terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Insurreição


Menção Honrosa Concurso Guemanise de Contos, Rio de Janeiro, RJ, 2007



Ela entrou esbaforida naquele supermercado, sendo invadida pelo cheiro de lavanda vindo do piso. Forçava
os olhos à incisão das luzes que auxiliavam  comportadas e sedutores produtos brilharem como em um espetáculo. Contudo, remoía ainda lembranças da última reunião familiar onde ouvira a sabatina do marido sobre despesas que, segundo ele, eram desnecessárias e comprometiam o orçamento mensal. Sofria a cada vez que teria que ir ao mercado e a empregada ordinária cúmplice a acompanhava nas tarefas de supermercado, ouvindo desatenciosa as recomendações de economia e por vezes acudindo um e outro pedido das crianças. A patroa remoía a penosa aprovação em sua lista de compras elaborada, esta sim com muito custo, na véspera. Resignada, assistiu ser vetados itens relevantes, sucumbindo ao bico da impiedosa caneta do marido. Olha que ela, precavida, cuidou de não inserir produtos de beleza, apesar de necessários e ainda assim sofreu represálias. Tentava compreender, enquanto guiava o carrinho, examinando por diversas vezes os itens aprovados. Concluiu, portanto,  ser necessário agir com rapidez, para assim reduzir o martírio que seria ver o mosaico de produtos, imagina-los em sua casa a seu dispor e ainda assim não poder resgata-los. Empertigou-se, inspirou e expirou por três vezes seguidas e deu novamente partida no deslizante carrinho, direcionando-o ao setor de frutas e verduras. Enquanto selecionava os produtos listados, evitou olhar para tenras peras poque sentia que estas ousadamente que lhe sorriam, tentando atrair sua atenção. Atônita e buscando se concentrar, convenceu-se de ter ouvindo gôndolas sussurrando, mercadorias clamando por seu nome e buscava esquiva-se dos tentáculos que morangos lançavam a si! Veio à embaralhada mente materna o filho caçula, João Paulinho. Como gostava de peras, o querubim! Seus olhos brilhavam, quando via a fruta em sua lancheira , tão tenra e doce quanto ele. “Bom...  ponderou - ele não está bem em matemática, e no português, agonizante...”. Decidiu por condenar as peras a não serem comidas pela criança. A essa sentença, seguiu, resoluta, ao açougue e nesse setor não teve maiores problemas, inclusive adquirindo de bom grado o bife que ofereceria com batatas fritas no jantar, para o deleite de Marcelinho, filho do meio, carente de atenção e problemático para refeições. Andava magro o pequeno, prostrado em seus jogos eletrônicos e redes sociais. “Precisava, sem demora, visitar o médico” – concluiu, enquanto se dirigia ao setor de detergentes.
A lista continha apenas quatro itens de limpeza, aos quais foram acrescentados mais quatro. Justificaria como promoção relâmpago, se porventura o sovina a auditasse. Quando aproximou-se do setor de achocolatados e matinais sentiu que coração lhe abandonaria à sorte. Teve vertigens na presença de inúmeros biscoitos recheados. À sua frente, caixas de sucrilhos desafiavam-na, a foto do leite sendo derramado a cântaros  sobre a tigela entupida de cereal. Sacudiu a cabeça, tentou olhar para o teto e foi covardemente fulminada por diversas caixas de bombons enfileiradas e comportadas na prateleira superior, embora parecessem ensaiar um mergulho coletivo sobre sua cabeça, enterrando-a. Ignorou-as. Definitivamente não estavam previstas! Vacilando, examinou a lista, na esperança de alguma brecha, e viu somente a face severa e vigilante do marido, repreendendo-a. Dobrou, trêmula, o papel e, antes que desistisse, apanhou uma caixa de bombons, deixando o setor imediatamente após a aquisição, como se cometesse um grave delito. “O exemplar comportamento de Tati, a sua primogênita, justificaria o deslize – pensou, advogando-se - a pequena ajudava-a nas pequenas tarefas, além de se sobressair com esmero na escolares.Ademais era o xodó do papai.
Tão apavorada estava em distanciar-se do antro açucarado que quase pôs abaixo a montanha de cremes para mãos, sedutoramente exposta no corredor central. Deu-se conta de que  estava na família da perfumariam, local proibido para a oprimida vaidade e banido da lista. Ponderou que seria forte a ponto de resistir ao pecado iminente, até que e um dos diversos espelhos do setor, visualizou a figura horrenda, quase indefinível e repelente que a causou sua retirada imediada do local. Ainda assustada, cuidou que não poderia demorar mais por ali resolvendo liquidar as pendências na lista. À procura dos líquidos, águas sucos e derivados,  foi se aproximando da área de bebidas e a face do marido que parecia acompanhar-lhe em rígida censura, foi-se libertando da carranca e, para sua insana surpresa viu o esposo sorrindo-lhe a brancos dentes e brilhantes olhos, como um cortes príncipe  marido, impresso nos  rótulos da primeira garrafa de cerveja que visualizou, como se ratificasse a afinidade e aprovação com o lúpulo e que para essa linha de produtos, não existiria a menor restrição, tanto em quantidade quanto em preço. Esboçou um sorriso, não se sabe se para corresponder ao simpático rótulo ou mesmo o desvario da consumidora.
De súbito, algo acendeu-lhe a atormentada mente, como um raio, um clarão... Deteve-se, intrigada. “Meu Deus!– disse, em voz alterada-  “A figura que vi no espelho... me parece familiar...”
Voltou apressada à perfumaria buscando validar a intuição. Afastou bruscamente uma jovem que se perdia em sua própria imagem produzida no espelho. A mocinha recuou, assustada com a senhora e esta, não menos assustada, confirmou suas suspeitas sobre a imagem refletida: um monstro, de olheiras profundas e explicitas rugas, os cabelos opacos desalinhados ordinariamente ornavam a fervilhante cabeça e caia sobre a pele cor de pêssego, sem calda de sua face. Permaneceu ali recebendo a resposta do espelho, estática, com a lista de compras na mão e um brilho caleidoscópico no olhar. Amassava lentamente o papel, até que, em continuo ato, abriu levou-o à boca,  fagocitando a lista já compressa e regurgitando-o com a calma e precisão de um bovino. Finalmente, deu cabo da massa, sentindo que o próprio marido queimar em sucos gástricos, digerido até a última célula. Uma pequena multidão já se formava próxima à ela e seguranças do estabelecimento se posicionara em alerta. Alguns riam. Murmúrios surgiam aqui e ali.
Ela, portanto, buscou recobrar o fio de consciência possível e, com o ego alimentado, ajeitou sua roupa, remexeu os cabelos, contraiu e dilatou a face para expulsar as dobras. Por fim, estalou as mãos e deu partida no carrinho, cantando pneus e afastando curiosos. Suas mãos ágeis lançavam tudo o que alcançavam para o interior do carrinho. Comparou o supermercado à sua despensa doméstica e viu-se rolando sobre os produtos, seguida de sua empregada, solidária doméstica, em incontrolável frenesi.
Tanto exausta quanto satisfeita, na impossibilidade de colocar sequer uma agulha no carrinho, dirigiu-se ao caixa. Foi recebida com um sorriso amarelo da recepcionista, que mal disfarçou o desespero da iminente tarefa do registro de todas as mercadorias. Ainda assim retribuiu o sorriso, desafiadora. Ao findar os inúmeros registros, mirou o monitor onde totalizava a compra com algarismos a mais que o orçado. Na sequencia o monitor revelou uma cabeça decapitada, de olhos arregalados e língua presa entre dentes. Era o marido. Em sua volta, as três crianças, seus três anjinhos, rodeando felizes aquela cabeça hirta, tocando harpas em sagrada algazarra, coradas de tanta fartura. Digitou a senha do cartão e guardou-o na bolsa, percebendo que precisaria de uma nova. Maquiou-se e rearranjou os cabelos, enquanto acondicionavam a compra em seu veículo.
_ Encontrou tudo que procurava, senhora? – Inquiriu a mocinha, sorridente, mecânica e aliviada da tarefa.
Ela meneou positivamente a cabeça, certa de que encontrara sim, mais ainda do que procurava. Deixou o transformada, tão feliz por recompensá-lo com a compra, quanto ela própria, que chegara tensa minutos antes. “Realmente fazer compras relaxa” - pensou, ainda sentindo um gosto de papel e tinta na boca. 

