado a todos os cantos possíveis da casa, inclusive, em partidas de futebol realizadas pelo seu proprietário, na posição sofrida de goleiro, recebendo violentos chutes da criança. Era violentamente lançado contra a parede do quarto e ás vezes da garagem onde também ocorriam as partidas. A pelúcia antes reluzente como a graúna, já aparecia desbotada para um presente natalino. Persistente, Maria colocou o pequeno macaco no cesto de roupas para lavar, para depois fazer o pedido à patroa. Foi-lhe dado a encomenda e algumas roupas usadas. Regozijava-se: estava feita a compra para o Natal! Ajustou o boneco e arrumou as peças de roupas. O macaco foi para o mais velho, o Cândido. O demais donativos foram para os menores. Na véspera, orientados pela mãe, cada um pendurou na janela, amarrando à grade sem vidros do único quarto, um par de meias. Cândido temeu que o Papai Noel censurasse o tecido puído e úmido que era sua meia presa à grade. A algazarra veio ao despertar, quanto perceberam que havia um embrulho próximo a cada um. Houve confusão ao identificar os nomes mal inscritos nos amassados embrulhos e mãe teve que intervir, fingindo surpresa. Aberto os presentes, olhares curiosos foram lançados entre eles, comparando qual o melhor. Cândido causou inveja aos demais, pulando incontrolável com o seu inerte gorila, apertando sua pelúcia gasta, provocando profundos sulcos na barriga e deixando-o de olhos arregalados. Uma vizinha foi chamada para bater a foto. A mãe conteve uma dura lágrima, liberta por seu sólido e precavido coração.
À noite, cada qual vestiu sua roupa renovada e o proprietário do macaco não se cansava de interagir com ele, embora mais carinhoso que o seu anterior dono. Conversava com o inanimado animal, prometendo cuidados, abraçando e beijando-o. O marido veio, já com vestígios de festas e bebidas de outros natais. Um aroma vindo da pequena cozinha, denunciava o frango assado e maionese ordinariamente expostos sobre o fogão. Em oração, as crianças e a mãe em sintonia com a palavra sagrada, diziam a reza, respeitosos. O namorado balbuciava monossílabos embriagados. Agradeceram, todos, por aquela santa ceia.
Além dos três irmãos que dividiam os dois colchonetes estendidos ao chão, um brinquedo se aninhava aos braços do mais velho, o qual fazia as orações antes de dormir e fixava seus olhinhos nos olhos do novo amigo, talvez na intenção de receber resposta à sua prece. Prometia ao brinquedo que nunca o deixaria, por nada nesse mundo. Seriam unidos, todos eles que ali dormiam, por todas as suas vidas. Uma família.
As águas de janeiro vieram, impiedosas, lavando as promessas de Cândido. Uma noite, após três dias de chuva ininterrupta, a casa do vizinho logo acima da sua desmoronou, arrastando, como a um dominó, os três barracos construídos abaixo dela. Maria, preocupada com a chuva, ainda não teria pregado os olhos quando uma peça de madeira atingiu-lhe a cabeça, deixando-a desacordada. Sobreviveu até algumas horas antes de chegar ao hospital com o seu filho mais velho, ambos socorridos pelos bombeiros. Assim que o Cândido foi encaminhado aos serviços médicos de urgência, o coração materno deixou de bater. Foram enterrados os corpos da mãe e dos dois filhos menores e o namorado, desconsolado, assistira a tudo, cedendo entrevistas aos famintos microfones e câmeras. Seu vocabulário rudimentar fora exposto nos veículos de comunicação tanto nacionais como internacionais. A desgraça da família rendeu discussões em diversos veículos e organizações não governamentais. Não revelou o entrevistado, entretanto, que estaria em jogatinas e bebedeiras, drogas e similares no dia do desastre, tendo, como de costume, pernoitado fora do lar. Fotos dos destroços foram exibidas e leitores atentos poderiam visualizar, uma pelúcia, enlameada e de olhos esbugalhados, em meio aos detritos.

O menino acordou assustado com os vultos brancos, cheiro de álcool e óculos próximos de si. Gritou, chorou até ser acalmado por uma enfermeira. Após exames, foi encaminhado a uma assistente social e uma multidão já se aglomerava nos arredores do hospital. Profissionais vaidosos posavam para fotos e davam até entrevistas, enaltecendo o trabalho do serviços de saúde pública, seguidos por políticos que deixavam-se fotografar, exibindo-se, solícitos ao destino de Cândido.
O garoto deixou o hospital ainda com ferimentos, sendo conduzido pelo padrasto, que também exibia os dentes falhados aos disparos de flashes irradiados de todas as direções. Seguranças do hospital afastavam microfones içados ao menino, sequiosos de alguma fala do pequeno.
Duas semanas se passaram e a cabeça de Cândido ainda doía. Vizinhos freqüentavam a casa onde estavam alojados, orgulhosos do sobrevivente que se transformara em astro. Algumas emissoras seduziram seu padrasto e o menino concedera, a contragosto, entrevistas. Houve protestos por parte de entidades de proteção ao menor e a família de Cândido, agora reduzida a ele e o padrasto, fora indenizada e removida para um conjunto habitacional. A criança, portanto, sentia medo de dormir. Tomara verdadeiro pavor ao sono. Tentava rezar e engasgava-se nas palavras. Conseguia apenas perguntar pra si mesmo, porque que só ele acordara daquela noite. Onde estaria agora sua mãe, seus irmãos e seu amigo, o macaco. Sentia-se covarde por não poder protegê-lo, como prometido. Não conseguia, portanto, chorar.
A foto tirada no natal só foi revelada após a tragédia, com o advento da indenização e o porta retratos ficava na sala, acima da televisão, como única herança daquela família. Todos os holofotes já silenciaram e agora o menino era apenas um órfão a mais nas estatísticas. O numerário ofertado pelo governo fora dizimado em vícios já conhecidos do padrasto, em pouco menos de um semestre. Envolto em dívidas contraídas com o consumo de drogas, o responsável pela criança fora obrigado a deixar às pressas o barraco onde residia, levando consigo o garoto. Esse, precavido, tratou de confiscar a foto, dobrando-a cuidadosamente e alojando-a em um plástico. Escondeu-a dentro da cueca.
Durante o dia, trabalho. Tentava limpar os vidros de veículos vedados pelos semáforos, recebendo pragas de alguns motoristas e até safanões. À noite engraxava sapatos nos bares da cidade. Certa feita, um cliente cuspiu-lhe na cabeça enquanto lustrava-lhe sapato. Um outro fez um gesto obsceno, passando a mão entre o feixe da calça. Disse que o garoto era bonito. Cândido a nada respondia. Terminava o serviço, estendia as mãos e proferia um Deus que te aumente, retirando-se humilde. Fora alertado pelos colegas quanto a esses tipos noturnos. Uns inclusive narravam fatos assustadores, entre risadas e piadinhas. Parte do dinheiro recebido iria para o padrasto, que se definhava a olhos vistos. Guardava o outro em um esconderijo próximo, idealizando a compra de sua casinha. Alguém que freqüentava a boca de fumo informou que o padrasto havia sido encontrado morto em uma vala. Já outros diziam que fugiu novamente, devido à problemas na atividade, como consideravam o envolvimento com drogas.
O garoto, em sua vivência com entorpecentes, experimentou apenas o paninho umedecido com solventes, o qual abandonou, desinteressado. Não se prendia à vícios. Como não mais freqüentou escolas, procurava ler os jornais com os quais se cobria, embora não entendesse o contexto, lia as placas, anúncios e apreciava a companhia de adultos, onde sentia que aprendia palavras mais difíceis. A rua era sua madastra, embora mantivesse a esperança de que reencontraria sua família.
A fila já avançara e o calor ainda era intenso. Cândido ausentou-se para se lavar na bica e tomar daquela água fresca. Um policial aproximou-se dele, apreensivo. Voltou o rosto molhado para o soldado, cravando-lhe o olhos vivos e ouviu uma voz lá na vila:
-Ele vai votar também. Tá aqui na fila. Na minha frente...
O agente concordou, meneando respeitosamente a cabeça e continuou sua ronda, enquanto o garoto voltava para seu lugar na fila, sorrindo para a senhora que intercedera em seu favor, a qual também sorria. Algumas crianças observavam, intrigadas. Comparavam suas roupas àqueles farrapos que o menino vestia. Uma e outra mãe segurava o braços de seu filho, não deixando de acompanhar, melindrosas, os passos do solitário eleitor. A coelhinha veio distribuir brindes, acalorada e saltitante. Uma pequena multidão, agitada, se formou junto à ela. À todos deu um sorriso e um afago, com exceção de Cândido, do qual a sensual leporídea manteve considerável distância, talvez temendo manchar sua alva fantasia de pelúcia.
Estavam próximos ao painel que exibia a casa do gorila, onde slides eram transmitidos e alguém apresentava características da moradia. Após a reforma, tornara totalmente adaptada ao hóspede, e teria até uma cachoeira artificial. Cândido se controla para não pular de alegria, embora o coração o traísse, assim que visualizou a cachoeira que implantaram e o tamanho da reserva exibida pelo telão, tudo isso pertencia a seu amigo! E, quando deu conta de si, estava defronte ao monitor que exibia a imagem do macaco, negro e peludo, olhos grandes, pouco esbugalhados. O coração do menino disparou incontrolável, seus olhinhos cintilaram...”Como ele cresceu!” - Foi o que pensou.
Na seqüência, foi exibida a dieta do pop-star. Laranjas, maçãs, bananas e demais frutas eram servidas em horário rigorosamente estabelecidos. O posto médico para atendimento de urgência e acompanhamentos da saúde, nutrição, higiene. Sancionou a impressão segura a respeito da qualidade de vida do companheiro. Não passava fome. Sua barriga roncou, reclamando alimento, mas a alegria envolvia-a, saciando.
Finalmente era a sua vez. As pernas tremiam quando se viu frente ao terminal. A foto do animal estampada. Três opções de nome estavam exibidas e ele sorriu para tela. Sentia-se como se todas as luzes do mundo estivessem voltadas para si! A assistente fez menção de ajudá-lo, recebendo a recusa, de imediato Apertou o botão do meio onde o nome foi exibido: DADÁ. Pronto! Estava escolhido. Esfregou as mãos, satisfeito. Visualizou todas aqueças pessoas o aplaudindo, ovacionando. Vivas, urras, e fotos, muitas fotos, mais do que aquelas do hospital, registrando aquele evento do primeiro voto. Deixou orgulhoso o terminal, como um cidadão, afinal escolheu um nome para o seu amigão! Agora, se sentia realizado. Ele tinha casa, e nova! Tinha um nome!
Retornou feliz ao seu alojamento, atento às lixeiras instaladas nas portas de lanchonetes, na esperança de faturar resto de lanche porventura abandonado por alguém já enfarado. Não teve êxito dessa vez. Já no seu lar, ajustou os papelões e esticou os gravetos, na tentativa de descansar, estava potencialmente emocionado. Objetivou conciliar o sono, na tentativa de tapear a fome que já o incomodava. Relâmpagos cruzavam o ar e o céu tornava-se espesso. “Vai chover”, - pensou, procurando um canto em que molharia menos, caso suas previsões se confirmassem
 “Daqui a pouco o povo chega com o barulho. Aí já era... Estou feliz! Agora meu amigo com casa, poderia buscar sua mãe e irmãos, onde estivessem, para morarem todos juntos dele, naquele paraíso. Seu amigo aceitaria, é lógico”. Uma ponta de saudade apossou-se dele, ao lembrar-se da mãe e dos irmãos. “De certa forma, minha mãe que trouxe meu amigo. Ela disse que foi o Papai Noel, hoje sei que não foi, ele não existe... agora, meu amigo é famoso... Queria contar isso à minha mãe! Como ela faz falta!
 Os seus olhos miúdos lacrimejavam, lastimosos, embalados às lembranças. Sentia-se só. Não chorou, todavia.
Homem não chora”-concluiu.                                                                                                        



Frango Púbere

_ O que vai querer hoje pro almoço, Dona Bela? – disse a negra,  com uma das mãos segurando a colher de pau e a outra na cintura, aparentando um robusto bule- O "orégo" cabô e o “ai” tá quais no fim. – um suspiro dilatou suas já dilatadas proporções- Num gosto de cozinhá sem meus tempero.
Izabelle, a patroa, desconversou e foi para a sala de televisão. Desistira de ensinar à cozinheira sobre a nomenclatura dos ingredientes. Orégano soa melhor e mais saboroso que “orégo”... “Ai”... Senhor, que diabos seria isto?!? _Alho, Judite, A-lho!

