A colônia fervia naquela noite. Ruídos, assovios e gritos
de ordem vinham de todos os cantos. Ele pediu novamente silêncio, lançando aos
estúpidos olhos o seu semblante insurrecto. Aspirou o ar, movimentando em
círculos a calda porosa. Pigarreou:
_Senhores, o que representamos, afinal? Um bando de
persuadidos? Até quando viveremos reclusos na escuridão de grutas, neste
planeta que habitamos há milênios? Um dos ouvintes aproximou-se lépido,
ofertando-lhe algo para beber. O obsequiado, entretanto, não desviou seu olhar
ao público, limitando a resgatar o líquido e sorvê-lo em um só ato. Fez breve
mesura ao benfeitor, aproveitando para assear focinho e bigode. Prosseguiu:
- Desprezam meu comportamento como leviano, sem ao
menos saberem os meus ideais. Boicotam-me em grupos, anulam meu juízo e
condenam-me! O que desconhecem é que a fome e o degredo não me atormentam tanto
quanto a alienação de vocês. Não somos os impuros das profecias.. Creiam! -Pausou-
Ao canto, um filhote iniciou o bater de palmas sendo censurado pela calda do
pai. Frustrado, o pequeno girou nas patas e foi abrigar-se em seu desfeito
ninho.
_Desejo que percebam meu descontentamento de viver em
aglomerado em tocas, ignorante à luz que insiste em penetrar nossas paredes.Basta
de reclusão e de exclusão. Merecemos respirar ar livre, repousar em gramados em
vez de imundos ninhos. Ora, senhores, desprezaremos eternamente nossos sonhos
ou emparedaremos os ideais, reduzidos a restos e indiscriminada reprodução?
Pobres e limitados é o que somos!-coçou o dorso, incomodado com parasitas –
Provoco a todos à liberdade, agitemos nossas caldas pelas ruas e vielas!
Sejamos livres! Após a oração, emitiu um suspiro de cansaço. Suava na testa e o
odor exalado denunciava a exaustão. Contudo, o olhar mantinha-se apocalíptico,
como se enlevado ao infinito, a postura militante impunha respeito e silêncio.
Suas palavras bem empregadas e incisivas atingiam a multidão e não raro o
ovacionavam, iniciando aqui e acolá alaridos com gritos de ordem e frenéticas
palmas ao que ele, regendo o discurso, buscava moderar Portava-se de forma
comedida e modesta, deixando claro sua aversão pelo engodo e estrelismo e com o
único objetivo de clamar à multidão ao questionamento, à critica e, enfim, à
ação.
Bigodes moviam-se confusos e olhares apreensivos eram
trocados na aglomeração murídea. Destarte, o orador impunha-se impávido e
inflamado. Cheirava o ar, como buscasse apoio e presenciava grupos isolados
confabulando melindrosamente. Uma e outra fêmea deixava escapar suspiros
brejeiros, excitadas pela determinação do militante. Opiniões se confrontavam:
- Esse Ricote é um achado! A cada primavera nos vem com
novidades! –dizia um entusiasta, enquanto empunhava pequena bandeira .
- Não digo que a vida urbana é nociva, como serpente? É
isso que dá passear em bibliotecas. Esses velhos livros já envenenaram muitos
roedores por aí! Rato metido a cosmopolita... - comentou outro, nem tanto
partidário e influente no grupo por sua idade e pelagem esbranquiçada. Fixou
seus conservadores e opacos olhos no companheiro: Somos ratos... Ratos! Deu pra
entender? Eu que não perco meu tempo com esses latino- iluministas. Um bando de
sonhadores... Já vi esse filme, meu caro – Argumentou, buscando reunir sua
dezena de filhos que se distraiam a outro canto para se recolherem ao ninho. A
companheira o seguiu, contrariada, já que compartilhava com as idéias do
orador.
Liderança explícita, Ricote era conhecido como o rato
questionador da toca, um rebelde de ninho, incômodo para uns e uma espécie de
orientador para outros. Outrora, ainda parido de pouco, o afoito roedor deixou
a mama materna, para farejar alternativas de alimento, o que lhe proporcionava
encontros mais civilizados que o da toca onde nascera. Seguro de sua altivez,
sustentava a tese de que seriam merecedores de refeições dignas por serem
exemplares da maior e uma das mais antigas famílias de mamíferos que habitam o
planeta. Seu sisudo comportamento e postura irrequieta geraram sua notória fama
entre os roedores. Elegeu-se chefe de ninhadas, instituiu programas de
qualidade alimentar e seleta saudável de restolhos. Utópico, insuflava seus
pares à autocrítica. Apregoava que o compromisso de ser livre para se formar a
própria opinião, ter um pensamento crítico, deveria ser prioritário e que a
partir deste compromisso se teria a base de sustentação para lidar com a fome e
a exclusão social
Assim Ricote matinha sua convivência na colônia. Ministrava
palestras, era requisitado para mediar conflitos, colaborando ativamente na
distribuição dos alimentos priorizando os idosos e as inúmeras parturientes,
impossibilitados de buscar o que roer e beber. Para os jovens um herói, outros
adultos o tinham como a mais um rato aspirando a celebridade. Já para os idosos,
um insurgente sonhador. Todavia, ao passar dos dias a toca o percebia um tanto
diferente, ora cabisbaixo, ora eufórico. Observavam o roedor perambulando de um
lado a outro, segredando aos mais íntimos sua decisão de ganhar as ruas da
capital e interagir com outros seres em vez de se esconder em góticos porões. Chegou
a cogitar mobilizar os pares em caravanas, levantes, quem sabe uma
manifestação? Ora, por que não?
