terça-feira, 13 de junho de 2017

PATRIA MINHA

PATRIA MINHA

João escalava, com certa dificuldade, a avalanche de garrafas descartáveis, remexendo o amontoado de lixo e se abanando para livrar-se de moscas que ali rodeavam. Meticuloso, separava latas de bebidas, plásticos e demais detritos para reciclagem, empilhando-os para posterior coleta. Sensações de fome e náuseas confundiam sua mente e suas entranhas, reflexo do magro café que tomou horas antes, já que haviam muitas bocas para pouco pão, nada que fosse, portanto, novidade naquele decrépito recanto em que vivia. Tudo era disputado entre os moradores do espaço conhecido como  lixão, por ser reduto de reciclagem de descartes domésticos. As crianças que ali residiam dependiam de um protetor, adulto, para que tivessem suas necessidades básicas atendidas, o que nem sempre era possível, porque boa parte dos adultos não conseguia cuidar de si próprio. Contudo, teriam naquele espaço algo próximo a segurança, alojamentos que poderiam entender como lar. E sobreviviam com esse arremedo de vida, à custa de despejos e retalhos que os vestiam, cobriam e miseravelmente sustentavam.

 O menino diariamente garimpava, esperançoso, algo que pudesse permutar. Percorria grande parte do reservatório, separando plásticos, metais e não raramente, materiais cortantes de variáveis formatos. Vez por outra, identificava carcaças de brinquedos e as reservava para si. Folheava revistas e jornais que surgiam em meio ao lixo, enchendo os olhos com as belas fotografias e tentando ler o que conseguisse. À medida em que peregrinava, suas vísceras, incomodadas pela fome, davam insistentes sinais e ele já considerava em fazer uma pausa para retornar ao alojamento, como já faziam outros catadores, quando seus pés esbarraram em um pequeno obstáculo embrulhado em jornal. Apanhou o achado e desembrulhou, para ato contínuo, arregalar seus pequeninos e brilhantes olhos: uma solitária banana prata, graúda e de um amarelo vivo e reluzente como ouro, bem madura por ter sido cuidadosamente enrolada em página de jornal. Seus olhos brilharam como os de um garimpeiro surpreendido com ouro ou prata, enfim algo precioso como a fruta que muito valia para tapear sua fome. Retirou com cuidado o jornal para livremente descascar o prêmio, quando sentiu leve corrente de ar próximo de si. Ao sutil meneio de corpo, testemunhou que tinha companhia, já que uma vistosa ave, negra como sua pele e de generosas asas, pousara próximo a ele, e mirava indiscretamente o achado que seu vizinho segurava. Quis o menino recuar para explorar sua conquista com exclusividade, se não fosse invadido por um súbito sentimento de solidariedade, talvez por pensar que a ave também sentia fome ou pela satisfação de  ter companhia na então solitária ceia. Não obstante, a recém-chegada pareceu compartilhar com o pequeno anfitrião, mantendo-se confortável em seu pouso, embora não deixasse de fitar o tesouro descoberto pelo outro. João não titubeou, utilizou o jornal como ordinário forro de mesa e repartiu o alimento, retendo a sua parte e dispondo delicadamente a outra metade à companheira. Aguardou nobremente que ela iniciasse a refeição ao passo que esta pareceu decifrar os sinais e investiu, avidamente, na parte que lhe cabia, maltratando a poupa com seu negro e potente bico. Findada a refeição e, assim como não tendo feito cerimonia na chegada, a ave levantou voo sem mesuras ou trejeitos, deixando um frescor de vento estimulado por sua decolagem. Imitando ao urubu no que era possível, João ergueu-se, pleno em sua carência, e desceu o amontoado de lixo em direção ao asfalto, sentindo-se leve como se asas tivesse e planasse, para se juntar aos seus.

No jornal utilizado para o magro banquete jazia agora a casca da banana, definitivamente entregue às moscas que ali bailavam e algumas formigas assanhadas pela descoberta de alimento. Os atores que há pouco ceiaram naquele palco, cumplices na fome, não poderiam decifrar as letras impressas no jornal que protegeu e amadureceu o alimento compartilhado. Limitaram-se a comer porque a fome é concreta, enquanto o que estava ali noticiado naquela página de jornal,  ainda seria sonho para muitos dessa Pátria, sobretudo para o pequeno garimpeiro de rejeitos, o brasileiro João. Ali podia ser facilmente lido um artigo que denunciava o trabalho infantil, a fome, crimes e demais infortúnios imputados às crianças, em diversas regiões do país. A publicidade apregoava o direito assegurado à moradia, proteção, saúde e educação, entre outros, a todas as crianças e adolescentes da pátria. Sim, ao menos eram as disposições ali informadas e referenciadas, firmadas em Brasília no dia 13 de julho de 1990, a 168 anos da Independência do Brasil e 101 anos da Proclamação da República.

 

 

 

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