“-Um, dois, “trêis”,
coroinha um, dois, “trêis”!
Um, dois, “trêis”
Coroinha um, dois “trêis”!...”
Apertei meus olhos para tentar ver
quem canta. Ora, certamente pulam cordas; dois batendo, um saltitando e outros
aguardando, torcendo para que as perninhas da vez se enlacem nervosas e
interrompam o movimento, cedendo lugar
para o primeiro da fila. Tudo é tão calmo e alegre que mal posso sentir meus
pezinhos tocarem o chão. Possuo asas? Contudo,
seus curiosos, não me indaguem sobre quem sou eu e onde estou. Que horas são,
onde moro e como foi que, aqui, meti meu nariz. Nada sei, senhores! Somente
percebo que estou em um lugar de rara beleza e candura. Todavia, há um algo inquieto no
ar. Presumo que sejam criancinhas, do contrário não captaria vozes assim tão
despretensiosas e dóceis! E parecem alegres! Sinto já pontada de inveja e posso
arriscar, pelo tropel, que correm barulhentas e desordeiras. Suponho que estou
ladeada por elas, do contrário, não escutaria essas vozes que me rodeiam como
uma feliz corrente humana
- “Atirei o pau no gato-to,
mas o gato-to, não morreu-reu-reu...
Dona Chica-ca admirou-se-se
do berro, do berro que o gato deu: Miau!!!”
Também quero brincar, pôxa! Mal eles
devem saber que mamãe sempre me ensina uma cantiga de sua época de criança, e
eu aprendo rapidinho... Cadê vocês que não me atendem? Já gritei, esperneei,
fiz bico, manha, dengo, e até agora, pelo visto, ninguém se importou ainda
comigo! Será isso, porventura, pilhérias de atrevidos sacis? Se for, parece-me
de muito mau gosto! Se pego um desses, ai, ai... Diria a eles o quanto
estou esfolada por brincadeirinhas sem a mínima graça e em nada infantis, perigosas...
Acaso estão agindo como irresponsáveis adultos?! Oh!! Era só o que me faltava!
Céus! Que distração a minha! Queiram
senhores, por favor, perdoar essa ingênua e curiosa criancinha, perdida e
tagarela... Olvidei de me apresentar, não é mesmo? Na verdade, confesso que não
sou dada a esses protocolozinhos. Afinal, tenho certo receio, não sabem?...
Medo de que esse mundo não me aceite. Coisa de criança escaldada... tenho ração deste receio, porque tenho provado
desse doce amargo desde frágil sementinha, na barriga de minha genitora, ainda
era pequena bolinha que recebia lufada de sucos gástricos, que ao certo queriam
dissolver-me... fui crescendo e a bolinha que era formando outros pequenos
ramos, e aqui já sei que eram minhas pequenas partes...
“Cabeça, ombro, joelho e pé
Joelho e pé
Cabeça, ombro, joelho e pé
Joelho e pé
Olhos, ouvidos, boca e nariz
Cabeça, ombro, joelho e pé”
Isso mesmo coleguinhas! Onde estão
vocês que não os vejo? Então! Fui formando essas partes todas e tinha um cordão
na minha barriguinha. Ficava igual balão preso na bolsa dágua. Como era escura
aquela bolsa recheada de líquidos densos e aquecidos! Contudo, resisti à arena
abortiva. Conquistei mais espaço no terreno limitado e aproximei-me da zona de
combate. Posso arriscar em afirmar que essa foi umas das primeiras vitórias – e
como essa palavra me faz bem!- de minha vida. Todavia, eram-me enviadas
notícias desagradáveis, oriundas do lado externo: conflitos, choramingos,
gritos e acusações além de, não raras as vezes, pancadas retumbarem no flácido
ovo, a ponto de eu também resolver revidar. Quem sabe desejavam se comunicar
comigo e não sabiam a melhor forma de fazê-lo? Iniciei então pequenos chutes
nas moles paredes -era até divertido o duelo!