A outra também dava de ombros. Engolia o “s” ao final das frases sem cerimônia. Uma luta inglória da patroa. Judite já viria temperada com o dicionário do interior de Minas Gerais e toda sua infinidade de substantivozinhos: cafezin, anguzin, franguin. Acostumada ao eterno calor da lenha que se mantêm independente de chamas, em seu interior, a negra não teve dificuldades em empregar-se na capital e, na cozinha, operava milagres com suas colheres de pau, conhecedora de temperos e ervas como ninguém. Prática com insumos, plural com o os cozidos e fritos, disponibilizava pratos com rapidez e qualidade impecáveis.

 Já a patroa apreciava os pratos da cozinheira, embora viesse sendo entupida de atrações onde consultores de culinária se portavam como reais alquimistas, ora ensinando a fritar ovos no vapor, ora inventando mirabolantes pratos de complexidade sem igual, quase sempre resultando em um magro palito com ervas e decoração de cremes a ser servido em rica louça. O tempero marcante seria a afetação.  Sim, seria o chic, o creme de la creme que seduzia a cada dia a patroa e seriam incansavelmente discutidos em roda de amigos, em jantares e coquetéis.

Izabelle, vez por outra, convocava à cozinheira à sala de televisão ou exibia um vídeo pelo celular para compartilhar uma ou outra exibição do gênero, esperançosa de que a matéria aguçasse o apetite desta, ansiando em metamorfosea-la em, quem sabe, em uma Cheff.  Ao que a outra sancionava, com as mãos na cintura e pano de prato ao ombro:

_Uai, Dona Bela. O moço tá ensinando fritar ovo?- Gracejava, exibindo a beiçola. – Num vi de tudo ainda nessa vida, meu pai... Quero saber se ele ensina botá ovo. Fritá já sei é muito!- concluiu, desta vez com ruidosa gargalhada, apressando-se em fiscalizar o feijão no fogo.

Ocorreu que renomado Cheff de cozinha, mineiro de parto e europeu de moradia há mais de vinte anos, visitaria o Brasil para um evento gastronômico, e, segundo a programação, viria meter sua colher aqui nas Minas Gerais, sua terra natal, provavelmente distante de suas lembranças. Corria aos quatro cantos que o mago das panelas exibiria, em feira gastronômioca no Minascentro,  o afamado “frango púbere”, prato de sua autoria consagrado em Paris. A produção não economizou na divulgação, onde chamadas eram anunciadas em vários meios de comunicação, fotos diversas do prato expostas de ângulos e tamanhos distintos e o nome em língua estrangeira “pulet pube” seduziria mais ainda os amantes da boa mesa. Isabelle se apressou em adquirir os limitados convites, ciente de que haveria apresentação dos pratos conforme anunciado. Ponderava que se a onda era repaginar o espaço gourmet, porque não repaginar também a tradicional Judite? Poderia não ser de tão mal. Ela aprenderia pratos requintados, oportunamente o nome dos ingredientes, e poderia fugir dos padrões mineiros de cozinhar. Algo mais apresentável, mais fino...

Nesse pensamente, tornou à cozinha, intencionada:

_Judite...
_Hum...
_Temos um programa amanhã, querida- disse arregalando os olhos puerilmente- Um evento com o Cheff Flavio Moss. – mirava a cozinheira que arregalava também os olhos.- Ele é brasileiro, daqui de Minas e mora na França há mais de vinte anos. Um guru em gastronomia, renomado consultor. Vai apresentar seu famoso prato “pulet pube”, dar oficinas e dicas para requintarmos nosso espaço gourmet! Prepare boa roupa para irmos.

A cozinheira franziu a testa. Queria saber o significado de Cheff e o nome do prato dito com biquinho. Isabelle explicou, procurando sintetizar e convencer a empregada em acompanhá-la. Temia preconceito dos convidados para futuras recepções por causa dos pratos regionais que servia em casa. E como os apreciava!  A outra assentiu em prestigiar o conterrâneo, afetado a gringo.

O evento iniciou com ligeiro atraso e elas se acomodaram nos primeiros lugares reservados à platéia onde se via câmeras ocupadas em transmitir ao vivo a apresentação para as redes de televisão e internet. O stand montado proporcionava a visão de uma bem equipada cozinha. Ao fundo, espécies de legumes graciosamente dispostos em cestas e cartaz informativo das propriedades nutricionais, plantio e origem destes. A lado, uma graciosa gaiola abrigava um frango de vistosas penas e carnes,  que se entretinha em bicar grãos. Serviria de exposição para o público onde uma moça explicava sobre o cultivo do animal titulo do prato apresentado, a alimentação, cultivo e tempo de abate. Sobre o balcão os insumos para o prato principal, já com outra ave similar,  já abatida e preparada para execução da apresentação. Judite observava a tudo: o amplo espaço e beleza do salão no Minascentro, embora estivesse por entender o porquê de tudo aquilo para cozinhar um simples frango.

Com efeito, o mago Moss apareceu sobre aplausos, agradeceu em francês e português, anunciou suas credenciais bem mais extensas que sua própria figura contida e miúda. Judite estranhou o pequeno, achou-o “prosa”. Cutucou a patroa que decifrou sua impressão.

- Não Ju.. ele não é pedante... São apenas trejeitos de sua terra...

Após palestra sobre tendências, novos temperos e afetadas ervas, o cheff elencou características do prato principal, o “pulet pube” como era conhecido em seu bistro, na França. Apresentou a ave reclusa, que deveria ser preparada ainda adolescente, sendo portanto mantida em cativeiro especial observadas as ações do clima e alimentação rigorosamente selecionada . O mestre iniciou por demonstrar em brilhosa tigela de inox a própria matéria prima limpa e desossada, de cor rosada e atraente. Temperou-o, enaltecendo cuidados e mesuras na quantidade ingrediente. Era um nanico cheio de modos, com passos comedidos e sinuosos, gestos das mãos um tanto melindrosas. Protestou contra uma das luzes de filmagem, afastando o câmera no ápice de sua afetação, alegando que até a inserção da luz poderia alterar o teor do prato. Judite assistia a tudo, incrédula. A cozinheira custava acreditar que ali ainda estavam, perfiladas e atenciosas, três assistentes além do cozinheiro para preparar uma simples galinha. Ficou ainda mais estarrecida quando da montagem do prato já pronto que resultou um pedaço ínfimo de carne compatível a uma rã, depositado no imenso prato de louça branca e ornado com galhos de alecrim, manjericão e um molho cor vinho circundava as bordas do prato. O arranjo, aspirando a obra de arte, parecia afugentar apetite dos presentes.  Foi sugerido espuma de batata inglesa para acompanhamento. Fez menção de gargalhar a cozinheira:

_Aquilo é uma perereca “atrupelada”, Dona Bela! -disse, sacudindo o peitoril em possível convulsão de riso.

O cheff olhou para seu público aguardando talvez aplausos e estes, incrédulos de que findava a apresentação aguardavam talvez a sobremesa. Pairava no ambiente a ausência de empatia com o anfitrião talvez pela impressão de complexidade ao mensurar os temperos, alguns já bem conhecidos em Minas, no entanto apresentado com nomes excêntricos e exagerada recomendação na utilização, o que confundiu os expectadores. E o titular do prato, praticamente canonizado pelo apresentador ao apresentá-lo, parecia o ter distanciado do povo, por ter sido exposto com algo como sacro, intocável. Uma palma soou tímida e solitária na terceira fila, e lá mesmo morreu, sem a companhia de outras. Buscando minimizar o desconforto, o guru do paladar cogitou por convidar um expectador para provar o alimento, e seus minúsculos olhos por trás do óculos pousaram em Judite, a qual levantou, após orientação proferida, entre os dentes, pela patroa.

_ Veja lá o que me apronta, Judite.. Por favor.

Ela foi conduzida por uma das assistentes ao pequeno palco e recebeu afago do Cheff. Foi lhe oferecido o prato que ela olhou com estranheza. Eis o frango púbere, acompanhado de espuma de batata...

- Vai sentir que está comendo faisão, mileide. Aqui em minas não tem... aproveita!

Ela abriu facilmente a boca em sorriso. Se já comera não sabia, mas desconhecia o tal do faisão. Gostou, entretanto, do mileide. Provou. O Cheff a mirava e sua expectativa era compartilhada com todos no local, com exceção da patroa que misturava aflição com o sentimento geral. Judite mastigava com motivação bovina. Encabulada, olhou ao derredor, viu temperos diversos. “Tem orégo”... Identificou, enquanto observava ramos de alecrim, coentro, tomilho e outras ervas. O odor aromático da cozinha cenográfica despertou-lhe desejo de interagir com as panelas. Ao desviar os olhos do prato, pousou-os na ave que ainda comia em sua elegante gaiola e, sentiu que trairia a patroa com relação ao controle.

Está vendo aquele lindo frango? Então,  é ele que prova agora. – O perfume do afrancesado confundia o ambiente. - Que tal? Faltou-lhe algo?- Ironizou o pequeno astro.

Izabelle remexeu no assento e quis intervir com gestos, quando notou que a empregada fez também gesto de cabeça ao interlocutor:

- Leva a mal não colega, mas tá faltando sim.

Dito isto, abandou o prato sobre o balcão para, em seguida, investir no fogão acendendo a todos os suspiros possíveis. Como tentáculos tivesse, abria e fechava gavetas recrutando talheres e panelas, depois selecionou ervas e tubérculos. Colocou água para ferver e iniciou o preparo do arroz. Feliz como criança em praça processou como humana centrífuga, cebolas pimentões, tomates, alhos e alguns ramos os quais cheirava, identificando o aroma.   A assistência, a esta hora muda e apreensiva do objetivo da convidada, investia os olhos ao palco para não perder a mínima ação, inebriadas, portanto, com o cheiro de arroz torrado com alho. A cozinheira explicou que estaria “afogando” o arroz, quando despejou certa quantidade de água fazendo borbulhar e perfumar ainda mais os arredores. Tapou-o para que ele “chegasse”. Conforme narrava ao referido colega e às assistentes. O Cheff buscou socorro com a organizadora do evento e esta foi ao encontro da inusitada figura, na clara intenção de demovê-la. Não se sabe se a empregada de Izabelle a ouviu ou todo seu ser convergia à tarefa culinária de modo que, dando de ombros à outra, dirigiu-se à gaiola resgatando o bucólico frango, até então mero coadjuvante do espetáculo. Ela examinou, revirou, apalpou. Se era púbere ou não a ave, sua adquirente provavelmente ignorava. Fato é que com todas as testemunhas possíveis a negra uniu as asas e pés do animal e travou-o entre suas pernas enquanto segurava-lhe pela cabeça. Com a outra mão apanhou uma das facas, depilou parte do pescoço do imobilizado frango,  provavelmente mais apreensivo que outrora, deu três palmadinhas com a base da faca, como em ritual, na parte limpa do pescoço, conferindo o volume da veia que não tardou a anunciar, desferindo um corte na região preparada, aparando imediatamente o sangue em uma tigela que deixara no chão para esse fim. O sangue caiu feito água de mina, calmo e servil no recipiente, e o som da queda misturava com murmúrios dos assistentes O anfitrião parecia não acreditar, deixando-se tombar em um assento próximo à geladeira. As câmeras, moviam-se preocupadas em registrar todos os atos da cozinheira.