Eleva dor

Premiação Concurso Internacional Crônicas, Publicação São Paulo, SP, 2008

Subi as escadas da portaria de dois em dois degraus. Precisava me apressar, já que estava há quinze minutos atrasado para a terapia, tão habitual às sextas-feiras quanto à feijoada que possivelmente devo atacar assim que possa me livrar daquele divã, onde tantos monstros já vomitei.

Não obstante, sentia-me enojado daquilo tudo. Terapia, terapia, análise... conhecer-me, ter prazer comigo... Às favas tudo isso! Preciso é de amar! Sequer me recordo qual último dia em que senti contato mais intimo com algum outro miserável mamífero. Estou enojado de mim, sinto-me um vegetal! Passeio pela casa dos trinta anos com passos e curvatura de noventa! Faço refeições sozinho, ouço músicas que ninguém ouve tenho hábitos que ninguém tem. Interajo com meus cães, plantas, carros e, até a lua, penso estar exausta de meus lamentos. Padeço de solidão! Anseio por doses de amor intravenal, sentir cheiro de pele, provar de suor salgado, morder e ser mordido, fungar... Imploro a Eros que mire-me e, impiedosamente, atire sua flecha bem no alvo exposto de meu aflito coração. Suplico a Dionísio que desencadeie torrencial chuva de vinho sobre minha cabeça que quero me inebriar, afogar nesse riacho de despudorado amor, gozar! Desejo ser tocado por outro ser, por outras mãos, quantas sejam, conquanto que não sejam as minhas! Evoco, com todas as minhas parcas forças a Príapo, fonte de poder para utilizar minha arma, que aniquile e liberte-me definitivamente dessa diário eunuco!

Adentrei a portaria principal do prédio e nem preciso me anunciar, a semanal entrevista com  analista  se da há bom tempo, sempre no quarto andar, onde divãs aguardam mentes ali desaguarem. O alerta do elevador acendeu e a ascensorista eletrônica – provando que desgraça pouca é bobagem - anunciou a subida do equipamento. Não bastasse a Internet, as salas de bate papo e milhões de e-mails que recebo, ainda tenho que interagir com uma assessora de bordo, sensualmente eletrônica. "Sobe" disse em estereo som a robotica companheira de bordo. Já no interior do elevador, fiz menção de agilizar o fechamento da porta quando ouvi afoita voz, desta vez humana.
- Sobeee? Tá subiendoo? Segura aí um minutinho, por favoar.

Meus até então melancólicos olhos se assanharam com aquela visão delineada, surreal. Vinha ela com os 
braços erguidos e as mãos espalmadas como linda manifestante de não se sabe de que, exibindo dedos  esticados e providencialmente afastados dos pares. Mal entrou no elevador, cravou uns raros  olhos cor de mel nos meus,  pobres abelhas operárias, fazendo um covarde biquinho:

 - Aperte o oaitoo, por favooarr...

