_ O que vai querer hoje pro almoço, Dona Bela? – disse a
negra, com uma das
mãos segurando a colher de pau e a outra na cintura, aparentando um robusto bule- O "orégo" cabô e o “ai” tá quais no fim. – um suspiro dilatou suas já
dilatadas proporções- Num gosto de cozinhá sem meus tempero.
Izabelle, a patroa, desconversou e foi para a sala de
televisão. Desistira de ensinar à cozinheira sobre a nomenclatura dos
ingredientes. Orégano soa melhor e mais saboroso que “orégo”... “Ai”... Senhor,
que diabos seria isto?!? _Alho, Judite, A-lho!
A outra também dava de ombros. Engolia o “s” ao final das
frases sem cerimônia. Uma luta inglória da patroa. Judite já viria temperada
com o dicionário do interior de Minas Gerais e toda sua infinidade de
substantivozinhos: cafezin, anguzin, franguin. Acostumada ao eterno calor da
lenha que se mantêm independente de chamas, em seu interior, a negra não teve
dificuldades em empregar-se na capital e, na cozinha, operava milagres com suas
colheres de pau, conhecedora de temperos e ervas como ninguém. Prática com
insumos, plural com o os cozidos e fritos, disponibilizava pratos com rapidez e
qualidade impecáveis.
Já a patroa apreciava os pratos da cozinheira, embora viesse sendo entupida de atrações onde
consultores de culinária se portavam como reais alquimistas, ora ensinando a
fritar ovos no vapor, ora inventando mirabolantes pratos de complexidade sem
igual, quase sempre resultando em um magro palito com ervas e decoração de
cremes a ser servido em rica louça. O tempero marcante seria a afetação. Sim, seria o chic, o creme de la creme que seduzia a cada dia a patroa e seriam incansavelmente
discutidos em roda de amigos, em jantares e coquetéis.
Izabelle, vez por outra, convocava à cozinheira à sala de
televisão ou exibia um vídeo pelo celular para compartilhar uma ou outra
exibição do gênero, esperançosa de que a matéria aguçasse o apetite desta,
ansiando em metamorfosea-la em, quem sabe, em uma Cheff. Ao que a outra sancionava, com as mãos na
cintura e pano de prato ao ombro:
_Uai, Dona Bela. O moço tá ensinando fritar ovo?-
Gracejava, exibindo a beiçola. – Num vi de tudo ainda nessa vida, meu pai...
Quero saber se ele ensina botá ovo. Fritá já sei é muito!- concluiu, desta vez
com ruidosa gargalhada, apressando-se em fiscalizar o feijão no fogo.
Ocorreu que renomado Cheff de cozinha, mineiro de parto e
europeu de moradia há mais de vinte anos, visitaria o Brasil para um evento
gastronômico, e, segundo a programação, viria meter sua colher aqui nas Minas Gerais,
sua terra natal, provavelmente distante de suas lembranças. Corria aos quatro
cantos que o mago das panelas exibiria, em feira gastronômioca no
Minascentro, o afamado “frango púbere”,
prato de sua autoria consagrado em Paris. A produção não economizou na divulgação,
onde chamadas eram anunciadas em vários meios de comunicação, fotos diversas do
prato expostas de ângulos e tamanhos distintos e o nome em língua estrangeira
“pulet pube” seduziria mais ainda os amantes da boa mesa. Isabelle se apressou
em adquirir os limitados convites, ciente de que haveria apresentação dos
pratos conforme anunciado. Ponderava que se a onda era repaginar o espaço
gourmet, porque não repaginar também a tradicional Judite? Poderia não ser de
tão mal. Ela aprenderia pratos requintados, oportunamente o nome dos
ingredientes, e poderia fugir dos padrões mineiros de cozinhar. Algo mais
apresentável, mais fino...
Nesse pensamente, tornou à cozinha, intencionada:
_Judite...
_Hum...
_Temos um programa amanhã, querida- disse arregalando os
olhos puerilmente- Um evento com o Cheff Flavio Moss. – mirava a cozinheira que
arregalava também os olhos.- Ele é brasileiro, daqui de Minas e mora na França
há mais de vinte anos. Um guru em gastronomia, renomado consultor. Vai
apresentar seu famoso prato “pulet pube”, dar oficinas e dicas para requintarmos
nosso espaço gourmet! Prepare boa roupa para irmos.
A cozinheira franziu a testa. Queria saber o significado de
Cheff e o nome do prato dito com biquinho. Isabelle explicou, procurando
sintetizar e convencer a empregada em acompanhá-la. Temia preconceito dos
convidados para futuras recepções por causa dos pratos regionais que servia em
casa. E como os apreciava! A outra
assentiu em prestigiar o conterrâneo, afetado a gringo.
O evento iniciou com ligeiro atraso e elas se acomodaram nos
primeiros lugares reservados à platéia onde se via câmeras ocupadas em
transmitir ao vivo a apresentação para as redes de televisão e internet. O
stand montado proporcionava a visão de uma bem equipada cozinha. Ao fundo,
espécies de legumes graciosamente dispostos em cestas e cartaz informativo das
propriedades nutricionais, plantio e origem destes. A lado, uma graciosa gaiola
abrigava um frango de vistosas penas e carnes, que se entretinha em bicar grãos.