Já organizadora, ao presenciar o destino do frango ornamental, manteve considerada distância do campo onde Judite operava. A ave ainda tremelicava para se despedir da vida quando foi liberta das pernas de Judite para ser mergulhada em água quente. As mesmas mãos que lhe fecharam os olhos agora a despiam de suas vestes, pena por pena a deixando sobre o balcão,  nua e crua, para vista de todos. Judite limpou a carne, aqui e acolá, tirou e lavou, virou e mexeu e a reluzente panela recebia o corpo já fracionado, alem de óleos e temperos. Ela agora já assoviando, buscou quiabos na cesta, procedeu a limpeza e investiu em torná-los dezenas de rodelas.

Ao sacrifício do frango, alguns assistentes tiveram menção de se retirarem embora algo aparentemente o encantassem de forma que ali permanecessem. Izabelle, inerte, sabia ser impossível deter sua empregada e que cozinhar, para Judite, era ato tão sacro quanto o prato do dia. Ela jamais tolerava palpites ou que qualquer um mexesse em suas colheres de pau, destampasse panelas ou furtasse quitutes. Não media temperos a não ser com olhos e provava a intensidade pingando o caldo nas costas da mão, lambendo, conforme acabara de fazer ao inspecionar o frango.

Judite localizou o fubá de milho e sorriu.Como se estalasse os dedos, já tinha na travessa fumegante angu, ornado com folhas de manjericão. A cozinheira concluiu o projeto, bastava orientar a uma assistente sobre a armazenagem do sangue já coagulado, ofertado pela ave. Pegou de um prato e serviu primeiro o angu, para, na seqüência, cobrir com porção suculenta do frango com quiabo. Ao lado aninhou generosa colher do arroz soltinho e cheiroso. Ofereceu a refeição ao Cheff, como retribuição. Este quis esquivar talvez por orgulho, embora o aroma há muito o traia. À primeira garfada semicerrou os olhos para depois abri-los e encarar a negra. Olhar de filho para mãe, de mago para bruxa, saudoso e marejado. Contemplava-a como se esta o transportasse à sua raiz, simplesmente com aromas e paladar. Após a refeição sua vontade era de arrancar a bandeira do estado presa ao mastro a um canto do salão para cobrir em manto a santa cozinheira. Sentiu que se demoraria por estas terras.

A cozinheira piscou para a patroa que já reservava seu lugar na fila. Se feijão houvesse, fatalmente seria necessário colocar mais água porque o simples prato de Judite despertou as entranhas dos presentes.






PANDORA




 Guardar apenas o que deve ser guardado. Guardar. Talvez o maior dos problemas que escravizam a humanidade. Guardar tudo, ser guardado. Vigiar, ser vigiado. Oxalá fosse requisito de sobrevivência da espécie: “Deus te livre e guarde”: A liberdade já nasceu comprometida e sequer a chuva escapou de ser guardada, ainda que naquela manhã de segunda-feira pudéssemos desprezar qualquer utensílio que nos guardasse dela, assim afirmava o sol, radiante, banhando pedestres em caminhada para o trabalho ou compras. Alguns se detinham nos cartazes de promoção e outros, impacientes, se desviavam dos vendedores que precipitam no passeio à cata de compradores. Um ambulante instalou sua pequena banca para vender jabuticabas e sua voz competia com o microfone dos locutores. Vez por outra, molhava as frutas, aumentando ainda mais o brilho destas e recrutava clientes para degustarem o produto e conseqüentemente adquirirem. Os comerciantes vizinhos protestavam alegando que as negras bolinhas atrairiam abelhas e já arquitetavam a denúncia. De fato, fiscais da prefeitura se apressaram em dar fim à quitanda e aguardavam, diligentes, o camelô retirar a mercadoria. Este o fazia em protestos contra o prefeito, delatores, e tudo que lhe vinham na randômica mente. Entre o barulho dos anúncios, buzinas, e outros vendedores, ouviu-se um grito muito comum naquela área central.

- Pega ladrão! Alguém convocava, e a frase era repetida por outros na medida em que o garoto de pernas finas corria, afastando pedestres. Os próprios fiscais recuaram presenteando-o com o espaço para sua maratona, e o gatuno atleta deslizava entre o povo, não evitando esbarrar em uma senhora, que foi ter com os peitos na bancada abarrotada de jabuticabas. O vetado vendeiro viu, em desespero materno, suas negras bolinhas ganharem a Avenida Paraná, espalhadas até serem contidas pelo acostamento. Redobrou os protestos enquanto a senhora era acudida pelos fiscais que inutilmente tentavam limpar sua roupa manchada. Quanto ao meliante, Tanto mais gritavam as pessoas afastavam-se, abrindo espaço talvez para auxiliá-lo alcançar a linha de chegada e subir ao pódio.

-Dentista... Orçamento sem compromisso- anunciava outra à porta de um velho prédio, enquanto gargalhava pelo acidente presenciado. A dentição exibida, precária e disforme, demonstrava grosseira incoerência em sua publicidade.

-Fotonahorafoto!- Gritava um, e, não sendo a placa que carregava suspensa pelos ombros, seria difícil identificar qual o produto ofertava.

Eis o centro comercial de Belo Horizonte, onde deságuam passos e rodas de todas as regiões da metrópole, onde o povo passa, entra em uma loja e atrasa o trabalho do vendedor com o chavão que vai “dar só uma olhadinha”. Deixando o local com sacola abarrotada de compras, conforme ocorria naquela ampla loja. O locutor em sua voz grave e retumbante anunciava, às moças a promoção de roupas intimas na sobreloja, e curiosas pedestres detinham-se na porta atraídas pelo anúncio De fato, araras contendo peças íntimas de modelos e tamanhos diversos estavam distribuídos no segundo piso, e a oferta certamente teria proceder devido ao tumulto de clientes e extensas filas para quitar a compras, assim como morosa fila nos provadores. Um segurança mantinha-se ereto em seu uniforme, vez ou outra prestando informações. Seus olhos negros e grandes digitalizavam os corpos das mulheres que por ali passavam, aferiam curvas, fantasiavam partes invisíveis. Foi quando uma incauta mocinha, após minuciosamente examinar dúzias de soutiens de diferentes modelos e tamanhos, dirigiu-se ao guarda volumes onde todas as clientes que desejavam experimentar as roupas teriam que deixar ali bolsas, assim evitando transtornos como furtos ou perdas. A moça então pegou sua chave, e procurou o número no escaninho, fazendo-a girar na fechadura. Ao puxar a portinhola, em um repelão, saiu também a bolsa ali guardada, devido a sua alça ter atado à trava de metal. O movimento fez soltar a bolsa que espatifou no chão e alguns objetos nela guardados, com o impacto, foram sumariamente defenestrados. Um deles, um pequeno frasco, espatifou próximo à pequena escada que daria acesso aos caixas e o seu líquido, liberto, espalhou a flagrância de forte absinto. Já o outro objeto, um pouco mais cilíndrico e em maior volume, ganhou terreno no lustroso assoalho da loja, quicando sua matéria emborrachada. Tamborilou, como se ensaiasse um passo de tango e girou levemente, já em reduzida marcha, para se aninhar bem no centro da loja. Mal fora revelado aos presentes no salão e gritos, alguns inclusive de pavor, ecoaram pelo local. Todos desviaram os olhos dos preços e modelos em direção ao alarido. Cortinas de provadores se abriram, expondo detalhes até então discretos das que os ocupavam. Outros muitos gritos foram emitidos e algumas clientes corriam talvez atribuindo que objeto vida tivesse e que a qualquer momento, ressuscitaria para investir contra elas, de forma que se afastavam, como se do céu pingasse fogo e seus os corpos nus estivessem. Em poucos segundos, o salão viu-se em desordem de formigueiro atacado. Alguém desmaiou próximo ao balcão de entrega. Não demorou vir o segurança, armado e viril, intencionado em botar ordem no barraco. Sem cerimônia, o negro forte e sisudo investiu para o centro da loja onde algumas apontavam o litígio, abrindo caminho entre saltos, rasteirinhas e bolsas. Este, quando alcançou o suposto e inerte criminoso, sentiu tombar a arma que até então manteve firme ao punho para balbuciar, boquiaberto:

- Com mil diabos! Um vibrador!

Pareceu ter anunciado o Apocalipse. Cílios violentos fulminaram-no tão logo ouviram seu pronunciar, e o alarido, que estaria diminuindo tornou em generosas proporções. Reprovaram, em uníssono, a revelação que estava explícita aos olhos de todas, embora ninguém se atrevesse a verbalizar. Outro desmaio foi notificado, desta vez próximo ao caixa de recebimento. O segurança, entretanto, mostrava-se prostrado diante do fato, como um inocente narciso, escravo da revelação. Olhava absorto a indumentária verticalmente alojada, analisava contornos e formas dirigindo seus alternados e confusos olhos à sua própria virilha. Ponderava, aferia. Sentiu lampejos de inveja do familiar modelo ali escancarado no chão, livre e profano, enquanto mantinha algo similar - embora relativamente tímido- aprisionado em puída cueca. “Era sim, um vibrador –disse para si- e dos bons!”. Restava saber a quem pertencia e restituí-lo.

- A quem pertence? Perguntou à multidão.

Silêncio geral. Olhares acusadores apontaram a moça trêmula, a um canto da seção de soutiens, única responsável pela liberação do objeto. Interrogada, a garota explicou que se enganara de armário e que seus pertences estariam acomodados no trinta e um, e não no treze. Aproveitou para protestar, indignada, da ineficiência mantida no guarda volumes, já que conseguiu, por azar, abrir uma porta com chave trocada. Reconhecida pelo engano e restabelecida de seus bens originais, a inocentada apressou-se em deixar a loja, evitando aproximar-se do instrumento. Ouviram-se seus passos rápidos na escada de acesso à saída.

Sem resposta o vigilante percorreu com os olhos um por um, vagarosamente, como se pudesse detectar a quem pertencia o outrora guardado objeto. Demorou-se mais em uma de seios e bundas desproporcionalmente fartos, com maquiagem e vestimentas um tanto noturnas para a ocasião.

- O que é? – retornou a outra, percebendo a desconfiança- Já tenho o meu, meu bem! Nasci com ele! – Disse apontando as unhas postiças na altura da virilha. Riu alto e jogou a cabeleira para frente.