Não vi o numeral convencional, uma bola sobre a outra, emaranhada. Visualizei o próprio infinito, o oito na sua horizontal, como se no divã estivesse a divagar sobre o eterno, e imaginei-me também deitado. Não sozinho, como de costume, mas acompanhado com a proprietária da voz mole e também infinita. Atarantado,  tateei o painel na busca do andar solicitado. "Oito, claro!, dois do sete e antes do nove! Ora, tão fácil"! Maquinava, tateando o  teclado que covardemente me apresentava embaçado. Na confusão, desastrosamente esbarrei nos outros números que instantaneamente acenderam ao calor de meus dedos.

A deusa sorriu lindamente ao meu desarranjo, talvez certa que que os maravilhoso dentes que se apresentaram com em ribalta  não atrapalhasse ainda mais a situação. Suas mãos, ainda espalmadas, desenhavam várias letras V no espaço, anunciação impiedosa da Vênus. Tão atônito estava com a companheira que tardei em perceber o cheio forte de acetona que envolveu o cubiculo. Mantinha-me sem controle a admirar a aparição, que mantinha ainda as mãos suspensas, recomendação da manicura que acabara de torná-la ainda mais bela ao pintar suas felinas unhas. Mal o elevador tinha parado no segundo andar eu já sentia torpores. O cheiro de acetona mesclado com esmaltes e demais perfumes formava corrente de odores fêmeos mulher e causavam-me um frenesi perturbador e eu já nao sabia meu nome, onde estava o que diabos viria a ser um divã.  Em meio a mensagens de sobe, sobe ditados pela ascensorista robô, ainda estávamos no terceiro andar quando uma campainha se anunciou.
 Não deve ser meu celular. – conclui. O toque alto e a melodia  Discretamente, averiguo a cintura de minha companheira, na tentativa de localizar algo e a única coisa que captei foi uma zonzeira, só por visualizar aquela cintura.

- Pode pegar meu telefone aqui, por favoar? – Pediu a ninfa de unhas pintadas.

Senti-me se agredido, só por ouvir a voz rouca, provocante, a qual combinava com todo aquele conjunto. Precipitei-me, encabulado, para abrir sua bolsa e atendê-la.

- Não tá na minha bolsa não, moreno... Tá no bolso da calça. Bolso da frente... – alertou-me, a voz cantada, dolente, rouca e cruel.

Senti-me ultrajado! Aquela calça apertada como estava, não armazenava nem pensamentos do subconsciente! E, logo eu, teria que explorar aquele campo?

A insistências da musa e barulho do celular, forcei o bolsinho do arrochado jeans e enfiei dois dedos que mal couberam naquela caixinha de Pandora. O simples contato de meu indicador com o tecido da calça já me fez sentir queimado, dado o calor que o bolso reservava. Pesquei, suado e vitorioso, o minúsculo aparelho que, além do som alto, vibrava em meio aos meus dedos, para o aumentar meu desespero. Abri cautelosamente, para possibilitar a conferência, buscando posicionar o aparelho entre o ouvido e aquela boca imprópria. Ela piscou de agradecimento. Tremi absolutamente todo o corpo.

- Alôoaa... Oi amoor...Lindooa! Tava esperando sua ligação... Por quê demorou?

Sentia já ciúmes quando chegamos enfim ao oitavo andar. Ainda segurava o aparelhinho e ela teria que desembarcar ali. O jeito foi deixar o elevador também para que ela continuasse a conversa ainda no corredor. Obviamente, continuei ainda segurando o telefone para não ser responsabilizado pela tragédia que seria estragar àquelas unhas. Minhas mãos tremiam, enquanto às delas estavam impossibilitadas de qualquer movimento ou confronto.

- Como assim? Não poderá ir? O quê? Sua mãe está com dor de cabeça? Ameaça que vai parti-la ao meio, de tanta dor? Não amor, de novo não! – girava o corpo a cada frase, indignada, e eu, antes desconhecido companheiro de viagem, monitorava o minúsculo celular entre a boca e o ouvido dela, admirando aquela boquinha meiga, redobrando o cuidado para não deixar escapulir o telefone.

- Ah! É sempre assim, né? A sua mãe está sempre em primeiro lugar. Está certo... Ela come seu fígado diariamente, e você ainda volta. É só a Jocasta chorar e você vai, engatinhando pro lado dela. Tudo certo, tu-do cer-to. Lembre-se que você prometeu! Não.. não vou brigar mais – Jurei ter visto os olhos dela lacrimejarem, essa cena já me incomodava – Não dá prá sair comigo, né, pois eu vou me virar então... A vingança, meu bem, é um prato que se come frio. Vou desligar sim, senhor! Até.

A despeito do choque térmico, desejei ser uma salada tropical naquele momento. Atônito, não sabia se a deusa findara ou não a conferência. e somente após um gesto dela que distanciei o aparelho celular, fechando-o novamente e devolvendo ao inferno de onde saíra.

- Obrigadoa!Você não estava indo para o quarto? – inquiriu, provocante, flechando-me com seus olhos de cruel cupido.

Balbuciei algo, ininteligível, petrificado.Jamais sairia daquele andar.

Criança Bomba

Premiação Concurso Crônicas Carlos Heitor Cony, Publicação Uberlândia, MG, 2007


 - Mamãe morava aqui, Mariana.... – Disse a mãe, saudosa, apontando com o indicador o imenso prédio que imperava atrás da calçada larga, limpa, com paralelepípedos brancos contornando outros de cor escura, onde se projetava o nome do edifício. A vista do prédio invadia os olhos negros e curiosos  da pequena Mariana

 - Nossa! - Espantou-se a pequena -  nessa casa tão grande?

