terça-feira, 13 de junho de 2017

Instinto



A luz veio forte, invasora, maltratando seus olhos embebidos de suor e lágrimas. Buscou fechá-los e o ardor das gotículas salgadas aumentava o seu tormento. Ao abri-los novamente, visualizou o grande avental branco com bordado delicado em azul bebê em um dos bolsos. Não conseguiu ler o nome da doutora. Inclinou pouco mais a cabeça onde se via um pescoço alvo e fino seguido do rosto languido e também delicado o qual contrastava com grosseiros óculos aparentemente cirúrgicos. Estava incomodada, a maca parecia-lhe estreita maltratava-lhe a posição em que estava deitada. O zunzum de aventais brancos ao seu redor soava-lhe algo de muito mau gosto.
“Força mamãe. Força! Vamos conseguir... já está quase!”- dizia um destes aventais, inclinando sobre si e fazendo movimentos circulatórios em seu ventre.
Olhava de um canto para outro. Tudo rigorosamente branco, cheiro forte de álcool e demais produtos hospitalares. Uma bandeja forrada de papel branco com vários instrumentos e frascos. Queria gritar para que todos dali saíssem e a deixassem só. A dor era dela, afinal. E era uma dor teimosa, randômica e integral. Todo o seu ser doía. E ela ali, cercada de guardiões falantes e agitados. Ora vasculhavam seu ventre, ora regulava a abertura de suas pernas e transitavam, alvos operários, com seus ungüentos, tesouras, e frascos. Todos pareciam mirá-la, em religiosa vigília, atentos a qualquer movimento seu para o pronto auxílio. Sentia-se o pior dos demônios, cercada, impotente para reagir segundo suas vontades incapaz de vislumbrar caminhos de sair dali.
Definitivamente, não eram estes seus planos... Um bebê, maldita barriga! Indo intrometer-se em sua carreira então promissora do trabalho e universidade. Ora invadida por um intruso, que lhe alterava os planos, as formas e compulsoriamente a desviava, logo ela, tão determinada e independente, avessa à maternidade, mesmo porque não lhe sobrava o tempo no atribulado ofício, a pressão por resultados e metas, além do curso acadêmico. Ora, quantos namoros abortados e matrimônios ignorados e degolados pela sua trajetória profissional? Quantas promoções, viagens, compromissos profissionais? No auge de sua carreira na empresa, ser interrompida desta forma? Não nascera para o cozer, amamentar e ninar, muito ao contrário, negava peremptoriamente, apregoando que a mulher de hoje ocupa e tem que ocupar espaços estratégicos, sendo responsáveis por grandes organizações e projetos e isto seria o suficiente para negligenciar qualquer concepção de matrimônio e conseqüências deste. Sangrar regularmente, vá lá, embora filhos, isso não! Não conciliava absolutamente a maternidade com trabalho, lazer e estudos. A seu ver, futuramente se ajeita, se adota, se apadrinha se assim for necessário.
Os óculos pareciam ainda mais enormes na face magra da doutora, teimosa doutora, que repetia a todo o momento ”força, mamãe!”. Aquilo definitivamente não ajudava. O termo mamãe provocava náuseas na parturiente, aumentado sua contrariedade e dores. Ardia de ódio e desprezo por tudo e todos dali e excomungando o namoro que lhe plantou aquela semente teimosa. Semente intrusa que crescia infiltrando e adiando seus planos de vida, como se dela fosse, resistindo a todas suas rejeições, em tudo de abortivo que pensara e utilizara a gestante. Teimoso feto. Ela odiava aquilo tudo. O parto, primitivo, brutal, as pessoas, o cheiro de gente nova. Tão logo acabasse o entregaria aos cuidados da tia, conforme planejado. Alguns dias de repouso e retornaria à sua vida, sua atribulada vida.