Mais murmúrios

- Senhores clientes! -Anunciou o locutor, já na sobreloja – Por engano foi aberto indevidamente o armário de número treze. Informamos que o problema já foi solucionado e solicitamos, por gentileza, que a proprietária desta chave se apresente para retirar seus devidos objetos.

Ninguém se moveu, conquanto houvesse esquivos aos olhares do solicitante. Somente o ruído do ventilador preso ao teto parecia responder ao apelo. Acordaram a desmaiada e esta, após se ofender com a pergunta, negou veemente, para adormecer em seguida. A outra continuava em coma, embora a chave consultada em sua mão não resolvesse o impasse. Três outras tentativas de chamadas foram feitas, sem algum sucesso para localizar a possível proprietária do vibrador e demais acessórios da mesma família deste, guardados no compartimento treze, obrigando ao ali permanecer objeto evitado como um indesejado filho, apesar de imponente sobre o solo.

O gerente da loja apareceu enfim e ordenou ao segurança para que recolhesse o impasse e o encaminhasse imediatamente à seção de achados e perdidos. Deu ordens à faxineira para remover o resíduo do absinto no piso, praguejando contra a fragrância que dominava o local. O agente o interpelou:

- Aí não boto minha mão, não senhor... Pode até fazer minhas contas que pra rua até vou. Mas nesse negocio não bulo.

O superior vacilou. Algo lhe soprou nas ventas que não adiantaria ali discussões sobre a desídia lhe imposta. Solicitou uma sacola plástica para guardar o volume, e outra para envolver as mãos. Arregaçou as mangas da camisa e podia sentir o peso de todos os olhos que o assistiam, ouvia ovações e maldizeres como se em uma arena estivesse. Suspirou por três vezes e contraiu a face: “Tenho que ser forte” - concluiu. Enfim, como se desarmasse bomba, pegou o volume que, ao ser suspenso, escapou de suas mãos. Em outra investida, agarrou-o tão firme que ouviu suspiros ao redor. Acondicionou o elemento na sacola e lacrou-a com tanta veemência para que ele não escapasse novamente. Os subordinados ali presentes regozijavam-se com a cena. Teriam comentários picantes para o intervalo de descanso.

- Senhoras... E senhores... Como não foi-nos apresentado a dona, ou o dono, encaminharemos “isto” ao setor de achados e perdidos, cujo telefone está afixado naquele canto –disse ao público, indicando o informativo com o próprio volume que detinha nas mãos- e enviaremos via correios, para evitar maiores transtornos. A Pandora Modas agradece a preferência e antecipa desculpas pelos equívocos.

Após mesura, seguiu caminho, carregando consigo o pacote. Todas voltaram às compras e as cortinas dos provadores foram uma a uma fechando-se para o exame de peças. No setor de objetos perdidos, o telefone recebia chamados em ocorrências maiores que o padrão, sobrecarregando a atendente que se desdobrava para anotar os chamados.



PECADO ORIGINAL



A vitrine emitia  brilho pelos arredores com um prisma, tornando assim mais atraente a joalheria de onde desfilavam aos olhos cobiçosos dos clientes, sejam suspensas por finos aros, envoltas em cilindro felpudo ou repousadas sobre aquários tais e quais valiosos peixes, sedutores adornos. Um grande espelho posicionado para atrair a atenção do público, entretinha uma bela moça que, focada em seu reflexo, meneava o corpo ajeitando aqui e acolá. Vasculhava inexistentes rugas no rosto, avaliava as sobrancelhas e cílios, ajeitava mexas de cabelo, analisava cintura, os glúteos, sempre com o olhar fixo no espelho. Assim envolvida estava que não percebeu a senhora aproximando-se e, ao que parece, observava a outra que se observava no espelho

- Permita-me - ouviu, por trás de si, contrariada em ter que findar a inspeção como se aguardasse que o cristalino objeto validasse sua onipotente beleza.

Pois não senhora, perdão... Estava distraída aqui... Deseja ver alguma jóia?- Disse ao voltar para a possível cliente e o fez com tão natural elegância que sua majestosa cabeleira, ao acompanhar movimento do corpo, culminou por concluir a fabulosa tarefa do espelho. A voz carregava um sotaque interiorano, algo da região norte do estado. Sorriu à recém chegada, conforme protocolo e apanhou um cartão que esta lhe estendia com certo desagravo, afinal a vendedora ali seria ela e a ação da senhora que a interpelara deixava claro que não nasceria daquele relacionamento qualquer valor de comissão. Erguendo os olhos, deparou-se com a feição da interceptora e ficou regalada com a eficácia de sua maquiagem, além do vestir e ornar elegantes. Apesar de tratar-se de uma senhora, passearia entre a quarta e quinta década, porém empinada em uma postura jovial. Visíveis camadas de creme e pintura contribuíam em defender a aparência.

- Realmente preciso de jóias. Quem não precisa?  Mas não sei se percebe, a jóia valiosa aqui é você. Como é bonita, menina! Onde achou tanta beleza assim?!?

- Obrigada... Não sei não... – ela se precavia. Preparava para se livrar do galanteio quando leu o cartão que recebera.

- Bia Mourão! Produtora de moda... Então? Que tal pensa em dar um up em sua vida profissional? Hein?  Se tornar modelo, meu anjo.Tem brilho minando em  você! Ninguém nunca lhe disse?

- Acho que não, senhora.

-Bom, filha- disse a outra que havia feito rápida analise de sua cobiça e pelo sotaque e fraco conteúdo do diálogo entendeu que se tratava do velho clichê: Mineirinha do interior, jovem e incauta, presa fácil e domesticável. Já traçava planos para explorar o perfil em campanha de lançamento e demais eventos e não tinha dúvidas quanto a ter garimpado diamante dos bons. Lapidaria a sua menina dos olhos, embora tivesse que fazer o jogo de desinteressada para atrair a caça. Contudo, lançara a isca, e o fizera bem feito, é aguardar o mordiscar.


Paola assentiu por mera cortesia. Viu a senhora seguir caminho atenta às demais vitrines e ironizou seu andar elegante e curiosamente sinuoso. De fato, viera a pouco da região rural para estudos e trabalho na capital mineira. De hábitos moderados e precária ambição, não encontrava dificuldades na adaptação em conviver na metrópole a não ser a saudade de sua terra, sua família e o namorado que, para a semana, chegaria à capital em busca de trabalho. Ainda tinha as derradeiras palavras da senhora em mente, de forma que pegou o cartão de visitas para certificar-se da localização de sua agência. “Hum... Talvez, ela possa ter razão...” pensou. Foi ao espelho, aparentemente buscando a aprovação deste sobre a proposta e sentiu súbita vertigem com a figura deformada que vira. Outro cliente aproximava-se e ela se antecipou a atendê-lo. Enfim, decidiu por ir à agência ao menos pela curiosidade e assim o fez, após agendar em horário de seu intervalo. Faria a visita antes da refeição, não fosse o cheiro de sua terra comercialmente representado pelo restaurante de culinária mineira, na praça de alimentação. A moça revisou o planejamento e mudou o trajeto. Serviu-se avidamente de tutu, torresmo, frango com quiabo e ainda arriscou em sujar o prato com porçãozinha de farofa, não percebeu o garçom que indiscretamente cortejava sua beleza e quando avistou o prato servido, ficou confuso buscando relação entre o corpo escultural e o apetite de predador. A menina comeu com nostalgia por sua terra, da comida de mamãe. Deu cabo de tudo sem dificuldades, arrematando com uma dose de café com raspas de rapadura.

Palmas afetadas da promoter soaram nos corredores do estúdio, assim que anunciada pela recepcionista sobre a presença de seu achado. Seria o dia do pescador? A menina observava o mobiliário no hall de espera, encantada com uma mesa de centro com vidro temperado e com relevos decorativos. A própria recepcionista era de uma elegância similar à sua possível patroa. Na entrevista regada à água, café e biscoitinhos amanteigados, a mais velha procurou enfatizar os benefícios de se investir na carreira e vislumbrava sem sombra de dúvidas projeção internacional. Vez por outra eram interrompidas para atendimento telefônico onde a entrevistadora por vezes dialogava em outros idiomas, desconhecido pela outra. Sendo a vez da entrevistada, esta narrou que deixara há quase um dois anos a sua cidade natal na região norte de Minas, trabalhava no shopping conforme de conhecimento e estaria no segundo período no curso de Direito, não sendo de sua idéia abandonar os estudos, devido ao seu deseje de se tornar advogada. Discorreram a conversa e a senhora buscou ser jovial, captando dados da menina, a qual morava com parentes e mantinha um namoro não muito sólido com um conterrâneo, com vias de vir também para capital. Enfatizou, a empresária, que a garota não precisaria abandonar de todo o seu curso e sim, paralisá-lo devido à carreira, para que, com os benefícios e monetários advindos do projeto ela retornasse com mais folga ao curso. Buscou, sorrateiramente, minimizar a importância de se graduar, apregoando que as academias sufocam os alunos em teorias arcaicas para depois deixar, em suas falidas mãos, mero canudo, e abandoná-los à mercê do mercado, como peixes em feiras fossem. Não garantiam salários no mínimo satisfatórios e a cada semestre são cuspidas milhares de túnicas, e capelos voam, aumentando a concorrência. Pausou para uma ordem à recepcionista e disse ao telefone, sem reserva alguma, informação financeira na casa de milhões. A moça se perdia por não conhecer o meio da moda e pelo acúmulo de informações. Indecisa, evidenciou que temia a não aprovação pelo namorado ao que a senhora por pouco não ironizou, assegurando esta seria a mais corriqueira preocupação de todos contratados pela agência, sendo problema de fácil resolução e que, inclusive, ela própria seria especialista em lidar com o assunto. Enfim, agendaram testes e salões, mudanças aqui e acolá enquanto confeccionavam o contrato e promessas de que iriam falar muito da modelo pelo mundo afora.

Paola então foi invadida por maquiadores, penteadores, fotógrafos e eventos diversos, incluindo viagens. Firmado o contrato, o investimento em divulgação massiva e incisiva em poucos meses transformou a modelo em revelação no mundo da moda. Era requisitada por outras agências, estilistas e empresas ligadas ao ramo da beleza. Certa feita, em solenidade ocorrida no sul do país, Paola desfilou tão magistralmente que foi ovacionada a ponto de encantar a marca publicitária Pecado Original, a mais conceituada no ramo da moda e não menos cobiçada. Bia comemorava a faraônica parceria com a companhia que encheria suas algibeiras, consolidando sua aposentadoria. Ao que a modelo revelou um entrave, o namorado, que ciente das novidades estaria enciumado e contrário à situação, exigindo-lhe decisão pelo casamento ou carreira e deixando a moça em aflição, já que ela desejava as duas fatias do atormentado bolo. Estaria gostando dos flashes e fama, embora amasse Alfredo de forma que recorreu aflita à administradora. Como de hábito e também afirmado, a empresária agiu rápido e eficaz, tão logo ouviu os apelos da jovem, requisitou uma entrevista com Alfredo e este milagrosamente aprovou aos projetos da enamorada, inclusive tornando-se aos poucos, mais distante dela. Bia parecia consentir com as atitudes dele. Contudo, em conversas com sua pequena, salpicava que ela merecia coisa melhor, alegando algo de primitivo no amásio.