- Não! - a melancolia de Ana deu vazão a um discreto sorriso, diante da inocência de sua criança – a nossa casa era bem pequenininha, menor que aquela onde moramos, na vila. Tinha outras casas aqui também, que foram compradas para construir esse shopping. Sabe a Tia Cecília? – tornou, na intenção de ficar mais compreensível à pequena, a qual fixava os olhos nos seus, ouvindo com atenção – Então! Ela também morou numa casa aqui atrás da nossa, e várias outras pessoas que não sei que fim levaram viveram aqui com a gente. Nunca me esqueço – novamente saudosa, deixou escapar um suspiro – era tão bom aqui, minha filha! Sentia-me livre, podíamos plantar, ter criação...

Mariana contava já com onze anos e lembrava-se vagamente do passado relatado pela mãe. Sabia também que a mãe trabalhava como faxineira na casa de um senhor, que viria a ser o diretor daquele shopping, conforme a própria mãe o revelara durante o trajeto. Estava ansiosa em ver o patrão de sua mãe e já imaginava um senhor alto forte, porém muito sério, que dava à sua mãe o dinheiro para as compras, uma cesta de natal que vinha bombons e panetone que comiam com gosto, ela a mãe e o irmão. A mãe sempre prometera levá-la ao seu trabalho, mas temia que a menina a atrapalhasse nas tarefas e também receava que a governanta da casa não aprovasse a idéia. Aquele dia teria um recesso escolar e, temendo talvez delegar  ao irmão mais velho a tarefa de cuidar da irmã, decidiu por levá-la consigo para o trabalho. Ademais, o comportamento do filho ia de mal a pior nos últimos dias.

O motor do ônibus foi  acionado e os demais passageiros se ajustaram nos lugares. Alguns folheavam jornais populares, vendidos no arredor. Ouvem-se suspiros de alívio e outros protestos à meia voz, com referência ao atraso do ônibus.  Mariana lança novamente o olhar para o estabelecimento e, apesar de ser esse o segundo veículo que apanha, se diverte, naturalmente, com a paisagem. Em poucos segundos, a imagem titânica do shopping  se distanciara, deixando, portanto, as últimas palavras da mãe circulando, difusas, na cachola da pequena, formando um sentimento de velada indignação. O shopping visto há alguns segundos, à primeira vista grande e muito bonito, agora se figura na cabeça de Mariana como um impostor, desbravador de terras,  exterminador de grupos familiares. Lembrou-se do semblante triste de sua mãe quando relatou o passado onde, vejam só, estava chumbado um prédio imenso. Projetou então várias outras casas, e, nessa ciranda de fantasias, concebeu algumas famílias sendo despejadas do imenso campo. Idealizou o lugar com hortaliças iguais às que aprendia cuidar na escola – já se via na gangorra que os primos fariam na ameixeira- e pensou  que tudo isso era injusto, mesmo no seu pueril entendimento dessa palavra. A mãe viajava a seu lado, muda, talvez como pensamentos familiares aos dela.     

Ao chegarem no trabalho da mãe, Mariana teve um sobressalto ao avistar o casarão. Se orgulhou da mãe, atribuindo a ela a responsabilidade pela limpeza integral da casa. Já no interior da residência, percorria os olhos curiosos nos objetos arranjados educadamente sobre os móveis. Sua mãe recebia orientações de uma outra senhora, possivelmente a governanta, dado o seu semblante sério e certa aspereza na voz. A observadora menina comparou-a à sua professora. Enquanto vagueia, via-se brincando e correndo com seus vizinhos naquela sala. Pique esconde, jogo de almofadas, fariam o inverso da faxina, desordenariam tudo. Não atentou, portanto, aos passos firmes que se anunciavam, provocando o recuo das senhoras a um canto mais discreto, com clara intenção de deixar o caminho livre. Do fundo da sala, emerge um senhor bem vestido no seu terno cinza, de cabelos grisalhos, bem penteados que, na passagem, mal acusa a presença das senhoras, agora mudas. Contudo, não conseguiu evitar de tropeçar na criança que cruzou o caminho, atarantada, na tentativa de se juntar ao grupo feminino.  A mãe, resignada, olhou com repreenda e a governanta apenas meneou negativamente a cabeça. O interrompido senhor olhou friamente buscando entender pequeno obstáculo na tentativa de identificá-lo, e abandonou o intento de imediato sem esboçar qualquer expressão. Continuou seu percurso. Minutos depois, o ruído do motor de um automóvel denuncia a saída do patrão,  proporcionando, simultaneamente, tranqüilidade nas pessoas que lá permaneceram.

Sensações confusas apoderaram-se de Mariana. Incomodava-se do momento que vira o shopping e ouvira sequencialmente o saudoso relato da mãe até o infeliz encontro com o seu patrão. Sua jovem análise atribuiu indiretamente àquele senhor a responsabilidade por tirar sua mãe da antiga casa  onde hoje funciona o shopping. Ampliou essa acusação para os demais moradores também removidos. Ponderou acerca do conjunto habitacional onde atualmente reside, das várias casas aglomeradas, mesmo formato, mesmas janelas, portas iguais e concluiu que tudo era exatamente igual, mesmo formato de casa, sem particularidades de cada morador. Lembrou-se das brigas em que todos os vizinhos participavam, do trafico de drogas bem à sua porta, do envolvimento de jovens, inclusive seu irmão com o crime. Ana, notando a mudança da filha nos últimos dias, passou a preocupar-se, procurando conversar com os vizinhos na tentativa de auxílio. Atribuíram o estado da menina  a algum quebranto, adquirido por inveja ou mau olhado. A cada dia Mariana se via assaltada dessas intermináveis sensações de revolta. Próxima já dos treze anos, corpo e mente edificando desproporcionalmente, tornara-se silenciosa, abandonara os brinquedos e até algumas amigas. Sua única companhia em casa, entretanto, era o mau comportado irmão, que procurava sempre protegê-la das maldades daquela  vila.