Um belo dia, como toda história
deveria ser, fui acometida por súbito ataque de gases de causar inveja a
bovinos. Iniciei sacolejos, buscando livrar-me das pontadas que sentia. Tanto
fiz que a bolsa gelatinosa que abrigava-me rompeu, deixando sair o líquido quente.
Sentia-me imprensada e não tive então dúvidas: estaria sendo despejada dali.
Enfim, percebi uma fenda: só poderia ser ali, a saída! Raios luminosos confundiam minha cabeça que
já era requisitada por um par de luvas.
Resolvi então valorizar que boba não sou! E ao mesmo tempo em que queria sair,
retrocedia-me toda, teimosa e vermelha... Percebi que me chamavam do outro lado e a voz
enchia-me de estranha coragem, sentia proteção e segurança. Não seria tão
otimista, portanto, a pessoa que me forneceu abrigo. Gritava muito e dizia
impropérios. Num impulso, o frio foi ganhando espaço em meu corpo e um repelão
fez-me deslizar do então lar. Em seguida, estava eu suspensa pelos pés,
completamente nua e novamente de ponta cabeça e recebendo, no bumbum enrugado,
salutares palmadinhas. Além disso, minha boca foi invadida por um indicador
adulto que removia, com eficácia, resíduos de minha pré-vida. Ficaria realmente
indignada, senhores, se não pressentisse que aquelas palmadas eram amigas,
educativas, e a inserção não aliviasse-me da sensação de sufoco! Falavam todos
ao mesmo tempo e isso me causou um incômodo tal que resolvi protestar, chorando
desesperada, enquanto percorriam todo o meu corpo com um pano cheiroso e
refrescante. Tremendo alívio envolveu-me, quando o cordão tornou-se leve, quase
imperceptível, depois de reduzido a um pequeno toco preso ao meu corpo. Enfim,
estava livre daquele cano de descarga, que tanta seiva ruim fornecia-me.
Utilizaram da tática infalível, a preferida das gentes grandes. Acalantaram-me,
na intenção de conter meu primeiro levante...
“Galinha choca,
comeu minhoca!
Ficou pulando,
Que nem pipoca!”
Que susto!! Ora, que é isso? Desculpem, por favor, a
interrupção. Fui quase atropelada por arruaceirozinhos que há pouco cruzaram
meu caminho, em debandada cantoria, totalmente alheios à minha presença. Sequer
me convidaram para acompanhá-los, esses pestinhas! Abusam de minha paciência,
não acham? Então! Olha que também os chateio com essa história longa! Destarte,
desconheço qualquer pontuação ou espaço que não expresse, tal e qual, o
ocorrido. Pois, bem:
começaram a ninar meu corpo e reiniciei o protesto, distribuindo nova safra de
berros, tão alta quanto a anterior, que consegui ser envolvida com felpudo
tecido. Quase simultaneamente direcionaram minha cabecinha a uma protuberância,
macia e gorda, e ainda berrava quando selaram-me a voz com minha primeira
refeição, líquida e quente, a qual suguei com sofreguidão.Adormeci, enfim...
“ Boi, boi, boi....
Boi da cara preta...
Pega essa criança
que tem medo de careta...”
Os vandalozinhos corriam ao longe,
talvez brinquem de pique esconde e de roda sempre cantantes. Posso ver agora
inquietos vultos. Como correm! Tento gritá-los, embora parecem não notar minha
presença... Acho que estão pilheriando comigo, para que eu não conte para vocês
a minha historinha... Se ao menos deixassem-me brincar...Bom, suspeito então de
que não devo ter comportado muito bem nos trópicos e o meu castigo aplicado já
no primeiro dia em que fui apresentada à luz.