Veio a parceria com a Pecado Original e deixaram a sala de reuniões com o contrato, fita métrica e balança nas mãos. Um assistente media, media novamente, calculava, aferia. A balança informava o peso da massa preciosa e a menina do interior foi auditada por todos os ângulos, sendo o resultado apresentado à empresaria que, preocupada em manter a parceria, teve que adotar postura radical, o que significava o controle rigoroso do peso de sua pepita, e também a perda deste, significando a obrigatoriedade dela abdicar-se de refeições calóricas. Resultaria em adeus a frangos com quiabos, até nunca a molhos pardos, tutus, miúdos e toda sorte de vísceras. Rabadas, jamais! Costelinha só nas passarelas. Angus, feijoadas e tantos outros pratos amineirados estariam terminantemente proibidos. Não foi citado no discurso de Bia a pele suína pururucada, por óbvios motivos. A simples pronúncia do item sugeria cancelamento irrevogável ao contrato que necessitaria da máxima proteção por ser super valioso!

- Bia...-suplicou a menina- Devo mesmo abrir mão disso tudo?

- Absolutamente... – retornou a promotora, agora em tom mais grave- Caso contrário, teremos que preparar outra modelo e apresentar à Pecado Original.

- Até o frango com quiabo?- arriscou uma última tentativa, em tom de agonia na voz.

- Prin-ci-pal-men-te – silabou a contratante, arregalando os olhos como se tivesse escutado satânica palavra.

Contratos fechados, dieta iniciada e Paola agora se mantinha a bolachas compostas de água, dia e noite, noite e dia. Chás seriam alternativas, para o fim de emagrecimento. Em contrapartida, a fama formigou os calcanhares da menina e passarelas de todo o mundo conheceram o seu andar elegante e seu discreto corpo, ainda que, às vezes vacilante de fome, porquanto belo. Vieram apartamento na zona sul, carro, flores e perfumes... Seu rosto de menina ingênua atraia câmeras de todos os cantos e as bancas de revistas eram decoradas com suas poses, em estouro de vendas. O namorado, requisitado por Bia, fiscalizava sua alimentação e a incentivava, por meio de promessas e gracejos, manter a dieta.  A intimidade da moça oscilava entre deslumbre e frustração, uma vez que seus passos eram também controlados pela promotora, disposta a proteger sua mina fecunda. Interferia em sua abstinência alimentar, com tanto rigor e diligência que a dama das passarelas, por mais esquálida que se tornava, sentia-se gorda a ponto de ter vertigens e passar até dias sem se alimentar. Em uma das auditorias disfarçadas de visita que Bia promovia em seu apartamento, queixava-se do namorado que se tornara muito ausente e não se fixara em nenhuma ocupação conforme lhe prometera quando se fixou veio para a capital. A patroa, enquanto vistoriava o refrigerador a procura de alimento suspeito, alegou não aprovar o envolvimento de Paola com o gaiato. Sentia-o despojado e desinteressado, um tanto preocupado com a forma física e hibernado em academias de ginástica. Indagou maliciosamente de onde viriam os recursos para despesas do rapaz enquanto removia o refrigerante dietético da prateleira, substituindo-o por água mineral.  Por fim, sugeriu que a menina terminasse o namoro e desse uma banana para o amado, não sendo difícil para ela pretendentes consideravelmente melhores e mais atraentes.

- Se eu tivesse uma banana, comeria-a no ato- retornou a modelo, que teria a fruta banida de seu magro cardápio, onde somente a maçã estaria liberada após análise e com o limite máximo de uma por dia.  

Definhava-se então a humana manequim,  dia após dia, apesar de estar no paraíso. Ora infeliz no amor, o dinheiro e fama vinham-lhe a cântaros. O glamour, portanto, cobrava-lhe o preço da abstinência, crua e amarga e o não mover das mandíbulas era o lema para a manutenção do projeto, a ponto dela sentir vertigens quando se deparava com qualquer local freqüentado por glutões. Mastigar tornou-se ato pecaminoso, algo como envenenar-se. Assim deambulava Paola. Quando em tentação caía, embora raramente, investia o dedo indicador à goela, convidando o intruso alimento a ser despejado de suas solitárias entranhas, como penitência ao pecaminoso ato. Até o sono parecia sentir fome, pois raramente a dominava e a pobre menina rica que não mais dormia direito, assustando-se com freqüência. Quando lhe vinham espasmos de cochilo, eram acompanhados de pesadelos onde travessas de tutu à mineira bailavam em provocante harmonia, seguidos de torresmos que pipocavam, rebolativos e em desmedida algazarra, assombrando-a. Doces de figo eram depositados aos seus pés, e toda sorte de compotas caía como torrenciais tempestades, espatifando-se no chão e formando então ondas de pêssegos, laranjas e demais frutas, regadas em doces caldas, pegajosas e cristalinas. Despertava aterrorizada, em suor frio e insosso.

O barulho da zona sul misturava sons de buzinas, pneus cantando, um ou outro som de automóveis. De sua janela Paola contempla a vista da Praça da Liberdade e suas charmosas arquiteturas ao redor, primorosamente iluminadas. Invejava casais de namorados, entre brincadeiras e gracejos passear entre coqueiros e roseiras. Veio à lembrança Alfredo que não aparecera em mais uma noite. Cada dia mais distante e que em uma de suas visitas, insinuou que estaria com saudades das carninhas hoje tão raras na namorada. Talvez Bia tivesse novamente certa: o namoro de ambos já não tinha razão de ser, não dava mais liga e, se ele não a procurava com freqüência de outrora certamente teria outra em campo. Deu meia dúzia de passos, examinou o apartamento ricamente mobiliado de conforto e beleza. Tudo ao seu alcance e sentia-se enquadrada em sua vida espionada por hienas fotográficas e promotores de moda. Exposição comercial, como peixes em feira, inanimada vida amorosa. Comer e beber o que não sacia... Teria vendido sua alma?

Apanhou sem vontade o controle remoto, objeto mais utilizado em seu lar e iniciou a ciranda de canais. Como não sabia o que queria ver ou se queria ver algo, tateou os teclados passeando por dezenas de canais e, por cansaço deteve-se na programação de um desenho animado. A cabeça lhe doía e o brilho emitido pelo televisor aumentava a sensação. Estranhamente sorriu e se deu conta que há muito não o fazia a não ser mecanicamente e sob influência de flashes, embora o motivo fosse a recordação de quando menininha, espalhada no sofá de sua casa, devorando variadas brevidades e cereais. Participava da nostalgia uma esquelética pantera de cor rosa, que na animação da grande tela, aprontava as suas, enlouquecendo a quem contracenava consigo e botando abaixo, embora malignamente, o mito de sexo frágil atribuído à sua cor. De olhos vivos, arregalados e silhueta delgada de causar inveja à mais cobiçada manequim, a personagem selvagem de andar vacilante, lembrava à sua telespectadora ao menos no físico, conquanto comprovasse em peripécias o quão perigosa seria quando provocada. E assim o fazia com soberbos requintes de cinismo e ironia. Paola remexeu-se subitamente no sofá.  A felina, apesar da semelhança corporal, comportava-se contrariamente à ela e talvez quisesse explicitar isso, porque a cada ato, o animal a olhava de soslaio, intrigante e discretamente debochada, como se quisesse exibir seu feito. A telespectadora disse algo para si e para a tela, de onde a pantera, a esta altura, fugia em debandada por ser perseguida por um possível desafeto. Paola sorria e lamentou quando anunciaram o the end na tela. Levantou-se da poltrona, girou nos gravetos e foi ao quarto para se trocar, sentindo que precisava tomar um ar e também algo naquele verão abafado.

O táxi encostou para embarque e o motorista cumprimentou a passageira que estaria de peruca e óculos escuros, apesar de ser noite. A modelo decidiu por camuflar-se para evitar assédios de tietes, paparazzis e demais abutres que desrespeitam o direito de um ser humano faminto ir e vir. Não revelou o destino ao chofer, mesmo porque não o saberia, dado o desejo de passear a esmo. A alguns metros, sugeriu ao motorista que a deixasse próximo ao shopping localizado à Avenida do Contorno, onde gastaria tempo e dinheiro para ocupar o tempo. O trânsito estava congestionado como sempre naquela região que abrigava bares, restaurantes e diversas outras opções de lazer e para o desespero da modelo, o aroma convidativo de carne assada invadiu o veículo, oriundo do restaurante onde o cartaz anunciava promoção de rodízio para casais. Ela apertou os olhos, tentando expulsar da memória o paladar adormecido. O motorista que reclamava do trânsito agora se deliciava com o cheiro da carne, tentado adivinhar qual parte de qual animal seria. Fez um comentário, e não recebeu retorno da passageira que dispensava palestras e se contorcia, rogando que lhe poupassem do pecado da carne pela carne. Não conseguia se concentrar, mesmo porque o intermitente som de buzina era emitido por outro veículo que pedia a passagem para acessar a entrada do restaurante.  O taxista até então monologava sobre coisas assadas e, como estaria indiferente à buzina, foi ultrapassado e o outro condutor, não satisfeito, protestou algo nada agradável ao companheiro de tráfego. Ainda que não tenha entendido o verbete utilizado pelo impaciente motorista, a voz pareceu familiar à passageira que instintivamente abriu os olhos para tentar se acercar do acontecido. O carro, tendo sucesso na ultrapassagem foi deixado aos cuidados do manobrista após o casal entregar a chave e uma elegante senhora adentrou as portas do restaurante acompanhada de espadaúdo mancebo, um tanto mais jovem que ela. Imediatamente Paola informou ao motorista que ali ficaria e, mal aguardando o condutor procurar acostamento, desembarcou, sem se preocupar com as normas de trânsito e deixando uma quantia desproporcionalmente superior ao serviço. Em poucos passos estava ao pé da escada. A lufada de aromas assados a deixou ainda mais tonta, que foi preciso o recepcionista se precipitar e segurá-la por ter percebido um cambalear com algum risco de queda.

-Boa noite... A senhora tem reserva?

-Não. Inclusive, não pretendo demorar por aqui.

-Tudo bem. Temos mesas vagas naquela direção. Por favor... – conduziu o empertigado recepcionista. Um tanto espantado com a magricela cliente, indicou o assento, mantendo respeitada distância e aproveitando para avaliar, ainda que discretamente, seu corpo que seguia em frente. Fixou nas nádegas e desaprovou mentalmente a ausência de carnes em moça tão bonita.

Já acomodada, ela solicitou água tônica diet e apoderou-se do cardápio, para assim observar,  sem ser observada, mal se dando conta de que estaria camuflada. Sacudiu os ossos na cadeira quando reconheceu, a três mesas de distância a promoter, a chefe, a  Bia, sorridente, ao lado de um Apolo, lindo e não menos sorridente acompanhado-a. Sentiu vertigens e tentava, em vão, desacreditar que aquele homem, vistoso homem, era o mesmo que ela esperava em seu apartamento. Sim... Ele mesmo, que não fora vê-la hoje e tampouco nos últimos dias... Alfredo, menino, bonito... Atracado com a Bia! Aquela voz que agredira o taxista... Desviou o olhar para as paredes, sentindo-lhe as tripas brigarem por carne. Tomada pelo ódio e lampejos de delírio, viu emergir, dos quadros decorativos, enormes bocas acusando-a de ingênua, gargalhando à traição exposta. Dedos saltavam dos quadros, hirtos, indicando o casal leviano e olhos arregalados, miravam na, como se a censurassem  pela inação...