Volta


Premiação Concurso Crônicas Carlos Heitor Cony, Publicação Uberlândia, MG, 2007



VOLTA




Com o controle remoto nas mãos, ela passeia entre os canais. Detêm-se quando ouve uma melodia que tinha o costume de cantar, na sua época de faculdade, em saudosas e não menos saudáveis noitadas que promovia com a sua turma. Seus lastimosos olhos vagam, preguiçosos, do anúncio transmitido ao porta-retratos que jazia sobre a mesma mobília que sustentava o televisor. Lembranças vieram, intrusas, fazerem-lhe companhia naquela abatida tarde de agosto.

“- Não vá se distrair na rua, Leozinho! Atravesse na faixa, e tenha muito cuidado. Assim que terminar ligue para a mamãe!”

Enquanto desfiava as recomendações diariamente sancionadas, seguia, pela varanda, o filho apressado:

“– Olha que o tempo está esfriando... vista o agasalho!” - E, ainda a tempo, – “Mamãe te ama!”



Léo- como gostava de ser chamado e pedira intermináveis vezes à mãe para abdicar do desconfortável Leozinho que ela insistia em clamar referindo-se a ele- reivindicava que não era mais um bebê, apesar dos seus tenros dez anos. No mínimo Leonardo, o qual era seu nome, alusão feita pela mãe ao signo de Leão, regente do mês em que nasceu o filho. Tentava o garoto fugir desses mimos, carregando sua pesada mochila importada-presente do tio- e um pequeno fichário preso ao antebraço direito. Ao alcançar a rua, recebia indiscretos olhares dos vizinhos que ouviam todas aquelas recomendações maternas. Alguns, ousados, cochichavam impropérios e emitiam risinhos irônicos. Ia então cabisbaixo em sua timidez e resguardo, desejando evaporar-se e odiando a mãe pelos intermináveis merengues. Embora desconhecesse o pai, nesses momentos preferia tê-lo em dobro a uma mãe cacarejante igual à sua.

Já distante de casa, passou por um grupos de crianças brincando e correndo em total algazarra. Adiante, outros mais velhos divertiam-se rolando uma bola esfarrapada dos fortes chutes recebidos pelos pés que a disputavam. Teve ímpetos de se juntar aos garotos e dominar a pequena esfera, sentindo momentânea inveja do grupo, logo suprimida pela concepção de que era necessário engolir o curso de informática e inglês, indispensáveis ao intercâmbio que o tio prometera, no exterior. Seus olhos brilhavam à expectativa de que em breve, muito breve,  estaria fora do país!

Desde que viajara a trabalho, há quatro anos, o tio alimenta o Leonardo da promessa de levá-lo também. O aprendizado duraria três anos e, segundo idealizava, ficaria um período em passeios e se habituando para estudar, para assim arrumar ocupação naquelas américas. A mãe, que lecionava História do Brasil em escolas públicas protestava contra o desejo do filho e a sedução imposta pelo irmão.

“ - Esses estrangeiros! – dizia, indignada- já levaram muito de nosso patrimônio e não se dão por satisfeitos? Seduzem nossos próprios filhos e ainda nos privam da companhia deles! O que falta aqui?”

Essas eram as raras vezes que Léo sorria e a abraçava, divertindo-se com a dor de cotovelo demonstrada por sua mãe. Ambicioso, contudo solidário às queixas da mãe quanto ao aluguel e demais despesas, pretendia economizar dinheiro adquirido com a ajuda prestada ao tio,  no ofício de pintor residencial. Compraria uma casa melhor para ambos, no Brasil, retornando na primeira oportunidade para fazer-lhe companhia ou então tentar levá-la consigo, conquanto enjaulada – pensava - talvez a única maneira de conseguir removê-la desse país.

Tanto absorto estava com esses devaneios que foi preciso o veículo buzinar por três vezes para ele o perceber. Estava estacionado no acostamento com o pisca alerta acionado e o condutor, de óculos escuros, buscava informações sobre uma rua qualquer. Coincidentemente, o destino do automóvel era idêntico ao do jovem interpelado que, expansivo e vaidoso, se prontificou a ajudar, entusiasmando com o porte e beleza do automóvel. Projetou-se nos países do primeiro mundo, desta vez conduzindo um carro daquele porte, novo, lustrado, e só seu. Seria respeitado como um rei, absoluto, cheio de si.