A dor a acordou dos pensamentos.  A dor bíblica, registrada e imputada ao seu gênero. A dor do Gênesis, do inicio, da luz. O ser dentro de si parecia desafiá-la a um desfecho. Sentiu sufoco, aumentaram os suores. Ainda ouvia confusas vozes ao seu redor, como se torcessem por ambos, ela e o outro, para que alcançassem ao mesmo tempo a linha de chegada. A cabeça doía, em espasmos tormentosos. Os olhos ardiam e a boca secara como sua vontade de estar ali. Todo seu corpo em choque e ela sem domínio algum. Tentou se levantar e viu que nem se a deixassem não conseguiria. Seria a hora,  e um urro escapou, gutural e longo, de seu interior. Os choques foram dispersando lentamente e os suores, agora em grande quantidade, como se libertassem dos rígidos poros. Ouvia sorrisos e frases mais alegres, um tilintar de metais sendo manipulados. Alguém usou um dos frascos e o cheiro de álcool invadiu o local. Breve silêncio e subitamente o choro entrecortado a princípio, depois longínquo a fez conectar com algo. Como se o som fosse codificado e sua mente decifrasse a mensagem, conquanto ainda assim negava o que acabara de presentear ao mundo. A médica tratava da primária assepsia ao recém nascido, envolvendo-o em fina manta e entregou-o a mãe. Esta o vasculhava com estranheza, mas não com olhos de outrora. Foi quando os olhinhos negros e inéditos da pequena figura fitaram os seus. Ela vacilou por breve momento. O segurava já mais inclinada e contraiu a narina como e buscasse algo pelo olfato. E assim foi aproximando o pequeno ao nariz, iniciou a cheirá-lo, parte por parte, cabelos, olhos, face rosada e todas as dobrinhas possíveis. Na seqüência,  e para estranheza da equipe médica, seguiu ainda a vistoriá-lo e lambeu-lhe a face. O bebê cerrou vagarosamente os olhos e tinha a feição de quem reconhece o acalanto e seus dedinhos moviam-se, talvez confortado por não ser mais um feto, talvez ciente de reconhecer o responsável em lhe conceder afeto.  Ao encostá-lo ao seio, a boca do miúdo, rosada e também miúda se conectou ao bico do mamilo familiarmente , sugando-o sem cerimônia e a mãe, que havia lhe lambido a sua face, inclinou mais ainda seu corpo para continuar lambendo o tenro corpo, como se o limpasse  resíduos de placenta e gotículas de sangue em todas as partes possíveis, ao fim conchegando-o melhor ao colo.
Todos em volta, espantados com os excêntricos gestos, trocavam olhares e murmuravam estando portanto invisíveis à que acabara de dar à luz. Ouviram-na grunhir algo bem baixinho e ininteligível ao menos para os assistentes, já que o seu filhote provavelmente decifrava o som por se remexer como em um ninho para depois aquietar se, acalentado ao ninar de sua mãe.  
Tá bom mamãe” - aproximou cautelosamente a médica, buscando resgatar a habitualidade do ambiente e finalizar os procedimentos. “Agora vamos colocar o bebezinho no berçário, para cuidados finais.”
Desta vez o termo mamãe não lhe soou tão ruim. Contudo, ao perceber as mangas do avental projetadas e as mãos estendidas para apanhar sua cria, a recém parida se posicionou em defesa, esbugalhou os olhos, contraiu narinas cheirando o ar e arqueou as sobrancelhas. Assim ficou, em posição de alerta, diria que sensível ao mínimo movimento. O pequeno não se moveu não se sabe se por comodidade da proteção materna ou se entregue aos primeiros sonhos. A médica resolveu por insistir em requer o neném, e a um discreto meneio de suas mãos, presenciou o  ranger de dentes da outra, que já  rosnava a ponto espumar e de súbito investir, para abocanhar as mãos de quem lhe requeria a prenda. A doutora, recuou,  intimidada. Por bem pouco não seria atacada pelos dentes da paciente. Esta uma, ainda desalinhada do trabalho de parir, buscou acomodar de forma a proteger ainda mais o filhote. Continuou a olhar e rosnar vez por outra para todos, não deixando dúvidas de que atacaria a qualquer um que tencionasse aproximar-se de sua cria.








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