Seguiu a espreita, presenciando afagos indiscretos para o local, beijos e até mãos passeando sob o pano que cobria a mesa. Garçons rodopiavam, como anjos, em volta do envolvido casal, portando recheados espetos como se harpas fossem, vez ou outra detendo se, cortesmente, para deslizar suavemente as facas nas carnes espetadas, e estas pareciam cantar, dolentes, enquanto caíam prontas e suculentas nos pratos, e ali permaneciam, como oferendas, tal qual um ritual. Os pombinhos portavam-se, como serpentes fossem, absorvendo amontoado de coraçõezinhos, picanhas, cupins, rãs, capivaras, enfim, toda a fauna, sem pecado e, absolutamente, sem juízo. Paola testemunhava o sangue que escorria pela boca da empresária. Viu quando a língua bifurcada descreveu um semicírculo e envolveu todo o lábio pintado, feito um descarado palhaço, retendo o líquido escarlate com tanta eficiência que causou rebuliço na cadeira do acompanhante. A modelo teve que assumir que sua personal novamente estaria certa. Saberia lidar com namorados ciumentos e Alfredo talvez merecesse uma banana. Quis chorar, mas não só lhe faltava forças como as mudanças que sofrera, intensas e incisivas, em alguma parte deflorara a ingênua menina do interior. Ergueu de novo os olhos sobre o cardápio. Sacudiu a cabeleira para tentar expulsar o que via. Varias panteras cor de rosa, idênticas, assumiam o posto antes atribuído aos garçons, desfilavam, cada qual com seu espeto de carne assada. Vez por outra uma elas estancava para servir a mesa dos amantes e, mesmo à distância, lançava o felino olhar para a modelo, como se questionasse acerca da reação desta, porque ali estava, a servir e abundância o que lhe era terminantemente proibido. A felina a desafiava com mesmo olhar de soslaio, de irônico mistério.

-Senhora? –disse o garçom, visivelmente preocupado com a estranheza da cliente - deseja degustar algo?
- Não, obrigada... - Se recompôs a outra, com certa confusão, modulando o tom de voz- Receio perder o apetite...

- Como quiser, esteja a gosto. –retirou se cortesmente o atendente- convencido de que atendera a mais uma, rica e louca, da metrópole.

A água não foi sequer sorvida. Paola ergueu-se da mesa, pagando diretamente ao garçom como fez com o chofer. Não poderia, em hipótese alguma, se atrasar.

Bia entrou no elevador, abanando-se. Estaria exausta devido à nababesca noite anterior.   Não fosse o chamado de sua modelo, que insistiu em vê-la, alegando urgência, teria ficado inerte em seu aconchegante puff, espreguiçada e curtindo a ressaca e os aromas do amor. A porta se abriu ao chamado, e a visita espantou-se com o a penumbra presente na sala. À meia luz, admirou-se ao ver a mesa educadamente arranjada, com toalhas rendadas e um castiçal bem ao centro. “Haveria jantar? -intuiu -Tomara que essa menina tonta não me venha com surpresas, hoje não estou para essas mesuras!”.

- Que foi, meu anjo? Chamou-me assim, de supetão... Fiquei preocupada!

Paola estava envolta em avental, indumentária nunca então vista por Bia. Ainda que em aparentes atividades culinárias, a promotora estranhou na maquiagem bem feita e as unhas de um vermelho vivo. Não se sentiu à vontade. Sua pombinha de ouro, cozinhando? A referida pomba a tranqüilizou alegando saudades. Queixava-se de que se sentia abandonada por ela, pelo namorado, sentindo-se solitária e carente! Até não durmo como antigamente. Como se não bastasse, sou assaltada por pesadelos, acredita? Ontem mesmo, sonhei que um jovem leão abatia uma vaca e eu assistia a tudo! Pode isso?!? - arregalou os olhos que imprimiam um brilho não muito habitual. A outra se assustou com a face magra da cozinheira -E o mais estranho é que a vaca, apesar de vítima, sorria, a medida que seu sangue escorria pela mandíbula do predador. Eu acordei suada, tomei goles de água gelada e voltei a dormir. E não é que os malditos sonhos voltaram? Estava eu em um jardim lindo, parecia o paraíso, e fiquei apavorada quando vi um bezerrinho, tão jovem pastando e o pobre, sem chance de defesa, foi atacado pela serpente!

-Cruzes! -, apavorou-se Bia. Pressentiu que a moça estaria realmente esquisita. Talvez fosse prudente rever a dieta e estipular um descanso - O Alfredo não tem aparecido? -tentou remediar, teatralmente... - Eu não te disse? Eu conheço os homens!  E esse arranjo todo?- desviou o olhar apontando os cílios para a sala decorada - Está cozinhando para o amado?

Ela confirmou. Ao ser indagada sobre o prato, limitou-se a dizer que seria um velho prato apreciado pelo rapaz.

Pimentões e cebolas aguardavam, sobre a tábua, o inevitável corte. Paola apanhou a faca de carnes dentro da gaveta e escolheu uma cebola, a qual ao primeiro golpe, escorregou de sua inexperiente mão culinária. Raios de sol invadiam a janela, despedindo-se da tarde, e defrontavam com o instrumento cortante, distribuindo ramificações luminosas pela cozinha.

- Permita-me- disse, solícita, a caça talentos, inclinando-se para apanhar o legume que se aninhara entre os pés da modelo. Assustou-se, porém, quando visualizou um par de canelas de causar inveja a flamingos. Calçavam o pé magro de unhas engenhosamente pintadas de vermelho, um salto negro feito a graúna. Bia ficou por entender a vestimenta requintada e de cores marcantes, para momento tão doméstico. Certamente teria que auxiliar a menina nas tarefas, tão desajeitada a via. Lamentou-se para si, já que não tencionava se demorar na visita.

Às vinte horas ele chegou. Pontual, cheiroso, lindo e ainda sorridente. Beijou a anfitriã como se desculpasse das ausências e foi logo apoderar-se do espelho para certificar que o jeans se ajeitara no corpo atlético. O reflexo confirmou. Ajeitou os cabelos e foi ter com a namorada, abraçando-a por trás e aspirando-lhe o pescoço lânguido como o de uma girafa.

- O que é isso, amor? Que surpresa! Um jantar? Você nunca me disse sobre seus dotes culinários - brincou, beliscando-lhe a nádega - Tá querendo me agarrar pelo estômago, hein? –prosseguiu, tateando o escasso traseiro da pequena. Amorzinho, precisa novamente pegar uma carninha, rechear as coisas...
.
Ela apenas sorriu um sorriso de passarela e o acomodou ao topo da mesa para finalizar o projeto. Acendeu o candeeiro e foi buscar os pratos. Um tênue chama se impôs no local, tornando a penumbra ainda mais atraente. Algo de volúpia e um cheiro de pecado vestiam o ambiente. Menu servido, tampas removidas e agradável aroma tornou a sala um tanto quanto afrodisíaca. Conversaram amenidades ele estaria bem humorado como se tivesse cruzado com algum passarinho verde, conforme ditado de sua terra. Aspirou o ar tentando identificar o prato

- Hum... –suspirou, sentindo que teria que se reforçar, afinal, a noite última fizera plantão. Esfregou as mãos uma à outra – É hoje que eu morro...

Paola achou divertida a originalidade do companheiro. O outro riu também, convencido de ter contado uma anedota à ingênua. Serviu-se da bebida escura que lhe fora ofertada, não a identificando, embora tenha lançando uma piscadela já conhecida à anfitriã, prometendo festa iminente. À primeira garfada, o garanhão fechou os olhos e expressou prazer. Indagou sobre a iguaria. Algo agridoce, picante. Vísceras? Sarapatéu? O guisado estava caudaloso, e a penumbra dificultava a análise - Entretanto, sentia-o saboroso, um tanto rançoso, na verdade, e levemente adocicado.

- O que é querida? Conte... – Sorriu.

-Não tá reconhecendo? Vocês homens... – ironizava a autora, servindo mais uma porção ao amado - comem por instinto e, depois de saciados, são incapazes de identificar ao menos o que foi lhes servido.

- Fígado de galinha - arriscou, confiante.

- Quase... Está quente...

- Não vai comer? Inquiriu o faminto

- Quero deixar esfriar um pouco... Esse tipo de prato deve ser apreciar bem frio...

Ele, como de costume, ignorou suas palavras e continuaram a brincadeira de adivinhação, tendo o convidado cantando uma ciranda de opções, de temperaturas quentes, fervendo e frias... Todos os miúdos comumente degustados desfilaram nas tentativas. Errou a todos. Resolveu, por fim, apelar para os mais regionais, chegando a ferver quando citou rabada bovina. Desistiu então da divertida brincadeira, alegando que o que realmente importa é comer, e deu cabo de mais um prato da incógnita refeição. Suas mandíbulas fizeram o trabalho em menos de uma hora que não teria sido feito em uma ano naquele apartamento. Comeu à maneira de padre imune ao pecado da gula. Bebeu feito um pagão. Saciado, procurou recompensar aquela que lhe alimentava, dizendo gracejos apaixonados e colhendo, com certa facilidade, o mirrado corpo para levá-lo ao quarto.

A cama estava coberta com lençol tão vermelho que dominava as demais cores do quarto. Ele sentiu um torpor. Sobre a cabeceira, uma rosa príncipe negro repousava entre os travesseiros de renda também escarlates e com detalhes em preto. Novamente o torpor e Alfredo procurou algo para se apoiar. Perdia gradativamente os sentidos, chegando a supor que exagerara em alguma coisa. Teve que abandonar o feixe de ossos que mal conduzia quando sentiu que a respiração o deixava, era como seu um ser o devorasse por dentro, partindo do estômago e talvez quisesse sair de seu corpo ficando entalado, portanto na garganta. Suas majestosas pernas se confundiam. Olhou para a namorada, a qual retribuiu com o olhar entre doce e felino, alertando que nem todas as rosas tem a mesma cor. Talvez ele decifrasse o olhar da namorada narrando tudo que vira na véspera... Talvez fosse apenas os efeitos colaterais de quem tenha mordido a única fruta permitida naquela casa. Enfim, ensaiou desajeitado passo e seu monumental corpo desabou, pesado, sobre o colchão, estressando a espuma e atrapalhando todo o arranjo. A rosa, lançada pelo impacto, veio cair aos pés da manequim, a qual a capturou pela boca, mantendo-a presa pelo galho, entre os dentes, a despeito dos espinhos.

Paola voltou à sala de televisão, provocando feixes iluminados em toda a sala ao ligar o aparelho de televisão. Procurava debalde o programa que assistira na noite anterior, ansiando em rever a face da enigmática pantera e compartilhar com a felina a sua peripécia, além de agradecê-la pela deixa. Não localizando, ponderou que precisava descansar. Cruzou a sala e o espelho a convidou. Continuava impecável no vestido preto, examinou as unhas vermelhas e o salto agulha. As palavras de Bia repicavam em sua mente “Ainda vão falar muito de você, darling!”. Bia danada... Sempre com razão, embora, nas mulheres o sentido não abre mão de seu lugar. O espelho sorriu-lhe. Realmente era ela a mais bela! Caminhou, afinal, para o merecido e necessário repouso. Amanhã seria um dia longo e talvez precisasse de uma advogada. 



PESCADOR DE ALMAS




“-Um, dois, “trêis”,
 coroinha um, dois, “trêis”!
Um, dois, “trêis”
Coroinha um, dois “trêis”!...”

