Guardar apenas o que
deve ser guardado. Guardar. Talvez o maior dos problemas que escravizam a
humanidade. Guardar tudo, ser guardado. Vigiar, ser vigiado. Oxalá fosse
requisito de sobrevivência da espécie: “Deus te livre e guarde”: A liberdade já
nasceu comprometida e sequer a chuva escapou de ser guardada, ainda que naquela
manhã de segunda-feira pudéssemos desprezar qualquer utensílio que nos
guardasse dela, assim afirmava o sol, radiante, banhando pedestres em caminhada
para o trabalho ou compras. Alguns se detinham nos cartazes de promoção e
outros, impacientes, se desviavam dos vendedores que precipitam no passeio à
cata de compradores. Um ambulante instalou sua pequena banca para vender
jabuticabas e sua voz competia com o microfone dos locutores. Vez por outra,
molhava as frutas, aumentando ainda mais o brilho destas e recrutava clientes
para degustarem o produto e conseqüentemente adquirirem. Os comerciantes
vizinhos protestavam alegando que as negras bolinhas atrairiam abelhas e já
arquitetavam a denúncia. De fato, fiscais da prefeitura se apressaram em dar
fim à quitanda e aguardavam, diligentes, o camelô retirar a mercadoria. Este o
fazia em protestos contra o prefeito, delatores, e tudo que lhe vinham na
randômica mente. Entre o barulho dos anúncios, buzinas, e outros vendedores,
ouviu-se um grito muito comum naquela área central.
- Pega ladrão! Alguém convocava, e a frase era repetida por
outros na medida em que o garoto de pernas finas corria, afastando pedestres.
Os próprios fiscais recuaram presenteando-o com o espaço para sua maratona, e o
gatuno atleta deslizava entre o povo, não evitando esbarrar em uma senhora, que
foi ter com os peitos na bancada abarrotada de jabuticabas. O vetado vendeiro
viu, em desespero materno, suas negras bolinhas ganharem a Avenida Paraná,
espalhadas até serem contidas pelo acostamento. Redobrou os protestos enquanto
a senhora era acudida pelos fiscais que inutilmente tentavam limpar sua roupa
manchada. Quanto ao meliante, Tanto mais gritavam as pessoas afastavam-se,
abrindo espaço talvez para auxiliá-lo alcançar a linha de chegada e subir ao
pódio.
-Dentista... Orçamento sem compromisso- anunciava outra à
porta de um velho prédio, enquanto gargalhava pelo acidente presenciado. A
dentição exibida, precária e disforme, demonstrava grosseira incoerência em sua
publicidade.
-Fotonahorafoto!- Gritava um, e, não sendo a placa que
carregava suspensa pelos ombros, seria difícil identificar qual o produto
ofertava.
Eis o centro comercial de Belo Horizonte, onde deságuam
passos e rodas de todas as regiões da metrópole, onde o povo passa, entra em
uma loja e atrasa o trabalho do vendedor com o chavão que vai “dar só uma
olhadinha”. Deixando o local com sacola abarrotada de compras, conforme ocorria
naquela ampla loja. O locutor em sua voz grave e retumbante anunciava, às moças
a promoção de roupas intimas na sobreloja, e curiosas pedestres detinham-se na
porta atraídas pelo anúncio De fato, araras contendo peças íntimas de modelos e
tamanhos diversos estavam distribuídos no segundo piso, e a oferta certamente
teria proceder devido ao tumulto de clientes e extensas filas para quitar a
compras, assim como morosa fila nos provadores. Um segurança mantinha-se ereto
em seu uniforme, vez ou outra prestando informações. Seus olhos negros e
grandes digitalizavam os corpos das mulheres que por ali passavam, aferiam curvas,
fantasiavam partes invisíveis. Foi quando uma incauta mocinha, após
minuciosamente examinar dúzias de soutiens de diferentes modelos e tamanhos,
dirigiu-se ao guarda volumes onde todas as clientes que desejavam experimentar
as roupas teriam que deixar ali bolsas, assim evitando transtornos como furtos
ou perdas. A moça então pegou sua chave, e procurou o número no escaninho,
fazendo-a girar na fechadura. Ao puxar a portinhola, em um repelão, saiu também
a bolsa ali guardada, devido a sua alça ter atado à trava de metal. O movimento
fez soltar a bolsa que espatifou no chão e alguns objetos nela guardados, com o
impacto, foram sumariamente defenestrados. Um deles, um pequeno frasco,
espatifou próximo à pequena escada que daria acesso aos caixas e o seu líquido,
liberto, espalhou a flagrância de forte absinto. Já o outro objeto, um pouco
mais cilíndrico e em maior volume, ganhou terreno no lustroso assoalho da loja,
quicando sua matéria emborrachada. Tamborilou, como se ensaiasse um passo de
tango e girou levemente, já em reduzida marcha, para se aninhar bem no centro
da loja. Mal fora revelado aos presentes no salão e gritos, alguns inclusive de
pavor, ecoaram pelo local. Todos desviaram os olhos dos preços e modelos em
direção ao alarido. Cortinas de provadores se abriram, expondo detalhes até
então discretos das que os ocupavam. Outros muitos gritos foram emitidos e
algumas clientes corriam talvez atribuindo que objeto vida tivesse e que a
qualquer momento, ressuscitaria para investir contra elas, de forma que se
afastavam, como se do céu pingasse fogo e seus os corpos nus estivessem. Em
poucos segundos, o salão viu-se em desordem de formigueiro atacado. Alguém
desmaiou próximo ao balcão de entrega. Não demorou vir o segurança, armado e
viril, intencionado em botar ordem no barraco. Sem cerimônia, o negro forte e
sisudo investiu para o centro da loja onde algumas apontavam o litígio, abrindo
caminho entre saltos, rasteirinhas e bolsas. Este, quando alcançou o suposto e
inerte criminoso, sentiu tombar a arma que até então manteve firme ao punho
para balbuciar, boquiaberto:
- Com mil diabos! Um vibrador!
