A luz veio forte,
invasora, maltratando seus olhos embebidos de suor e lágrimas. Buscou fechá-los
e o ardor das gotículas salgadas aumentava o seu tormento. Ao abri-los
novamente, visualizou o grande avental branco com bordado delicado em azul bebê
em um dos bolsos. Não conseguiu ler o nome da doutora. Inclinou pouco mais a
cabeça onde se via um pescoço alvo e fino seguido do rosto languido e também
delicado o qual contrastava com grosseiros óculos aparentemente cirúrgicos.
Estava incomodada, a maca parecia-lhe estreita maltratava-lhe a posição em que
estava deitada. O zunzum de aventais brancos ao seu redor soava-lhe algo de
muito mau gosto.
“Força mamãe. Força! Vamos conseguir... já está
quase!”- dizia um destes aventais, inclinando sobre si e fazendo movimentos
circulatórios em seu ventre.
Olhava de um canto
para outro. Tudo rigorosamente branco, cheiro forte de álcool e demais produtos
hospitalares. Uma bandeja forrada de papel branco com vários instrumentos e
frascos. Queria gritar para que todos dali saíssem e a deixassem só. A dor era dela,
afinal. E era uma dor teimosa, randômica e integral. Todo o seu ser doía. E ela
ali, cercada de guardiões falantes e agitados. Ora vasculhavam seu ventre, ora
regulava a abertura de suas pernas e transitavam, alvos operários, com seus
ungüentos, tesouras, e frascos. Todos pareciam mirá-la, em religiosa vigília,
atentos a qualquer movimento seu para o pronto auxílio. Sentia-se o pior dos
demônios, cercada, impotente para reagir segundo suas vontades incapaz de
vislumbrar caminhos de sair dali.
Definitivamente, não
eram estes seus planos... Um bebê, maldita barriga! Indo intrometer-se em sua
carreira então promissora do trabalho e universidade. Ora invadida por um
intruso, que lhe alterava os planos, as formas e compulsoriamente a desviava, logo
ela, tão determinada e independente, avessa à maternidade, mesmo porque não lhe
sobrava o tempo no atribulado ofício, a pressão por resultados e metas, além do
curso acadêmico. Ora, quantos namoros abortados e matrimônios ignorados e degolados
pela sua trajetória profissional? Quantas promoções, viagens, compromissos
profissionais? No auge de sua carreira na empresa, ser interrompida desta
forma? Não nascera para o cozer, amamentar e ninar, muito ao contrário, negava
peremptoriamente, apregoando que a mulher de hoje ocupa e tem que ocupar
espaços estratégicos, sendo responsáveis por grandes organizações e projetos e
isto seria o suficiente para negligenciar qualquer concepção de matrimônio e
conseqüências deste. Sangrar regularmente, vá lá, embora filhos, isso não! Não
conciliava absolutamente a maternidade com trabalho, lazer e estudos. A seu
ver, futuramente se ajeita, se adota, se apadrinha se assim for necessário.
Os óculos pareciam ainda
mais enormes na face magra da doutora, teimosa doutora, que repetia a todo o
momento ”força, mamãe!”. Aquilo
definitivamente não ajudava. O termo mamãe provocava náuseas na parturiente,
aumentado sua contrariedade e dores. Ardia de ódio e desprezo por tudo e todos
dali e excomungando o namoro que lhe plantou aquela semente teimosa. Semente
intrusa que crescia infiltrando e adiando seus planos de vida, como se dela
fosse, resistindo a todas suas rejeições, em tudo de abortivo que pensara e
utilizara a gestante. Teimoso feto. Ela odiava aquilo tudo. O parto, primitivo,
brutal, as pessoas, o cheiro de gente nova. Tão logo acabasse o entregaria aos
cuidados da tia, conforme planejado. Alguns dias de repouso e retornaria à sua
vida, sua atribulada vida.