Apertei meus olhos para tentar ver quem canta. Ora, certamente pulam cordas; dois batendo, um saltitando e outros aguardando, torcendo para que as perninhas da vez se enlacem nervosas e interrompam o movimento, cedendo lugar para o primeiro da fila. Tudo é tão calmo e alegre que mal posso sentir meus pezinhos tocarem o chão. Possuo asas?  Contudo, seus curiosos, não me indaguem sobre quem sou eu e onde estou. Que horas são, onde moro e como foi que, aqui, meti meu nariz. Nada sei, senhores! Somente percebo que estou em um lugar de rara beleza e candura.  Todavia, há um algo inquieto no ar. Presumo que sejam criancinhas, do contrário não captaria vozes assim tão despretensiosas e dóceis! E parecem alegres! Sinto já pontada de inveja e posso arriscar, pelo tropel, que correm barulhentas e desordeiras. Suponho que estou ladeada por elas, do contrário, não escutaria essas vozes que me rodeiam como uma feliz corrente humana

- “Atirei o pau no gato-to,
mas o gato-to, não morreu-reu-reu...
Dona Chica-ca admirou-se-se
do berro, do berro que o gato deu: Miau!!!”

Também quero brincar, pôxa! Mal eles devem saber que mamãe sempre me ensina uma cantiga de sua época de criança, e eu aprendo rapidinho... Cadê vocês que não me atendem? Já gritei, esperneei, fiz bico, manha, dengo, e até agora, pelo visto, ninguém se importou ainda comigo! Será isso, porventura, pilhérias de atrevidos sacis? Se for, parece-me de muito mau gosto! Se pego um desses, ai, ai...  Diria a eles o quanto estou esfolada por brincadeirinhas sem a mínima graça e em nada infantis, perigosas... Acaso estão agindo como irresponsáveis adultos?! Oh!! Era só o que me faltava!

Céus! Que distração a minha! Queiram senhores, por favor, perdoar essa ingênua e curiosa criancinha, perdida e tagarela... Olvidei de me apresentar, não é mesmo? Na verdade, confesso que não sou dada a esses protocolozinhos. Afinal, tenho certo receio, não sabem?... Medo de que esse mundo não me aceite. Coisa de criança escaldada...  tenho ração deste receio, porque tenho provado desse doce amargo desde frágil sementinha, na barriga de minha genitora, ainda era pequena bolinha que recebia lufada de sucos gástricos, que ao certo queriam dissolver-me... fui crescendo e a bolinha que era formando outros pequenos ramos, e aqui já sei que eram minhas pequenas partes...

“Cabeça, ombro, joelho e pé
Joelho e pé
Cabeça, ombro, joelho e pé
Joelho e pé
Olhos, ouvidos, boca e nariz
Cabeça, ombro, joelho e pé”
Isso mesmo coleguinhas! Onde estão vocês que não os vejo? Então! Fui formando essas partes todas e tinha um cordão na minha barriguinha. Ficava igual balão preso na bolsa dágua. Como era escura aquela bolsa recheada de líquidos densos e aquecidos! Contudo, resisti à arena abortiva. Conquistei mais espaço no terreno limitado e aproximei-me da zona de combate. Posso arriscar em afirmar que essa foi umas das primeiras vitórias – e como essa palavra me faz bem!- de minha vida. Todavia, eram-me enviadas notícias desagradáveis, oriundas do lado externo: conflitos, choramingos, gritos e acusações além de, não raras as vezes, pancadas retumbarem no flácido ovo, a ponto de eu também resolver revidar. Quem sabe desejavam se comunicar comigo e não sabiam a melhor forma de fazê-lo? Iniciei então pequenos chutes nas moles paredes -era até divertido o duelo!

Um belo dia, como toda história deveria ser, fui acometida por súbito ataque de gases de causar inveja a bovinos. Iniciei sacolejos, buscando livrar-me das pontadas que sentia. Tanto fiz que a bolsa gelatinosa que abrigava-me rompeu, deixando sair o líquido quente. Sentia-me imprensada e não tive então dúvidas: estaria sendo despejada dali. Enfim, percebi uma fenda: só poderia ser ali, a saída! Raios luminosos confundiam minha cabeça que já era requisitada por um par de luvas. Resolvi então valorizar que boba não sou! E ao mesmo tempo em que queria sair, retrocedia-me toda, teimosa e vermelha...  Percebi que me chamavam do outro lado e a voz enchia-me de estranha coragem, sentia proteção e segurança. Não seria tão otimista, portanto, a pessoa que me forneceu abrigo. Gritava muito e dizia impropérios. Num impulso, o frio foi ganhando espaço em meu corpo e um repelão fez-me deslizar do então lar. Em seguida, estava eu suspensa pelos pés, completamente nua e novamente de ponta cabeça e recebendo, no bumbum enrugado, salutares palmadinhas. Além disso, minha boca foi invadida por um indicador adulto que removia, com eficácia, resíduos de minha pré-vida. Ficaria realmente indignada, senhores, se não pressentisse que aquelas palmadas eram amigas, educativas, e a inserção não aliviasse-me da sensação de sufoco! Falavam todos ao mesmo tempo e isso me causou um incômodo tal que resolvi protestar, chorando desesperada, enquanto percorriam todo o meu corpo com um pano cheiroso e refrescante. Tremendo alívio envolveu-me, quando o cordão tornou-se leve, quase imperceptível, depois de reduzido a um pequeno toco preso ao meu corpo. Enfim, estava livre daquele cano de descarga, que tanta seiva ruim fornecia-me. Utilizaram da tática infalível, a preferida das gentes grandes. Acalantaram-me, na intenção de conter meu primeiro levante...

“Galinha choca,
comeu minhoca!
Ficou pulando,
Que nem pipoca!”

Que susto!! Ora,  que é isso? Desculpem, por favor, a interrupção. Fui quase atropelada por arruaceirozinhos que há pouco cruzaram meu caminho, em debandada cantoria, totalmente alheios à minha presença. Sequer me convidaram para acompanhá-los, esses pestinhas! Abusam de minha paciência, não acham? Então! Olha que também os chateio com essa história longa! Destarte, desconheço qualquer pontuação ou espaço que não expresse, tal e qual, o ocorrido.  Pois, bem: começaram a ninar meu corpo e reiniciei o protesto, distribuindo nova safra de berros, tão alta quanto a anterior, que consegui ser envolvida com felpudo tecido. Quase simultaneamente direcionaram minha cabecinha a uma protuberância, macia e gorda, e ainda berrava quando selaram-me a voz com minha primeira refeição, líquida e quente, a qual suguei com sofreguidão.Adormeci, enfim...

“ Boi, boi, boi....
Boi da cara preta...
Pega essa criança
que tem medo de careta...”

Os vandalozinhos corriam ao longe, talvez brinquem de pique esconde e de roda sempre cantantes. Posso ver agora inquietos vultos. Como correm! Tento gritá-los, embora parecem não notar minha presença... Acho que estão pilheriando comigo, para que eu não conte para vocês a minha historinha... Se ao menos deixassem-me brincar...Bom, suspeito então de que não devo ter comportado muito bem nos trópicos e o meu castigo aplicado já no primeiro dia em que fui apresentada à luz. Não imaginam como deixei a maternidade: Enfeitada com lacinhos no cabelo, pagãozinho rosa, sapatinho, talquinho e toda sorte de “inhos” possíveis. Fui fazer o meu primeiro passeio nos braços de mamãe – se assim posso dizer-.Estranhei, porém,  o fato de ter sido envolvida, desta vez em uma sacola plástica, tornando a conviver com a escuridão. Para completar, o invólucro era atado nas extremidades, impossibilitando-me de usufruir do ar, que tanto gostei de respirar. Desta vez – oh, irônico destino! -não tinha sequer um tubo,  para atenuar meu desespero. Mal começamos nosso passeio houve breve pausa nos passos de minha condutora e segundos depois, fui friamente arremessada aos peixes, oscilando na cadência da lagoa, a atrevida água ganhando terreno por entre as frestas da urna plástica. E agora? Quem pode me ensinar a nadar? Ela me deixou sozinha... Tampouco quis ficar ali para ensinar-me os primeiros movimentos? Até que gostaria de brincar naquela água fria... Não poderia ao menos remover a sufocante sacola? Decidi então -precavida que sou- repetir a estratégia anterior: Gritei o mais alto possível, senhores! Intensificava o alarde e já estava quase afônica, quando senti algo empurrando-me, como se tentasse resgatar minha roupa plástica.

- Um bebê!! – alguem gritou, também lá de fora, uma tanto mais alto que eu. Será que seria tão feia, a ponto de gritarem apavorados ao simples olhar?

Fisgaram-me, com intensidade maior que a última. Estava, em poucos segundos, embalada por outros braços e providenciais cobertores entre correrias e desconexas palavras, algo como hospital, salvar, maldade! Pedidos de socorro ecoavam, e pipocavam denúncias acerca de uma moça que ali passeava, minutos antes,  conduzindo ao braço sacola plástica. Quando me deixariam em paz?

“Pirulito que bate-bate,
pirulito que já bateu!
Quem gosta de mim é ele,
quem gosta dele sou eu!.”

Ouço passos... será alguém? Já era sem tempo! Quero brincar!! Cansa-me a narrativa,  e acredito que vocês também compartilham desse mesmo estado. O que querem, portanto? É parte fiel do meu conto de fadas...

-Quem é você?  - Tento me antecipar.

-Oi... Eu sou o João... E você, quem é?

-Uma ansiosa criança – batia com meu pé direito no chão para convencer ao coleguinha da minha impaciência -perdida nesse imenso bosque, ouvindo cantigas e correrias. Sequer sei quem são os donos desse som. Quero alguém para brincar comigo! Pode me ajudar Sr. João? Aproxime-se, sem medo. Tentei chegar o mais perto que pude, o suficiente para ver o tênis do João, bem como a bermuda e a camisa. Toda a vestimenta salpicada de vermelho! Aterrorizada, recuei assim que inteirei-me da composição. Será que ele teve a mesma formação dos mebros que eu?

- O que houve com a sua cabeça?!?  - foi o que pude dizer, perplexa com o corpo infantil, composto até o pescoço, onde se esperava sapeca face e arrojado boné.

-Não se preocupe, coleguinha. Tenho cabeça sim e ela está sendo recuperada pelos cuidadores... pelo que vi e senti, quem deve não ter cabeça são aqueles que fizeram isto comigo... – apontou com o indicador um povoado, ladeado de montanhas, fincados por palmeiras e costurado por aves diversas e coloridas, como caleidoscópios alados. Também ornava a paisagem regiões de imensas praias, cachoeiras e rios. Embora não me recorde bem, pareceu-me local familiar, além de ser um lindo lugar - Procuro minha mãe e minha irmã, que estavam comigo quando fomos atacados. Fugiram com o carro de mamãe e eu fiquei preso no cinto. Fui arrastado até quando me lembro e acordei aqui... Não as viu por aí? Minha mãe é alta e bonita e minha irmã do seu tamanho... Estranho... Ouço as vozes delas me chamando... Parece que choram... Estou preocupado e por mais que vagueio, não consigo encontrá-las! Os mais velhos me disseram para ter calma, que vou vê-las, mas tenho tantas saudades! –depois de uma breve pausa, mantendo a voz dolente e pacífica, finalizou - Devo continuar a busca, depois volto para a gente brincar, tá?

- Tá bom, João. Permanecerei por aqui. – Retornei, entre frustrada e assustada - Não demore, viu?