Não imaginam como deixei a maternidade: Enfeitada com lacinhos no cabelo,
pagãozinho rosa, sapatinho, talquinho e toda sorte de “inhos” possíveis. Fui
fazer o meu primeiro passeio nos braços de mamãe – se assim posso dizer-.Estranhei,
porém, o fato de ter sido
envolvida, desta vez em uma sacola plástica, tornando a conviver com a
escuridão. Para completar, o invólucro era atado nas extremidades,
impossibilitando-me de usufruir do ar, que tanto gostei de respirar. Desta vez
– oh, irônico destino! -não tinha sequer um tubo, para atenuar meu desespero. Mal
começamos nosso passeio houve breve pausa nos passos de minha condutora e
segundos depois, fui friamente arremessada aos peixes, oscilando na cadência da
lagoa, a atrevida água ganhando terreno por entre as frestas da urna plástica. E
agora? Quem pode me ensinar a nadar? Ela me deixou sozinha... Tampouco quis
ficar ali para ensinar-me os primeiros movimentos? Até que gostaria de brincar
naquela água fria... Não poderia ao menos remover a sufocante sacola? Decidi
então -precavida que sou- repetir a estratégia anterior: Gritei o mais alto
possível, senhores! Intensificava o alarde e já estava quase afônica, quando
senti algo empurrando-me, como se tentasse resgatar minha roupa plástica.
- Um bebê!! – alguem gritou, também lá
de fora, uma tanto mais alto que eu. Será que seria tão feia, a ponto de
gritarem apavorados ao simples olhar?
Fisgaram-me, com intensidade maior que
a última. Estava, em poucos segundos, embalada por outros braços e
providenciais cobertores entre correrias e desconexas palavras, algo como
hospital, salvar, maldade! Pedidos de socorro ecoavam, e pipocavam denúncias
acerca de uma moça que ali passeava, minutos antes, conduzindo ao braço sacola
plástica. Quando me deixariam em paz?
“Pirulito que bate-bate,
pirulito que já bateu!
Quem gosta de mim é ele,
quem gosta dele sou eu!.”
Ouço passos... será alguém? Já era sem
tempo! Quero brincar!! Cansa-me a narrativa, e
acredito que vocês também compartilham desse mesmo estado. O que querem,
portanto? É parte fiel do meu conto de fadas...
-Quem é você? - Tento me antecipar.
-Oi... Eu sou o João... E você, quem
é?
-Uma ansiosa criança – batia com meu
pé direito no chão para convencer ao coleguinha da minha impaciência -perdida
nesse imenso bosque, ouvindo cantigas e correrias. Sequer sei quem são os donos
desse som. Quero alguém para brincar comigo! Pode me ajudar Sr. João?
Aproxime-se, sem medo. Tentei chegar o mais perto que pude, o suficiente para
ver o tênis do João, bem como a bermuda e a camisa. Toda a vestimenta salpicada
de vermelho! Aterrorizada, recuei assim que inteirei-me da composição. Será que
ele teve a mesma formação dos mebros que eu?
- O que houve com a sua
cabeça?!? - foi o que pude
dizer, perplexa com o corpo infantil, composto até o pescoço, onde se esperava sapeca
face e arrojado boné.
-Não se preocupe, coleguinha. Tenho
cabeça sim e ela está sendo recuperada pelos cuidadores... pelo que vi e senti,
quem deve não ter cabeça são aqueles que fizeram isto comigo... – apontou com o
indicador um povoado, ladeado de montanhas, fincados por palmeiras e costurado
por aves diversas e coloridas, como caleidoscópios alados. Também ornava a
paisagem regiões de imensas praias, cachoeiras e rios. Embora não me recorde
bem, pareceu-me local familiar, além de ser um lindo lugar - Procuro minha mãe e minha irmã,
que estavam comigo quando fomos atacados. Fugiram com o carro de mamãe e eu
fiquei preso no cinto. Fui arrastado até quando me lembro e acordei aqui... Não
as viu por aí? Minha mãe é alta e bonita e minha irmã do seu tamanho...
Estranho... Ouço as vozes delas me chamando... Parece que choram... Estou
preocupado e por mais que vagueio, não consigo encontrá-las! Os mais velhos me
disseram para ter calma, que vou vê-las, mas tenho tantas saudades! –depois de
uma breve pausa, mantendo a voz dolente e pacífica, finalizou - Devo continuar
a busca, depois volto para a gente brincar, tá?
- Tá bom, João. Permanecerei por aqui.
– Retornei, entre frustrada e assustada - Não demore, viu?