A dor a acordou dos
pensamentos. A dor bíblica, registrada e
imputada ao seu gênero. A dor do Gênesis, do inicio, da luz. O ser dentro de si
parecia desafiá-la a um desfecho. Sentiu sufoco, aumentaram os suores. Ainda ouvia
confusas vozes ao seu redor, como se torcessem por ambos, ela e o outro, para
que alcançassem ao mesmo tempo a linha de chegada. A cabeça doía, em espasmos
tormentosos. Os olhos ardiam e a boca secara como sua vontade de estar ali. Todo
seu corpo em choque e ela sem domínio algum. Tentou se levantar e viu que nem
se a deixassem não conseguiria. Seria a hora, e um urro escapou, gutural e longo, de seu
interior. Os choques foram dispersando lentamente e os suores, agora em grande
quantidade, como se libertassem dos rígidos poros. Ouvia sorrisos e frases mais
alegres, um tilintar de metais sendo manipulados. Alguém usou um dos frascos e
o cheiro de álcool invadiu o local. Breve silêncio e subitamente o choro
entrecortado a princípio, depois longínquo a fez conectar com algo. Como se o
som fosse codificado e sua mente decifrasse a mensagem, conquanto ainda assim
negava o que acabara de presentear ao mundo. A médica tratava da primária
assepsia ao recém nascido, envolvendo-o em fina manta e entregou-o a mãe. Esta
o vasculhava com estranheza, mas não com olhos de outrora. Foi quando os
olhinhos negros e inéditos da pequena figura fitaram os seus. Ela vacilou por
breve momento. O segurava já mais inclinada e contraiu a narina como e buscasse
algo pelo olfato. E assim foi aproximando o pequeno ao nariz, iniciou a cheirá-lo,
parte por parte, cabelos, olhos, face rosada e todas as dobrinhas possíveis. Na
seqüência, e para estranheza da equipe
médica, seguiu ainda a vistoriá-lo e lambeu-lhe a face. O bebê cerrou vagarosamente
os olhos e tinha a feição de quem reconhece o acalanto e seus dedinhos
moviam-se, talvez confortado por não ser mais um feto, talvez ciente de
reconhecer o responsável em lhe conceder afeto.
Ao encostá-lo ao seio, a boca do miúdo, rosada e também miúda se
conectou ao bico do mamilo familiarmente , sugando-o sem cerimônia e a mãe, que
havia lhe lambido a sua face, inclinou mais ainda seu corpo para continuar
lambendo o tenro corpo, como se o limpasse
resíduos de placenta e gotículas de sangue em todas as partes possíveis,
ao fim conchegando-o melhor ao colo.
Todos em volta,
espantados com os excêntricos gestos, trocavam olhares e murmuravam estando portanto
invisíveis à que acabara de dar à luz. Ouviram-na grunhir algo bem baixinho e
ininteligível ao menos para os assistentes, já que o seu filhote provavelmente
decifrava o som por se remexer como em um ninho para depois aquietar se,
acalentado ao ninar de sua mãe.
“Tá bom mamãe” - aproximou cautelosamente a médica, buscando
resgatar a habitualidade do ambiente e finalizar os procedimentos. “Agora vamos colocar o bebezinho no berçário,
para cuidados finais.”
Desta vez o termo
mamãe não lhe soou tão ruim. Contudo, ao perceber as mangas do avental
projetadas e as mãos estendidas para apanhar sua cria, a recém parida se
posicionou em defesa, esbugalhou os olhos, contraiu narinas cheirando o ar e
arqueou as sobrancelhas. Assim ficou, em posição de alerta, diria que sensível
ao mínimo movimento. O pequeno não se moveu não se sabe se por comodidade da proteção
materna ou se entregue aos primeiros sonhos. A médica resolveu por insistir em
requer o neném, e a um discreto meneio de suas mãos, presenciou o ranger de dentes da outra, que já rosnava a ponto espumar e de súbito investir,
para abocanhar as mãos de quem lhe requeria a prenda. A doutora, recuou, intimidada. Por bem pouco não seria atacada
pelos dentes da paciente. Esta uma, ainda desalinhada do trabalho de parir, buscou
acomodar de forma a proteger ainda mais o filhote. Continuou a olhar e rosnar
vez por outra para todos, não deixando dúvidas de que atacaria a qualquer um
que tencionasse aproximar-se de sua cria.
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