Estava frio o sofá. Frio e áspero. Toda a sala também. Tudo era irremediável cinza, aos olhos decaídos da solitária professora, a não ser a foto que ainda brilha sob o criado, como um astro principal, desafiando o luto instaurado no ambiente. Um gato descansa pachorrentamente sobre a almofada rota e desfiada pelas unhas do felino. Há exatos três anos, a mesma foto circula nos cartazes afixados em ônibus, nas escolas e em milhares de e-mails, ignorados ou não, além dos demais locais de intenso tráfego de pessoas. Entretanto, aparentemente ninguém viu aquele garoto tão vistoso, nem mesmo o condutor do carro que o abordou e que ele prontamente procurou auxiliar, com a presteza de um nobre. Talvez o indivíduo, propenso humano que fosse, não saiba que a mãe de Leonardo não dormirá em paz, enquanto o filho não retornar aos seus braços. Talvez desconheça os intermináveis dias e cruéis noites enfrentados pela educadora, a preocupação em alimentar, cuidar-lhe das roupas e vê-lo tornar-se homem em sua pátria, aquecer o seu rebento do impiedoso frio que ora habita seu materno ser.. O telefone anunciado para contato ainda não tocou, para esse fim. Por certo, não querem libertá-la da sensação de impotência que lhe hospeda, impedindo-a até do alivio do choro. Ainda não foi restituído à ela ao menos o conforto de saber como estaria o seu Leozinho, seu pequeno reizinho, o seu sol, que, a despeito da hierarquia, provavelmente sucumbiu à investida de um astuto lobo mau.













Vida de Cão

Menção Honrosa Concurso Guemanise de Contos, 2007



Basta! Não vou! Se preciso for, farei greve de fome. Não mais buscarei o jornal na garagem, não anunciarei visitas, tampouco usarei notícias antigas para depositar meus indesejáveis detritos. Para mim, chega!
- É tão complicado assim passearem a sós? Será que sou obrigado a participar desses eventos bucólicos, coleira ao pescoço, colete atado ao dorso e por vezes até sapatinhos de tricô? Receber palavras confeitadas, interjeições de afetados estranhos: “Que fofo!” “Que mimo!!” Qual o nome?!?” “Quantos anos?!”, “Ohh!!”.. Não teria então razão para essa intolerância que me acomete? Acaso sou ou tenho sangue de um poodle?
Abdico terminantemente a esses passeios. Oferto-os a qualquer sarnento de minha rua e posso apostar que eles saltitariam de alegria, tanto que, quando divulgo minha aversão por esses programas, sou praticamente excomungado. Alguns até rosnam, raivosos, exibindo os caninos. Várias vezes fui atacado e quase perdi a orelha direita, além de insinuações que ouço, como a que tenho alma de vira-latas e deveria levantar as patas aos céus, em vez de ganir melancolicamente pelo tratamento recebido.
Um cão com dono! Essa é a minha sina... Não se assuste, portanto, se me apresento um tanto esquisito. Afinal, qual o cão que não se deleitaria com um bom passeio? Outrora, era o primeiro invadir o carro assim que se abria a porta, agitando a calda freneticamente. Por vezes inclinava-me, embora fosse a pior parte, para receber a coleira, ansioso pela caminhada. Já na rua, não perdia um lance sequer. Precipitava-me na janela, vento nas fuças. Ladrava para os carros vizinhos ou transeuntes que cruzavam meu caminho.
Todavia, esses arroubos se dissiparam. Meus latidos já estão mais roucos. Esganiço apenas. Todos lá em casa comentam essa minha vitiligem e ouvi discutirem sobre uma possível análise, para conter a depressão. O papagaio jura ter escutado sobre uma internação num SPA para animais domésticos! Sinto calafrios só de pensar em me submeter a algumas horas frente a qualquer veterinário. Tento então saltitar, morder algo, cheirar, como se tomado por um “trem doido”, para tapear as impressões sobre meu estado emocional. Tudo, menos uma clínica. Já me são suficientes visitas mensais para exames rotineiros e controle de pragas. Quisera eu que a causa dessa angústia se originasse de uma paixão descabida, talvez pela angelical Helena, a cocker que vi no salão de beleza ou algo do tipo instinto selvagem, como a sensual vira-lata Babalu, responsável por quase todos os jatos d’água investidos contra os machos da minha rua. Meu incômodo, entretanto, seria outro. Até me divertiria com os passeios se não fosse aquela tarde em que enfrentávamos um congestionamento e aquele abusado menino surgiu, imenso, bem na nossa frente, preto e saltitante como a uma pulga.
Fez uma rápida mesura e desferiu no ar duas piruetas, fazendo girar seus gravetos por cima do corpo, retornando ao chão tão perfeito como- argh!- um felino. Lati muito, besuntei o pára-brisas com minha saliva encolerizada. Após a evolução, o aparecidinho fez girar simultaneamente três bolas entre as mãos, sem deixar cair uma sequer! Eu, com muito custo consigo carregar na boca uma daquelas. Depois o engraçadinho, não se dando por rogado, apanhou dois bastões que repousavam no encostamento da rua, ateou fogo nas extremidades de cada um e os fez girar. Que revolta! Como esse mundo animal era injusto, cruel! Estava eu preso naquele carro, impossibilitado de passear se não com coleira, enquanto aquele vadiozinho pulava, dançava, fazia macaquices. Ainda sob as minhas barbas!
Várias vezes fui obrigado a passar por ali, no mesmo semáforo. Não tinha mais forças para latir e maroto já percebera minha preocupação por ele. Contudo, queria me provocar-tenho certeza!-sorrindo e fixando os olhinhos brilhosos em mim. O resto do que o compunha não imitava, porém, brilho dos seus olhos. Seus cabelos apresentavam-se opacos, possivelmente não tratados e escovados, tal e qual os meus. As roupas sujas, puídas. Um sorriso disforme denunciava alguns dentes quebrados, talvez pelos ossos que teve de roer. Qualquer pavão se orgulharia de seus pés quando caso deparasse com aquele par de ossos pretos e cascorentos que o garoto apresentava. No entanto, mantinha um sorriso invejável diante do seu picadeiro. Após as apresentações rápidas, inclinava-se desajeitadamente. Estendia os dedos secos e olhos ávidos para os vidros que ainda mantinham-se abertos. Indignado, eu aumentava a freqüência dos protestos.
- O que deu nele, meu bem? Está tão agitado! Não para de latir... – Ela olha para mim e para o espelho após a pergunta. Ajeita os cabelos. E busca o batom para realçar os lábios.
 - Não sei amor, deve ser o calor... tem moedas na sua bolsa? O garoto hoje se superou. Fez três números em menos de um minuto!
Gargalhadas encheram o veículo. Reforcei os protestos, indignado com a popularidade do rival.maltrapilho.
- Vou procurar... só um minuto...
- Agora não dá mais, o sinal está verde para nós.
- Oh, coitadinho! Outro dia entregamos a ele... E você, Toby. O que há? Anda tão agitado ultimamente... precisamos ver isso. Amanhã mesmo te levo a um psicólogo.
- Não exagere, querida! Não deve ser nada... Talvez ele se sinta sozinho lá em casa. Quem sabe não lhe arrumamos uma companheira? Ficaria até mais barato -olhou para meus olhos e depois para os dela- Viu quanto gastamos com ele só esse mês?
- Começa você – epa! A coisa está esquentando– Foram somente mil e quinhentos reais... Ah, meu bem... Precisei planejar a sua festinha de um ano... O Toby merece, ora!
Afagos, e mais afagos. Não agüento mais isso. É melhor esquecerem essa da terapia, para eu não ser de todo desmascarado. O que sinto é apenas inveja do garoto artista. Queria ser livre, andar nas ruas, fuçar as lixeiras e baldes para encontrar restos do que comer, tal e qual ele faz. Sem coleiras, sem coroas ou guilhotinas. Cobrir com jornal ao me deitar, em vez de depositar sobre ele excrementos de rações vitaminadas, bifinhos e ossinhos nutritivos que recebo sempre. Pêlos ao vento prefiro, a xampus perfumados, escovas, talco. Não mais carregar na boca jornais e sim auxiliá-lo, quando uma de suas três bolinhas cair no seu tablado. Pular em sua barriga, lamber as crostas de sua canela suja, rasgar ainda mais suas roupas com meus afiados dentes. Tenho sim, uma profunda inveja dele!
Planejam agora minha festa de aniversário. Mais essa! O papagaio da vizinha repetiu tudo o que ouviu. Todos os pedigrees do bairro foram convidados, com exceção do Pirata, um Pit Bul pelo qual nutro providencial respeito. Foi mais além a ave mexeriqueira: narrou que arquitetavam o meu enlace com Ághata, a fêmea recuperada de um seqüestro relâmpago. Pagou-se fortuna como recompensa para quem fornecesse pistas dela. Que situação! Planejam minha festa e interferem em minha vida íntima. Sequer cogitam em que penso a respeito.

