terça-feira, 13 de junho de 2017

PANDORA




 Guardar apenas o que deve ser guardado. Guardar. Talvez o maior dos problemas que escravizam a humanidade. Guardar tudo, ser guardado. Vigiar, ser vigiado. Oxalá fosse requisito de sobrevivência da espécie: “Deus te livre e guarde”: A liberdade já nasceu comprometida e sequer a chuva escapou de ser guardada, ainda que naquela manhã de segunda-feira pudéssemos desprezar qualquer utensílio que nos guardasse dela, assim afirmava o sol, radiante, banhando pedestres em caminhada para o trabalho ou compras. Alguns se detinham nos cartazes de promoção e outros, impacientes, se desviavam dos vendedores que precipitam no passeio à cata de compradores. Um ambulante instalou sua pequena banca para vender jabuticabas e sua voz competia com o microfone dos locutores. Vez por outra, molhava as frutas, aumentando ainda mais o brilho destas e recrutava clientes para degustarem o produto e conseqüentemente adquirirem. Os comerciantes vizinhos protestavam alegando que as negras bolinhas atrairiam abelhas e já arquitetavam a denúncia. De fato, fiscais da prefeitura se apressaram em dar fim à quitanda e aguardavam, diligentes, o camelô retirar a mercadoria. Este o fazia em protestos contra o prefeito, delatores, e tudo que lhe vinham na randômica mente. Entre o barulho dos anúncios, buzinas, e outros vendedores, ouviu-se um grito muito comum naquela área central.

- Pega ladrão! Alguém convocava, e a frase era repetida por outros na medida em que o garoto de pernas finas corria, afastando pedestres. Os próprios fiscais recuaram presenteando-o com o espaço para sua maratona, e o gatuno atleta deslizava entre o povo, não evitando esbarrar em uma senhora, que foi ter com os peitos na bancada abarrotada de jabuticabas. O vetado vendeiro viu, em desespero materno, suas negras bolinhas ganharem a Avenida Paraná, espalhadas até serem contidas pelo acostamento. Redobrou os protestos enquanto a senhora era acudida pelos fiscais que inutilmente tentavam limpar sua roupa manchada. Quanto ao meliante, Tanto mais gritavam as pessoas afastavam-se, abrindo espaço talvez para auxiliá-lo alcançar a linha de chegada e subir ao pódio.

-Dentista... Orçamento sem compromisso- anunciava outra à porta de um velho prédio, enquanto gargalhava pelo acidente presenciado. A dentição exibida, precária e disforme, demonstrava grosseira incoerência em sua publicidade.

-Fotonahorafoto!- Gritava um, e, não sendo a placa que carregava suspensa pelos ombros, seria difícil identificar qual o produto ofertava.

Eis o centro comercial de Belo Horizonte, onde deságuam passos e rodas de todas as regiões da metrópole, onde o povo passa, entra em uma loja e atrasa o trabalho do vendedor com o chavão que vai “dar só uma olhadinha”. Deixando o local com sacola abarrotada de compras, conforme ocorria naquela ampla loja. O locutor em sua voz grave e retumbante anunciava, às moças a promoção de roupas intimas na sobreloja, e curiosas pedestres detinham-se na porta atraídas pelo anúncio De fato, araras contendo peças íntimas de modelos e tamanhos diversos estavam distribuídos no segundo piso, e a oferta certamente teria proceder devido ao tumulto de clientes e extensas filas para quitar a compras, assim como morosa fila nos provadores. Um segurança mantinha-se ereto em seu uniforme, vez ou outra prestando informações. Seus olhos negros e grandes digitalizavam os corpos das mulheres que por ali passavam, aferiam curvas, fantasiavam partes invisíveis. Foi quando uma incauta mocinha, após minuciosamente examinar dúzias de soutiens de diferentes modelos e tamanhos, dirigiu-se ao guarda volumes onde todas as clientes que desejavam experimentar as roupas teriam que deixar ali bolsas, assim evitando transtornos como furtos ou perdas. A moça então pegou sua chave, e procurou o número no escaninho, fazendo-a girar na fechadura. Ao puxar a portinhola, em um repelão, saiu também a bolsa ali guardada, devido a sua alça ter atado à trava de metal. O movimento fez soltar a bolsa que espatifou no chão e alguns objetos nela guardados, com o impacto, foram sumariamente defenestrados. Um deles, um pequeno frasco, espatifou próximo à pequena escada que daria acesso aos caixas e o seu líquido, liberto, espalhou a flagrância de forte absinto. Já o outro objeto, um pouco mais cilíndrico e em maior volume, ganhou terreno no lustroso assoalho da loja, quicando sua matéria emborrachada. Tamborilou, como se ensaiasse um passo de tango e girou levemente, já em reduzida marcha, para se aninhar bem no centro da loja. Mal fora revelado aos presentes no salão e gritos, alguns inclusive de pavor, ecoaram pelo local. Todos desviaram os olhos dos preços e modelos em direção ao alarido. Cortinas de provadores se abriram, expondo detalhes até então discretos das que os ocupavam. Outros muitos gritos foram emitidos e algumas clientes corriam talvez atribuindo que objeto vida tivesse e que a qualquer momento, ressuscitaria para investir contra elas, de forma que se afastavam, como se do céu pingasse fogo e seus os corpos nus estivessem. Em poucos segundos, o salão viu-se em desordem de formigueiro atacado. Alguém desmaiou próximo ao balcão de entrega. Não demorou vir o segurança, armado e viril, intencionado em botar ordem no barraco. Sem cerimônia, o negro forte e sisudo investiu para o centro da loja onde algumas apontavam o litígio, abrindo caminho entre saltos, rasteirinhas e bolsas. Este, quando alcançou o suposto e inerte criminoso, sentiu tombar a arma que até então manteve firme ao punho para balbuciar, boquiaberto:

- Com mil diabos! Um vibrador!