Não tardou acusarem-no de lunático e traçarem estratégias
para boicotá-lo, tarefas estas que os pais adotaram como privar os filhos do
convívio com o condômino, tido como revolucionário e comunista da colônia.
Temiam que as idéias democráticas, ao menos para o jovem, desfigurassem a
criação já estabelecida e aceita à prole, de modo que Ricote não raro
encontrava-se solitário. Destarte, como seu esforço não teve respaldo da comunidade,
tanto pelo contrário, sofreu resistência de ratazanas que, em suas beatices e
comando sobre a filharada, organizavam pequenos grupos e até cogitavam em
projeto de marcha pela família e manutenção da ordem, como se o dito comunista
representasse a baderna, o desrespeito ao crível sistema natural das relações. Sentia
Ricote esvaído de sua luta inglória, permanecendo horas a fio taciturno, mirando
o horizonte pela fresta de da gruta, ansiando pelo dia em que romperia sua
clausura. Eis que, em furtivo passeio na noite primaveril, seus olhos de menino
sonhador foram surpreendidos por outro par de lânguido olhar, que pareciam
contemplá-lo. Tomado pelo temor comum à sua espécie, ele recuou a ponto de se
safar em seu abrigo. Todavia, o nervosismo causava-lhe estranhas sensações e a curiosidade
o fez tornar à entrada da toca para certificar-se de suas impressões. De fato,
posicionado e concentrado do lado externo a poucos centímetros da entrada da
toca estariam os olhos mais sedutores que Ricote já testemunhara. Ele vacilava,
incerto de que seu corpo tremia ou vibrava às batidas de seu retumbante
coração. Era uma gata, linda felina, que o cortejava. Ela, desta vez esguia,
buscava mapear o local, ziguezagueando ao arredor e o movimento transmitiu ao
se expectador algo de gostoso, coisa de liberdade e incógnita.
Admirava seu dorso felpudo, e sua cadência ao mover-se
espalhava ousadia e arte ao cada manhoso passo. Era absolutamente insinuante e,
talvez por ser noite, sedutoramente parda a felina que, à simples estréia,
fisgara o miúdo coração do jovem rato deixando- o bem a observá-la em seu
alojamento, por horas a fio não fosse a retirada da amada, que charmosamente se
distanciava da toca. Ricote amava! E com a inocência da paixão logo segredou a
um seguidor que atentamente ouvia, como a um discurso e expectativa para saber
qual a roedora que flechara o líder da colônia. Aterrorizara, portanto, à
revelação do enamorado interlocutor e apressou-se em deixá-lo com seus
devaneios do coração para avisar à todos do terrível fato. A novidade,
desorientou ainda mais ao imenso grupo além de deixar desiludidas dezenas de
ratinhas casadoiras. Ricote não se intimidou com as advertências recebidas,
afirmando que a atitude dos conterrâneos em nada aliviariam o fogo da paixão que
o consumia sem tréguas e que, para ele, seria um elixir, um prazeroso balsamo.
A presença da gata no arredores da toca, todas as noites, consolidou suas
declarações e tornava ainda mais consistente a sua paixão. Cantarolava
incansavelmente, criou poemas, sorria a todos e há quem diga, se embebedara em
noite de seresta da colônia. Em uma destas declarou, convicto, que deixaria a toca
para compartilhar seu platônico amor à gata, sem temer insucessos e, logrado o intento,
passeariam à luz do dia como jovens amantes, indicaria à adorada os melhores
queijos, sem dificuldades deduzindo que seria ela, provavelmente, íntima da
lactose. Aprenderia a ronronar e a ensinaria cavar buracos. Faria-lhe milhares de perguntas: Qual seria a
sua idade? Filosofia de vida? Ohhh, Interessante... Quantos irmãos? Se teriam filhos?
Talvez... Seria demasiado cedo para abordarem o tema, ao seu ver, tão melindroso.
Enfim, Ricote preparou-se para a partida anunciada e assim
que raiou a lua, se encaminhou para a pequena saída com seu caminhar grave, procurando
ser discreto nas despedidas. Sabia que a felina desfilava nas redondezas também
durante o dia e investiria em cortejá-la, com a determinação dos amantes.
Cheirou a mãe, que chorava como se lhe arrancassem toda a ninhada. Acenou a
todos.
- Pensa bem, rapaz!-O velho conservador tentou detê-lo- Não
vá... Ela é uma gata! Certamente uma assassina e vai devorá-lo ao primeiro
descuido! Bem eu te preveni sobre esses queijos franceses!
Decidido, o desertor continuou seus passos em direção à
saída. Arriscaria ali ou seria apenas mais um. E afinal de contas, era um rato!
Não entregaria seu futuro à frustração de anseios juvenis e pressentia que
sua a decisão mal não lhe faria. Ser desejado adoça a alma, e ela o cobiçava!
Ademais, não lhe apetecia ter seu sonho interrompido por envenenamento ou
guilhotinado em ratoeiras. Nada poderia, à luz de sua soberana alma, ser mais
prazeroso que alimentar a quem se ama. “Se assim for, assim será,” pensou,
enquanto rompia a fenda da toca. Sobre si, o a lua dos amantes ostentava brilho
incomum e derramava seus fachos sobre a terra, certamente ciente que haveria
mais um a quem iluminar naquela noite.
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