Continuei também minha peregrinação e,
somente segundos após o afastamento de João, atinei-me ao que acabara de
presenciar: aquele garoto, pouco crescidinho, conquanto igualmente criança,
integralmente pincelado de sangue como se acabasse de vir ao mundo. E sem a
cabeça! Ainda assim, disse-me coisas... Seus lábios, a língua, não vi... Quem
disse para ele?
“-Aaaaaaaaaaalecrim
alecrim dourado
que nasceu no campo
sem ser semeado...
Oh, meu amor,
quem te disse assim
que a flor do campo,
é o alecrim?”
- Ei! Opa! Não olha onde anda?!?
- Desculpe-me... –justifiquei, após ter esbarrado na
desafinada cantora.- É que estou sozinha e procuro alguém que queira
brincar comigo. E ademais tenho dificuldades de andar por aqui... não enxergo
direito as pessoas e quando assusto estão muito próximas...Qual é o seu nome,
amiguinha?
- Violeta- respondeu, melindrosa. Acho
que não gostou da intimidade- Eu te vi passando desde muito tempo– Ela disse em
tom de competição infantil. Coisa nossa. Houve breve pausa e ao longe pude ver
sua face exibindo tristeza no olhar, que teria a cor condizente com o nome
anunciado: a íris deflorada, desfalecida e perdida. Estava a menina
estranhamente esticada no piso coberto de fina grama, como convalescente de
enfermidade grave -Tenho medo de brincar... – Inclinou em minha direção e pude
notar-lhe pueril luto - Olha
aqui, a boneca que ganhei... Ela diz papai e mamãe... A sua fala também?
-Não... – respondi, em mal disfarçada
inveja. Vou pedir para o meu pai uma, igualzinha a esta.
- Anteontem foi o meu aniversário e
batizado e teve festa! Fiz isso – disse, mostrando-me quatro dedos - E você,
quantos anos tem?
Retornei, exibindo um dedo a mais que
o demonstrado pela menina enferma. Acho que menti. Não sabia sequer minha idade
ali e suponho que todos blefavam neste quesito.
- Você tem um pai?
- Tenho. –respondi, tímida e incerta -
Todo mundo tem pai, ué...
-Eu acho que não...
Violeta, mantendo-se ainda deitada, ergue a saia que lhe cobria as
pernas. A delicadeza do algodão ostentava um tecido de cor branca e ornado com
desenhos, onde miniaturas de animais interagiam-se. Não tão cândido estaria o
conteúdo que o pano cobria, antes denunciava grotesca cena: a virilha
dilacerada e com pequenos coágulos de sangue, distribuídos na região claramente
violada.
-O que é isso?- recuei, tão assustada
quanto antes.
-Meu padrasto...
Fora cruelmente violentada –
lembrou-me o pequeno João o tom de voz que despertou dos lábios de Violeta, ao
narrar o infortunio –Teve festa, né? Ele estava muito alegre, bebendo e usando
uma “tal de droga”. Parece que quis fazer uma brincadeira comigo. Por que eles
gostam tanto de brincar assim com crianças?
-É! Vai ver que não sabem distinguir
que nós, crianças, não nos adaptamos a algumas peripécias de gente grande. Você
disse droga... O que significa? É coisa ruim ou boa? Sabia que uma mulher, onde
eu morava, quando era sementinha, tratou-me como droga, na frente de repórteres
e policiais, quando fui encontrada, boiando na lagoa?
- Ah, é? O que deve ser então isso?
Também não conheço... Parece que não é coisa boa e acho que até faz mal. Tá
vendo? Tenho que fazer repouso e tomar alguns remédios que aqui me trazem, para
curar o dodói. Aqui tem muitos tios e tias que cuidam da gente. Vem cá! Gostei
de você e já nem tenho medo mais... Assim que eu melhorar nós vamos brincar de
casinha, tá? Moraremos juntas, eu e minha boneca, você e a sua, viu? Gente
grande não vai poder entrar na nossa casa... só os que moram aqui.