Se assim o fizessem, gostaria que convidassem aquele menino exibido, que me causou esse desconforto. Sentiria-me vingado. Exibiria a ele meus presentes recebidos, meus amigos, cartão de vacina personalizado, minha família! Empatado das provocações, poderia tornar-me então seu melhor amigo, como um bom cão sem dono.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A grande família


Publicada no Jornal Oeste Setembro 2009 - Belo Horizonte, MG



O apresentador do noticiário narrava, em tom dramático.
“- Mais um caso de violência assola a capital mineira. Desta vez, a vítima foi um morador do Bairro Betânia, região oeste de Belo Horizonte...”
Alfredo acionou o controle remoto, deletando a transmissão já anunciada durante o dia. Sua esposa verificava os e-mails, feliz com os cartões de aniversário virtuais, enquanto o microondas preparava o jantar.
- Querida, onde estão as crianças? Indagou – Percebendo estava só, sentado no imenso sofá da sala, que comprou para abrigar a família.
-Ora Alfredo... Bebeu de novo? A Camilinha está no quarto dela. Agora mesmo enviou-me um cartão pelo Orkut. Muito Lindo! O João Victor também está no quarto, duelando com o Thiago em um jogo desses de rede. Já o Juninho “saiu” há pouco do messeger que acessou, lá da colônia de férias. Ficou tão gordo pela web cam!
O patriarca sentia-se tonto. Olhou ao seu redor e o que via eram tomadas espalhadas pelas paredes, arrastando-se ao longo da casa, invadindo quartos, cozinhas e banheiros... Até o canil possuía regulador de ar para manter o cão tão aquecido a ponto de sequer latir para atrair atenção de seus donos. Seu habitat invadido por cabos USBS, joystics, fios de rede, pendrives... A família unida pela rede. Fria, tal e qual a comida preparada pelo microondas. Comunicavam-se com “oi e tchau” antes de cada um se abrigar em seu quarto e conectar ao mundo virtual. O calor de um beijo na face e um forte abraço tornaram-se “bjs e abçs”. Alfredo desligou a televisão para ignorar a violência urbana e; sentiu-se golpeado em se próprio lar. A segurança de ter os filhos guardados em casa o tornava inseguro. Desejou impetuosamente um apagão para a desconexão geral e talvez assim ouviria a voz de seus filhos, sentiria o calor dos seus, e de quebra, não seria obrigado a engolir a comida cuspida pelo microondas.

Tempos Modernos

Tempos Modernos


- Alfredo, pode comprar o pão para a mamãe?
- Já ehh!
- Já é?!? O que você quer dizer com “já é”, filho?
-Já é, patroa... Quer dizer “só”, “tudo certo”, positivo...
A mãe ficou preocupada. O vocabulário do filho estaria cada vez mais excêntrico e desnudo de qualquer forma admissível de linguagem. Há tempos observava, melindrosa, o comportamento do adolescente: Dezessete anos e quatro piercings distribuídos por todo o corpo. Um deles em região tão escusa que apenas a namorada teria autorização para averiguar.