Pareceu ter anunciado o Apocalipse. Cílios violentos fulminaram-no tão logo ouviram seu pronunciar, e o alarido, que estaria diminuindo tornou em generosas proporções. Reprovaram, em uníssono, a revelação que estava explícita aos olhos de todas, embora ninguém se atrevesse a verbalizar. Outro desmaio foi notificado, desta vez próximo ao caixa de recebimento. O segurança, entretanto, mostrava-se prostrado diante do fato, como um inocente narciso, escravo da revelação. Olhava absorto a indumentária verticalmente alojada, analisava contornos e formas dirigindo seus alternados e confusos olhos à sua própria virilha. Ponderava, aferia. Sentiu lampejos de inveja do familiar modelo ali escancarado no chão, livre e profano, enquanto mantinha algo similar - embora relativamente tímido- aprisionado em puída cueca. “Era sim, um vibrador –disse para si- e dos bons!”. Restava saber a quem pertencia e restituí-lo.

- A quem pertence? Perguntou à multidão.

Silêncio geral. Olhares acusadores apontaram a moça trêmula, a um canto da seção de soutiens, única responsável pela liberação do objeto. Interrogada, a garota explicou que se enganara de armário e que seus pertences estariam acomodados no trinta e um, e não no treze. Aproveitou para protestar, indignada, da ineficiência mantida no guarda volumes, já que conseguiu, por azar, abrir uma porta com chave trocada. Reconhecida pelo engano e restabelecida de seus bens originais, a inocentada apressou-se em deixar a loja, evitando aproximar-se do instrumento. Ouviram-se seus passos rápidos na escada de acesso à saída.

Sem resposta o vigilante percorreu com os olhos um por um, vagarosamente, como se pudesse detectar a quem pertencia o outrora guardado objeto. Demorou-se mais em uma de seios e bundas desproporcionalmente fartos, com maquiagem e vestimentas um tanto noturnas para a ocasião.

- O que é? – retornou a outra, percebendo a desconfiança- Já tenho o meu, meu bem! Nasci com ele! – Disse apontando as unhas postiças na altura da virilha. Riu alto e jogou a cabeleira para frente.

Mais murmúrios

- Senhores clientes! -Anunciou o locutor, já na sobreloja – Por engano foi aberto indevidamente o armário de número treze. Informamos que o problema já foi solucionado e solicitamos, por gentileza, que a proprietária desta chave se apresente para retirar seus devidos objetos.

Ninguém se moveu, conquanto houvesse esquivos aos olhares do solicitante. Somente o ruído do ventilador preso ao teto parecia responder ao apelo. Acordaram a desmaiada e esta, após se ofender com a pergunta, negou veemente, para adormecer em seguida. A outra continuava em coma, embora a chave consultada em sua mão não resolvesse o impasse. Três outras tentativas de chamadas foram feitas, sem algum sucesso para localizar a possível proprietária do vibrador e demais acessórios da mesma família deste, guardados no compartimento treze, obrigando ao ali permanecer objeto evitado como um indesejado filho, apesar de imponente sobre o solo.

O gerente da loja apareceu enfim e ordenou ao segurança para que recolhesse o impasse e o encaminhasse imediatamente à seção de achados e perdidos. Deu ordens à faxineira para remover o resíduo do absinto no piso, praguejando contra a fragrância que dominava o local. O agente o interpelou:

- Aí não boto minha mão, não senhor... Pode até fazer minhas contas que pra rua até vou. Mas nesse negocio não bulo.

O superior vacilou. Algo lhe soprou nas ventas que não adiantaria ali discussões sobre a desídia lhe imposta. Solicitou uma sacola plástica para guardar o volume, e outra para envolver as mãos. Arregaçou as mangas da camisa e podia sentir o peso de todos os olhos que o assistiam, ouvia ovações e maldizeres como se em uma arena estivesse. Suspirou por três vezes e contraiu a face: “Tenho que ser forte” - concluiu. Enfim, como se desarmasse bomba, pegou o volume que, ao ser suspenso, escapou de suas mãos. Em outra investida, agarrou-o tão firme que ouviu suspiros ao redor. Acondicionou o elemento na sacola e lacrou-a com tanta veemência para que ele não escapasse novamente. Os subordinados ali presentes regozijavam-se com a cena. Teriam comentários picantes para o intervalo de descanso.

- Senhoras... E senhores... Como não foi-nos apresentado a dona, ou o dono, encaminharemos “isto” ao setor de achados e perdidos, cujo telefone está afixado naquele canto –disse ao público, indicando o informativo com o próprio volume que detinha nas mãos- e enviaremos via correios, para evitar maiores transtornos. A Pandora Modas agradece a preferência e antecipa desculpas pelos equívocos.

Após mesura, seguiu caminho, carregando consigo o pacote. Todas voltaram às compras e as cortinas dos provadores foram uma a uma fechando-se para o exame de peças. No setor de objetos perdidos, o telefone recebia chamados em ocorrências maiores que o padrão, sobrecarregando a atendente que se desdobrava para anotar os chamados.



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