-Viu! –apoiei veemente minha
amiguinha. No entanto, ponderei: será, Violeta, que toda gente grande é do
mesmo jeito?
- Não sei não... – Titubeou,
encarando-me. Seus olhos já assumiam tom lilás e a menina revivia, lá no poço.
- Bom, a gente os deixa entrar, mas a escolha da brincadeira é nossa, e não
deles.
- Combinado! - Finalizei. Uma súbita onda de calor
envolveu-me e sentia meus pés em
brasa. Levei a mão à testa e
abanei os cabelos que suavam já -Cruzes, Violeta... Que calor, esse! Não está
sentindo?
-Estou... – o suor brotava da fronte
de minha nova amiga- Já sei quem é. Não se preocupe.
-Incomodo vocês? – outra voz de menino
requisitou nossa atenção, e pude visualizar seu corpo chamuscado,
caminhando ao nosso encontro -Procuro ajuda, para salvar meus pais!
- Um piromaníaco! –Gritei, apavorada,
indecisa portanto se fugiria deixando ali minha nova amiga
- Não fujam... Não tenham medo,
coleguinhas... Apenas procuro ajuda para meus pais...
Explicou-nos o resumidamente o
ocorrido: passeava com sua família quando foram surpreendidos por meliantes que
não se deram por satisfeitos apenas com o roubo dos pertences, definindo em
brincar um pouco com as presas. Amarraram a todos dentro do carro e atearam
fogo. Ele conseguiu se desvencilhar das cordas e correu para tentar socorro,
sucumbindo ao desmaio ainda no percurso. Despertou-se ali, próximo de onde
estávamos, perdido e alheio a tudo.
- Ainda bem que saí do carro!
–continuou, em tímido sorriso e aspirando velada esperteza como um incauto
super-herói –quero conseguir auxílio para meus pais. Vou procurá-los e volto
depois para brincarmos!
Mal se distanciou, assomou-se, não se
sabe de onde, outras três crianças. Confusa, deduzi que estaria em uma colônia
de pirralhos, assim como eu, embora todas cicatrizadas e adulteradas
eternamente, em suas breves vidas. E notei também que conversavam entre si, demorando
em perceber minha presença.Tornei à conversa com Violeta, tentando ignorar os
demais, assim como fizeram comigo. Senti fome.
- Violeta, tem aí uma bala? Estou com
uma fome...
Foram unânimes em manifestar, já que
ouviam indiscretamente o diálogo entre nós. A primeira delas abriu a camisa
exibindo o sulco, bem na altura do peito. A outra suspendeu os cachos dos
cabelos e uma medonha fenda saltou, próximo à nuca. Por último, a terceira
ostentava perfuração na virilha. Todas elas, límpidas e prósperas, encontradas
por balas perdidas, cuspidas ao léu por adultos que talvez brincassem de
mocinho contra bandido em amargos disparos,
recheados de fel.
- Ali tem mais um montão de balas -
apontaram para o barulhento grupo que agora vinha juntar-se a nós.
“Saco furado!
Saco furado!
Saco furado!”
Vi vários meninos, maltrapilhos e
desordeiros, todos com perfurações pelo corpo. Confundiam-se na narrativa e
todos queriam o domínio da conversa, atropelando-se mutuamente, como formigas
atacadas. Informaram que estariam entre
sono e sonhos de auroras na ocasião em uma praça de igreja e receberam a fatal
doação. Inúmeros confeitos, lançados a esmo alojaram e interceptaram a quimera
deles, pequenos andarilhos, culminando com suas doces e miseráveis presenças no
canteiro utilizado como manjedoura. Um deles mostrou-me apontando o dedo um
local bonito onde fincaram a pequena cruz em memoria deles, ao lado da
imponente catedral, onde anos antes repousavam. Estavam na cidade maravilhosa. Pouco acima, no lado oposto, outra opulenta
edificação se impunha, a estatueta cor de gelo, braços abertos, feição séria em sua barba e reto em seu olhar, como
se abençoasse e velasse a região.