Continuei também minha peregrinação e, somente segundos após o afastamento de João, atinei-me ao que acabara de presenciar: aquele garoto, pouco crescidinho, conquanto igualmente criança, integralmente pincelado de sangue como se acabasse de vir ao mundo. E sem a cabeça! Ainda assim, disse-me coisas... Seus lábios, a língua, não vi... Quem disse para ele?

“-Aaaaaaaaaaalecrim
alecrim dourado
que nasceu no campo
sem ser semeado...
Oh, meu amor,
quem te disse assim
que a flor do campo,
é o alecrim?”

- Ei! Opa! Não olha onde anda?!? 
- Desculpe-me... –justifiquei, após ter esbarrado na desafinada cantora.- É que estou sozinha e procuro alguém que queira brincar comigo. E ademais tenho dificuldades de andar por aqui... não enxergo direito as pessoas e quando assusto estão muito próximas...Qual é o seu nome, amiguinha?

- Violeta- respondeu, melindrosa. Acho que não gostou da intimidade- Eu te vi passando desde muito tempo– Ela disse em tom de competição infantil. Coisa nossa. Houve breve pausa e ao longe pude ver sua face exibindo tristeza no olhar, que teria a cor condizente com o nome anunciado: a íris deflorada, desfalecida e perdida. Estava a menina estranhamente esticada no piso coberto de fina grama, como convalescente de enfermidade grave -Tenho medo de brincar... – Inclinou em minha direção e pude notar-lhe pueril luto - Olha aqui, a boneca que ganhei... Ela diz papai e mamãe... A sua fala também?

-Não... – respondi, em mal disfarçada inveja. Vou pedir para o meu pai uma, igualzinha a esta.

- Anteontem foi o meu aniversário e batizado e teve festa! Fiz isso – disse, mostrando-me quatro dedos - E você, quantos anos tem?

Retornei, exibindo um dedo a mais que o demonstrado pela menina enferma. Acho que menti. Não sabia sequer minha idade ali e suponho que todos blefavam neste quesito.

- Você tem um pai?

- Tenho. –respondi, tímida e incerta - Todo mundo tem pai, ué...

-Eu acho que não...

Violeta, mantendo-se ainda deitada,  ergue a saia que lhe cobria as pernas. A delicadeza do algodão ostentava um tecido de cor branca e ornado com desenhos, onde miniaturas de animais interagiam-se. Não tão cândido estaria o conteúdo que o pano cobria, antes denunciava grotesca cena: a virilha dilacerada e com pequenos coágulos de sangue, distribuídos na região claramente violada.

-O que é isso?- recuei, tão assustada quanto antes.

-Meu padrasto...

Fora cruelmente violentada – lembrou-me o pequeno João o tom de voz que despertou dos lábios de Violeta, ao narrar o infortunio –Teve festa, né? Ele estava muito alegre, bebendo e usando uma “tal de droga”. Parece que quis fazer uma brincadeira comigo. Por que eles gostam tanto de brincar assim com crianças?

-É! Vai ver que não sabem distinguir que nós, crianças, não nos adaptamos a algumas peripécias de gente grande. Você disse droga... O que significa? É coisa ruim ou boa? Sabia que uma mulher, onde eu morava, quando era sementinha, tratou-me como droga, na frente de repórteres e policiais, quando fui encontrada, boiando na lagoa?

- Ah, é? O que deve ser então isso? Também não conheço... Parece que não é coisa boa e acho que até faz mal. Tá vendo? Tenho que fazer repouso e tomar alguns remédios que aqui me trazem, para curar o dodói. Aqui tem muitos tios e tias que cuidam da gente. Vem cá! Gostei de você e já nem tenho medo mais... Assim que eu melhorar nós vamos brincar de casinha, tá? Moraremos juntas, eu e minha boneca, você e a sua, viu? Gente grande não vai poder entrar na nossa casa... só os que moram aqui.

-Viu! –apoiei veemente minha amiguinha. No entanto, ponderei: será, Violeta, que toda gente grande é do mesmo jeito?

- Não sei não... – Titubeou, encarando-me. Seus olhos já assumiam tom lilás e a menina revivia, lá no poço. - Bom, a gente os deixa entrar, mas a escolha da brincadeira é nossa, e não deles.

 - Combinado! -  Finalizei. Uma súbita onda de calor envolveu-me e sentia meus pés em brasa. Levei a mão à testa e abanei os cabelos que suavam já -Cruzes, Violeta... Que calor, esse! Não está sentindo?

-Estou... – o suor brotava da fronte de minha nova amiga- Já sei quem é. Não se preocupe.

-Incomodo vocês? – outra voz de menino requisitou nossa atenção, e pude visualizar seu corpo chamuscado, caminhando ao nosso encontro -Procuro ajuda, para salvar meus pais!

- Um piromaníaco! –Gritei, apavorada, indecisa portanto se fugiria deixando ali minha nova amiga

- Não fujam... Não tenham medo, coleguinhas... Apenas procuro ajuda para meus pais...

Explicou-nos o resumidamente o ocorrido: passeava com sua família quando foram surpreendidos por meliantes que não se deram por satisfeitos apenas com o roubo dos pertences, definindo em brincar um pouco com as presas. Amarraram a todos dentro do carro e atearam fogo. Ele conseguiu se desvencilhar das cordas e correu para tentar socorro, sucumbindo ao desmaio ainda no percurso. Despertou-se ali, próximo de onde estávamos, perdido e alheio a tudo.

- Ainda bem que saí do carro! –continuou, em tímido sorriso e aspirando velada esperteza como um incauto super-herói –quero conseguir auxílio para meus pais. Vou procurá-los e volto depois para brincarmos!

Mal se distanciou, assomou-se, não se sabe de onde, outras três crianças. Confusa, deduzi que estaria em uma colônia de pirralhos, assim como eu, embora todas cicatrizadas e adulteradas eternamente, em suas breves vidas. E notei também que conversavam entre si, demorando em perceber minha presença.Tornei à conversa com Violeta, tentando ignorar os demais, assim como fizeram comigo. Senti fome.

- Violeta, tem aí uma bala? Estou com uma fome...

Foram unânimes em manifestar, já que ouviam indiscretamente o diálogo entre nós. A primeira delas abriu a camisa exibindo o sulco, bem na altura do peito. A outra suspendeu os cachos dos cabelos e uma medonha fenda saltou, próximo à nuca. Por último, a terceira ostentava perfuração na virilha. Todas elas, límpidas e prósperas, encontradas por balas perdidas, cuspidas ao léu por adultos que talvez brincassem de mocinho contra bandido em amargos  disparos, recheados de fel.

- Ali tem mais um montão de balas - apontaram para o barulhento grupo que agora vinha juntar-se a nós.

“Saco furado!
Saco furado!
Saco furado!”

Vi vários meninos, maltrapilhos e desordeiros, todos com perfurações pelo corpo. Confundiam-se na narrativa e todos queriam o domínio da conversa, atropelando-se mutuamente, como formigas atacadas.  Informaram que estariam entre sono e sonhos de auroras na ocasião em uma praça de igreja e receberam a fatal doação. Inúmeros confeitos, lançados a esmo alojaram e interceptaram a quimera deles, pequenos andarilhos, culminando com suas doces e miseráveis presenças no canteiro utilizado como manjedoura. Um deles mostrou-me apontando o dedo um local bonito onde fincaram a pequena cruz em memoria deles, ao lado da imponente catedral, onde anos antes repousavam. Estavam na cidade maravilhosa.  Pouco acima, no lado oposto, outra opulenta edificação se impunha, a estatueta cor de gelo, braços abertos, feição séria em sua barba e reto em seu olhar, como se abençoasse e velasse a região.
Aumentava a cada segundo a quantidade de crianças, todos relatando a sua história, o motivo que culminou com cada ingresso deles, naquele espaço. Confundiam-se nas datas, coisas de anos de intervalo entre um caso e outro, porém em comum a conclusão de que não houvera, ainda, ação que neutralizasse as barbaridades a que foram presenteados. Dedos nervosos e minúsculos direcionavam ao longínquo e belo globo, recheado de muito verde e também água. Cada qual indicava, em ponta de saudades, a região de onde veio. Todos miravam e apalpavam-me, descarregando dezenas de questionamentos. O menino decapitado juntou-se a nós, sendo imitado pelo outro, que mantinha o corpo ainda rubro do fogo. Após desordenado falatório e desentendimentos, birras e provocações, finalmente decidimos qual brincadeira faríamos. Agora sim! A festa ficaria boa!

“-Morto... Vivo!”
“-Morto... Morto!”
“-Vivo... Morto!”
“-Morto... Vivo!”

Violeta era quem ditava, já que estaria impossibilitada de atender à demanda que a brincadeira exigia. Assim mesmo, comandava com visível alegria, enquanto subíamos e descíamos, entre risos e gritos... Quem errasse iria sentar-se próximo à anunciante, e aguardar até o final da contenda. Eu estava quase ganhado! Restava apenas um... será que morri?

-Esperança! Esperança! Acorda, meu bebê! O sol já raiou, coração! Estava sonhando, o meu neném? Que suadinho está meu anjo, meu querubim!

Acordei, perdida e assustada com mimos felizmente infindáveis. Minha mente dançava entre desordem, apertos e chamegos recebidos e as imagens de meus amiguinhos aos poucos foram dispersando, embora lembrava de tudo que conversamos. Ganhei um beijo na face e procurei retribuí-lo, mal posicionando os lábios e lambuzando a pele de minha mãe.

-Bom dia, mamãe!

-Bom dia, minha flor!

-“Manhiêe”, conta de novo aquela história do pescador de almas, que encontrou uma princesinha perdida no lago?

-Depois, filha. Vamos tomar o café agora... À noitinha reconto, tá bom?...

Vi que ela tentou se esquivar e lágrimas já lhe embebiam os olhos, como sempre fazia ao se aproximar. Talvez ela não tenha viajado ou vai viajar ainda onde fui... E saber que aquele o bebezinho sobrevivente a aborto e abandono estaria ali agora, beijando a face dela, afinal qual é a nossa idade? Quanto a vocês não sei, mas esta história sairá de minha mente à primeira boneca que eu pegar para brincar após o café... Mas ficará la no fundo o que aprendi trouxe de lá... temos várias formas de escrever nossa historia e podemos fazê-las... Aqueles amiguinhos estão revisando a que escreveram para eles apagando aqui e ali, fechando feridas, aliviando dores, localizando o perdido. Passaram por essa historia daqui pra que possamos escrever melhor a nossa.. .

Minha mãe, despertou-me novamente

_Esperança, Querida! Quer dormir mais um pouco? Hoje vou te ensinar uma outra cantiga. Ela é muito, muito, muito bonita, e a mamãe ouvia sempre quando era menininha, igualzinha a você...Quer ouvir?

-Êbahh! – Espalmei as mãos e me concentrei.

Como pode, peixe vivo
viver fora d’água fria...
Como poderei viver?
como poderei viver?
Sem a tua, sem a tua...
Sem a tua  companhia...

A voz dela era doce como a das sereias, e ela sempre contava para mim uma história do tal pescador, que em uma bela manhã de sol, encontrou uma criancinha boiando na lagoa azul. O astuto herói tomou de sua vareta mágica e, de um só lance, pescou o nenenzinho que chorava, desprotegido, e o transportou a braços realmente maternos. As garças cantaram, os peixinhos saltaram alegres e até o improvável tubarão fez festa, louvando a atitude do benfeitor humano... Não me cansava nunca de ouvir essa história. Ainda hoje, à noitinha, vou pedir a ela para que conte de novo.