Pareceu ter anunciado o Apocalipse. Cílios violentos
fulminaram-no tão logo ouviram seu pronunciar, e o alarido, que estaria
diminuindo tornou em generosas proporções. Reprovaram, em uníssono, a revelação
que estava explícita aos olhos de todas, embora ninguém se atrevesse a
verbalizar. Outro desmaio foi notificado, desta vez próximo ao caixa de
recebimento. O segurança, entretanto, mostrava-se prostrado diante do fato,
como um inocente narciso, escravo da revelação. Olhava absorto a indumentária
verticalmente alojada, analisava contornos e formas dirigindo seus alternados e
confusos olhos à sua própria virilha. Ponderava, aferia. Sentiu lampejos de
inveja do familiar modelo ali escancarado no chão, livre e profano, enquanto
mantinha algo similar - embora relativamente tímido- aprisionado em puída
cueca. “Era sim, um vibrador –disse para si- e dos bons!”. Restava saber a quem
pertencia e restituí-lo.
- A quem pertence? Perguntou à multidão.
Silêncio geral. Olhares acusadores apontaram a moça
trêmula, a um canto da seção de soutiens, única responsável pela liberação do
objeto. Interrogada, a garota explicou que se enganara de armário e que seus
pertences estariam acomodados no trinta e um, e não no treze. Aproveitou para
protestar, indignada, da ineficiência mantida no guarda volumes, já que
conseguiu, por azar, abrir uma porta com chave trocada. Reconhecida pelo engano
e restabelecida de seus bens originais, a inocentada apressou-se em deixar a
loja, evitando aproximar-se do instrumento. Ouviram-se seus passos rápidos na
escada de acesso à saída.
Sem resposta o vigilante percorreu com os olhos um por um,
vagarosamente, como se pudesse detectar a quem pertencia o outrora guardado
objeto. Demorou-se mais em uma de seios e bundas desproporcionalmente fartos,
com maquiagem e vestimentas um tanto noturnas para a ocasião.
- O que é? – retornou a outra, percebendo a desconfiança-
Já tenho o meu, meu bem! Nasci com ele! – Disse apontando as unhas postiças na
altura da virilha. Riu alto e jogou a cabeleira para frente.
Mais murmúrios
- Senhores clientes! -Anunciou o locutor, já na sobreloja –
Por engano foi aberto indevidamente o armário de número treze. Informamos que o
problema já foi solucionado e solicitamos, por gentileza, que a proprietária
desta chave se apresente para retirar seus devidos objetos.
Ninguém se moveu, conquanto houvesse esquivos aos olhares
do solicitante. Somente o ruído do ventilador preso ao teto parecia responder
ao apelo. Acordaram a desmaiada e esta, após se ofender com a pergunta, negou
veemente, para adormecer em seguida. A outra continuava em coma, embora a chave
consultada em sua mão não resolvesse o impasse. Três outras tentativas de chamadas
foram feitas, sem algum sucesso para localizar a possível proprietária do
vibrador e demais acessórios da mesma família deste, guardados no compartimento
treze, obrigando ao ali permanecer objeto evitado como um indesejado filho,
apesar de imponente sobre o solo.
O gerente da loja apareceu enfim e ordenou ao segurança
para que recolhesse o impasse e o encaminhasse imediatamente à seção de achados
e perdidos. Deu ordens à faxineira para remover o resíduo do absinto no piso,
praguejando contra a fragrância que dominava o local. O agente o interpelou:
- Aí não boto minha mão, não senhor... Pode até fazer
minhas contas que pra rua até vou. Mas nesse negocio não bulo.
O superior vacilou. Algo lhe soprou nas ventas que não
adiantaria ali discussões sobre a desídia lhe imposta. Solicitou uma sacola
plástica para guardar o volume, e outra para envolver as mãos. Arregaçou as
mangas da camisa e podia sentir o peso de todos os olhos que o assistiam, ouvia
ovações e maldizeres como se em uma arena estivesse. Suspirou por três vezes e
contraiu a face: “Tenho que ser forte” - concluiu. Enfim, como se desarmasse
bomba, pegou o volume que, ao ser suspenso, escapou de suas mãos. Em outra
investida, agarrou-o tão firme que ouviu suspiros ao redor. Acondicionou o
elemento na sacola e lacrou-a com tanta veemência para que ele não escapasse
novamente. Os subordinados ali presentes regozijavam-se com a cena. Teriam
comentários picantes para o intervalo de descanso.
- Senhoras... E senhores... Como não foi-nos apresentado a dona,
ou o dono, encaminharemos “isto” ao setor de achados e perdidos, cujo telefone
está afixado naquele canto –disse ao público, indicando o informativo com o
próprio volume que detinha nas mãos- e enviaremos via correios, para evitar
maiores transtornos. A Pandora Modas agradece a preferência e antecipa
desculpas pelos equívocos.
Após mesura, seguiu caminho, carregando consigo o pacote.
Todas voltaram às compras e as cortinas dos provadores foram uma a uma
fechando-se para o exame de peças. No setor de objetos perdidos, o telefone
recebia chamados em ocorrências maiores que o padrão, sobrecarregando a
atendente que se desdobrava para anotar os chamados.
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