Serviria de exposição para o público onde uma moça explicava sobre o cultivo do
animal titulo do prato apresentado, a alimentação, cultivo e tempo de abate. Sobre o
balcão os insumos para o prato principal, já com outra ave similar, já abatida e preparada
para execução da apresentação. Judite observava a tudo: o amplo espaço e beleza
do salão no Minascentro, embora estivesse por entender o porquê de tudo aquilo
para cozinhar um simples frango.
Com efeito, o mago Moss apareceu sobre aplausos, agradeceu
em francês e português, anunciou suas credenciais bem mais extensas que sua
própria figura contida e miúda. Judite estranhou o pequeno, achou-o “prosa”.
Cutucou a patroa que decifrou sua impressão.
- Não Ju.. ele não é pedante... São apenas trejeitos de sua
terra...
Após palestra sobre tendências, novos temperos e afetadas ervas, o cheff
elencou características do prato principal, o “pulet pube” como era conhecido
em seu bistro, na França. Apresentou a ave reclusa, que deveria ser
preparada ainda adolescente, sendo portanto mantida em cativeiro especial
observadas as ações do clima e alimentação rigorosamente selecionada . O mestre
iniciou por demonstrar em brilhosa tigela de inox a própria matéria prima limpa
e desossada, de cor rosada e atraente. Temperou-o, enaltecendo cuidados e
mesuras na quantidade ingrediente. Era um nanico cheio de modos, com passos
comedidos e sinuosos, gestos das mãos um tanto melindrosas. Protestou contra
uma das luzes de filmagem, afastando o câmera no ápice de sua afetação,
alegando que até a inserção da luz poderia alterar o teor do prato. Judite assistia a tudo, incrédula. A cozinheira custava acreditar que ali ainda estavam,
perfiladas e atenciosas, três assistentes além do cozinheiro para preparar uma
simples galinha. Ficou ainda mais estarrecida quando da montagem do prato já
pronto que resultou um pedaço ínfimo de carne compatível a uma rã, depositado
no imenso prato de louça branca e ornado com galhos de alecrim, manjericão e um
molho cor vinho circundava as bordas do prato. O arranjo, aspirando a obra de
arte, parecia afugentar apetite dos presentes.
Foi sugerido espuma de batata inglesa para acompanhamento. Fez menção de
gargalhar a cozinheira:
_Aquilo é uma perereca “atrupelada”, Dona Bela! -disse,
sacudindo o peitoril em possível convulsão de riso.
O cheff olhou para seu público aguardando talvez aplausos e
estes, incrédulos de que findava a apresentação aguardavam talvez a sobremesa.
Pairava no ambiente a ausência de empatia com o anfitrião talvez pela impressão
de complexidade ao mensurar os temperos, alguns já bem conhecidos em Minas, no
entanto apresentado com nomes excêntricos e exagerada recomendação na
utilização, o que confundiu os expectadores. E o titular do prato, praticamente
canonizado pelo apresentador ao apresentá-lo, parecia o ter distanciado do
povo, por ter sido exposto com algo como sacro, intocável. Uma palma soou
tímida e solitária na terceira fila, e lá mesmo morreu, sem a companhia de
outras. Buscando minimizar o desconforto, o guru do paladar cogitou por
convidar um expectador para provar o alimento, e seus minúsculos olhos por trás
do óculos pousaram em Judite, a qual levantou, após orientação proferida, entre
os dentes, pela patroa.
_ Veja lá o que me apronta, Judite.. Por favor.
Ela foi conduzida por uma das assistentes ao pequeno palco
e recebeu afago do Cheff. Foi lhe oferecido o prato que ela olhou com
estranheza. Eis o frango púbere, acompanhado de espuma de batata...
- Vai sentir que está comendo faisão, mileide. Aqui em minas não tem... aproveita!
Ela abriu facilmente a boca em sorriso. Se já comera não
sabia, mas desconhecia o tal do faisão. Gostou, entretanto, do mileide. Provou. O Cheff a mirava e sua
expectativa era compartilhada com todos no local, com exceção da patroa que
misturava aflição com o sentimento geral. Judite mastigava com motivação
bovina. Encabulada, olhou ao derredor, viu temperos diversos. “Tem orégo”... Identificou, enquanto
observava ramos de alecrim, coentro, tomilho e outras ervas. O odor aromático
da cozinha cenográfica despertou-lhe desejo de interagir com as panelas. Ao
desviar os olhos do prato, pousou-os na ave que ainda comia em sua elegante
gaiola e, sentiu que trairia a patroa com relação ao controle.
Está vendo aquele lindo frango? Então, é ele que prova agora. – O perfume do
afrancesado confundia o ambiente. - Que tal? Faltou-lhe algo?- Ironizou o
pequeno astro.