Aumentava a cada segundo a quantidade
de crianças, todos relatando a sua história, o motivo que culminou com cada
ingresso deles, naquele espaço. Confundiam-se nas datas, coisas de anos de
intervalo entre um caso e outro, porém em comum a conclusão de que não houvera,
ainda, ação que neutralizasse as barbaridades a que foram presenteados. Dedos
nervosos e minúsculos direcionavam ao longínquo e belo globo, recheado de muito
verde e também água. Cada qual indicava, em ponta de saudades, a região de onde
veio. Todos miravam e apalpavam-me, descarregando dezenas de questionamentos. O
menino decapitado juntou-se a nós, sendo imitado pelo outro, que mantinha o
corpo ainda rubro do fogo. Após desordenado falatório e desentendimentos,
birras e provocações, finalmente decidimos qual brincadeira faríamos. Agora
sim! A festa ficaria boa!
“-Morto... Vivo!”
“-Morto... Morto!”
“-Vivo... Morto!”
“-Morto... Vivo!”
Violeta era quem ditava, já que
estaria impossibilitada de atender à demanda que a brincadeira exigia. Assim
mesmo, comandava com visível alegria, enquanto subíamos e descíamos, entre
risos e gritos... Quem errasse iria sentar-se próximo à anunciante, e aguardar
até o final da contenda. Eu estava quase ganhado! Restava apenas um... será que
morri?
-Esperança! Esperança! Acorda, meu
bebê! O sol já raiou, coração! Estava sonhando, o meu neném? Que suadinho está
meu anjo, meu querubim!
Acordei, perdida e assustada com mimos
felizmente infindáveis. Minha mente dançava entre desordem, apertos e chamegos
recebidos e as imagens de meus amiguinhos aos poucos foram dispersando, embora
lembrava de tudo que conversamos. Ganhei um beijo na face e procurei
retribuí-lo, mal posicionando os lábios e lambuzando a pele de minha mãe.
-Bom dia, mamãe!
-Bom dia, minha flor!
-“Manhiêe”, conta de novo aquela
história do pescador de almas, que encontrou uma princesinha perdida no lago?
-Depois, filha. Vamos tomar o café
agora... À noitinha reconto, tá bom?...
Vi que ela tentou se esquivar e lágrimas
já lhe embebiam os olhos, como sempre fazia ao se aproximar. Talvez ela não
tenha viajado ou vai viajar ainda onde fui... E saber que aquele o bebezinho sobrevivente
a aborto e abandono estaria ali agora, beijando a face dela, afinal qual é a
nossa idade? Quanto a vocês não sei, mas esta história sairá de minha mente à
primeira boneca que eu pegar para brincar após o café... Mas ficará la no fundo
o que aprendi trouxe de lá... temos várias formas de escrever nossa historia e
podemos fazê-las... Aqueles amiguinhos estão revisando a que escreveram para
eles apagando aqui e ali, fechando feridas, aliviando dores, localizando o
perdido. Passaram por essa historia daqui pra que possamos escrever melhor a
nossa.. .
Minha mãe, despertou-me novamente
_Esperança, Querida! Quer dormir mais
um pouco? Hoje vou te ensinar uma outra cantiga. Ela é muito, muito, muito
bonita, e a mamãe ouvia sempre quando era menininha, igualzinha a você...Quer
ouvir?
-Êbahh! – Espalmei as mãos e me
concentrei.
Como pode, peixe vivo
viver fora d’água fria...
Como poderei viver?
como poderei viver?
Sem a tua, sem a tua...
Sem a tua companhia...
A voz dela era doce como a das
sereias, e ela sempre contava para mim uma história do tal pescador, que em uma
bela manhã de sol, encontrou uma criancinha boiando na lagoa azul. O astuto
herói tomou de sua vareta mágica e, de um só lance, pescou o nenenzinho que
chorava, desprotegido, e o transportou a braços realmente maternos. As garças
cantaram, os peixinhos saltaram alegres e até o improvável tubarão fez festa,
louvando a atitude do benfeitor humano... Não me cansava nunca de ouvir essa
história. Ainda hoje, à noitinha, vou pedir a ela para que conte de novo.
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