Izabelle remexeu no assento e quis intervir com gestos,
quando notou que a empregada fez também gesto de cabeça ao interlocutor:
- Leva a mal não colega, mas tá faltando sim.
Dito isto, abandou o prato sobre o balcão para, em seguida,
investir no fogão acendendo a todos os suspiros possíveis. Como tentáculos
tivesse, abria e fechava gavetas recrutando talheres e panelas, depois
selecionou ervas e tubérculos. Colocou água para ferver e iniciou o preparo do
arroz. Feliz como criança em praça processou como humana centrífuga, cebolas
pimentões, tomates, alhos e alguns ramos os quais cheirava, identificando o
aroma. A assistência, a esta hora muda
e apreensiva do objetivo da convidada, investia os olhos ao palco para não
perder a mínima ação, inebriadas, portanto, com o cheiro de arroz torrado com
alho. A cozinheira explicou que estaria “afogando” o arroz, quando despejou
certa quantidade de água fazendo borbulhar e perfumar ainda mais os arredores.
Tapou-o para que ele “chegasse”. Conforme narrava ao referido colega e às assistentes.
O Cheff buscou socorro com a organizadora do evento e esta foi ao encontro da
inusitada figura, na clara intenção de demovê-la. Não se sabe se a empregada de
Izabelle a ouviu ou todo seu ser convergia à tarefa culinária de modo que,
dando de ombros à outra, dirigiu-se à gaiola resgatando o bucólico frango, até
então mero coadjuvante do espetáculo. Ela examinou, revirou, apalpou. Se era
púbere ou não a ave, sua adquirente provavelmente ignorava. Fato é que com
todas as testemunhas possíveis a negra uniu as asas e pés do animal e travou-o
entre suas pernas enquanto segurava-lhe pela cabeça. Com a outra mão apanhou
uma das facas, depilou parte do pescoço do imobilizado frango, provavelmente mais apreensivo que outrora, deu
três palmadinhas com a base da faca, como em ritual, na parte limpa do pescoço,
conferindo o volume da veia que não tardou a anunciar, desferindo um corte na
região preparada, aparando imediatamente o sangue em uma tigela que deixara no
chão para esse fim. O sangue caiu feito água de mina, calmo e servil no
recipiente, e o som da queda misturava com murmúrios dos assistentes O
anfitrião parecia não acreditar, deixando-se tombar em um assento próximo à
geladeira. As câmeras, moviam-se preocupadas em registrar todos os atos da
cozinheira.
Já organizadora, ao presenciar o destino do frango
ornamental, manteve considerada distância do campo onde Judite operava. A ave
ainda tremelicava para se despedir da vida quando foi liberta das pernas de Judite
para ser mergulhada em água quente. As mesmas mãos que lhe fecharam os olhos
agora a despiam de suas vestes, pena por pena a deixando sobre o balcão, nua e crua, para vista de todos. Judite
limpou a carne, aqui e acolá, tirou e lavou, virou e mexeu e a reluzente panela
recebia o corpo já fracionado, alem de óleos e temperos. Ela agora já
assoviando, buscou quiabos na cesta, procedeu a limpeza e investiu em torná-los
dezenas de rodelas.
Ao sacrifício do frango, alguns assistentes tiveram menção
de se retirarem embora algo aparentemente o encantassem de forma que ali
permanecessem. Izabelle, inerte, sabia ser impossível deter sua empregada e que
cozinhar, para Judite, era ato tão sacro quanto o prato do dia. Ela jamais
tolerava palpites ou que qualquer um mexesse em suas colheres de pau,
destampasse panelas ou furtasse quitutes. Não media temperos a não ser com
olhos e provava a intensidade pingando o caldo nas costas da mão, lambendo,
conforme acabara de fazer ao inspecionar o frango.
Judite localizou o fubá de milho e sorriu.Como se estalasse
os dedos, já tinha na travessa fumegante angu, ornado com folhas de manjericão.
A cozinheira concluiu o projeto, bastava orientar a uma assistente sobre a
armazenagem do sangue já coagulado, ofertado pela ave. Pegou de um prato e
serviu primeiro o angu, para, na seqüência, cobrir com porção suculenta do
frango com quiabo. Ao lado aninhou generosa colher do arroz soltinho e
cheiroso. Ofereceu a refeição ao Cheff, como retribuição. Este quis esquivar
talvez por orgulho, embora o aroma há muito o traia. À primeira garfada semicerrou
os olhos para depois abri-los e encarar a negra. Olhar de filho para mãe, de mago para bruxa, saudoso e marejado. Contemplava-a como se esta o transportasse à sua raiz,
simplesmente com aromas e paladar. Após a refeição sua vontade era de arrancar
a bandeira do estado presa ao mastro a um canto do salão para cobrir em manto a
santa cozinheira. Sentiu que se demoraria por estas terras.
A cozinheira piscou para a patroa que já reservava seu
lugar na fila. Se feijão houvesse, fatalmente seria necessário colocar mais
água porque o simples prato de Judite despertou as entranhas dos presentes.
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