- Eu troquei sua fralda, ouviu moleque? - protestava a referida patroa- Agora me proíbe de até de reclamar dessa mutilação desenfreada no corpo que eu cuidei! Onde está o sexto pincin? Não vou perguntar de novo, hein!

-É piercing, véi...

-Que seja! Pincin, piercing, pinico, é tudo a mesma merda! -revoltava-se por jamais conseguir pronunciar o nome da interferência metálica- Ordeno que me mostre já!

-Nos badalo... E só a Marilu tem autorização para explorar a região... – disse sorrindo marotamente. Tentou fazer cócegas na mãe, a qual recuou, ainda indignada. Demorou alguns segundos para a rainha do lar associar o que diabos viria a ser “os badalo”, não sendo poupada, portanto, de um mal estar quando imaginou a crueldade que seria perfurar área tão sensível. Esperava apenas netos dos testículos de Alfredo.  O que estaria acontecendo com esses jovens de hoje? Por que essa violência no falar, agir e vestir-se? Como cravar assim de forma tão cruel, grampos, brincos e demais metais, na pele que mamãe tratou com amor, talco e beijinhos?  Veio-lhe na memória o ex-marido. Que falta lhe faz!  Certamente seria mais leve a bagagem se ele não tivesse interrompido o matrimônio para aninhar-se a sua aluna da biologia, biologicamente mais nova que ela. O pai mal procura pelo filho e o filho pouco interage com a mãe. Esta, crente nos moldes de um feliz casamento, sucumbia prevendo que a conclusão seria a solidão.

Alfredo retorna da padaria com a encomenda e já sem camisa, impaciente com o calor. Apavorada, a mãe visualiza mais uma tatuagem. Apenas vinte e cinco por cento do corpo que ela deu à luz mantinha a pele na tez original. Todo o restante era como um caleidoscópio, um mosaico de figuras que lançavam fogos, línguas viperinas, rabos e tridentes, enfim, o surreal epitelial.

- Mais uma tatuagem, Fredinho?

- Podes crê...!

Foi a gota d’água para que lágrimas rolassem em sua desesperada face. O filho ouviu os resmungos e, aliando a fato cotidiano, deu de ombros. Contudo, ao retornar da sala televisão para beliscar algo na cozinha deparou com a mãe acocorada ao tapete da sala, a cabeça entre as pernas. Chorava ruidosamente, como se pedisse colo.

Mesmo sem prática alguma em acalanto, o filho desajeitadamente tentou ampará-la:

-Fica assim não veínha. É a última, ou melhor, a penúltima tatoo. Prometi a Marilu tatuar o nome dela aqui- mostrou-lhe o cotovelo.

Ainda em lágrimas, a mãe não deixou de sentir uma ponta de inveja.

-Porque não o meu nome? Quem carregou você aqui no ventre, quem passou noites em claro tratando de sua bronquite, quem suportou seus gases, suas fraldas e cuecas sujas? E agora, tatua o nome dessazinha, em seu cotovelo?

- Menos mãe... segura a onda aí... tô pagando uma promessa, fraga? Fizemos um pacto. Ela tatuou meu nome todo na virilha, saca? Lá mesmo... E eu vou pagar tatuando o dela. Foi um custo conseguir que ela aceitasse a região... Ufa! Ela queria outra, é mole?

- E eu quero morrer! - foi o que disse dramaticamente, a mãe. Antes da nova crise de choro - Seu pai me deixou e nunca aparece para ajudar a cuidar de você, de nós... Tudo faço sozinha e vocês sequer preocupam como me sinto, o que sinto, se eu sinto! Não tenho mais vontade de viver!

Novamente Alfredo deu pouco crédito à cena, comuns às novelas seguidas pela mãe. Enganou-se, portanto, ou então a aquilo seria uma revelação materna nas artes cênicas já que os lamentos chorosos e soluços prolongaram-se pela tarde e durante toda a noite. Já tossia e fazia vômitos quando o filho resolvera procurar o médico da família.

-Depressão -diagnosticou o clínico, aspirando preocupação- ansiedade em excesso, preocupação e fadiga. Crise dos quarenta. Decepções com família, separação, solidão... Tudo isso em uma só panela, filho, é duro mastigar, engolir e digerir. Seu pai deixou a casa e restaram apenas vocês dois. Fique mais com ela, dê-lhe toda a atenção e não a deixe sem lazer.

O médico ministrou anti-depressivos, sugeriu passeios e outras terapias. Ao se despedir, segredou a Alfredo:

- É necessário apoiá-la, meu rapaz. Está muito desmotivada e isso pode ter conseqüências drásticas –procurou liquidar, enfático - irreversíveis.

Um fio tênue de preocupação apossou-se do rapaz. Talvez a mãe e o prático tivessem razão. Ademais, não poderia perdê-la para um sanatório. E, se os prognósticos viessem a se consolidar, só lhe sobraria, a namorada, e esta obviamente não supriria a ausência materna, a não ser que soubesse cozinhar, localizasse seus pertences dentro de casa. Também teria que saber combinar pares de meias, separar roupas limpas das sujas, fiscalizar o vaso sanitário, já que ele ainda não entendera da necessidade de se acionar a descarga. Enfim, teria que aprender fazer brigadeiro e lasanha, condição indispensável para pleitear o cargo ocupado pela mãe. Antevendo a impossibilidade de substituir uma pela outra e baseado em sua análise precária na distinção entre mãe e mulher, Alfredo decidiu por tentar mudar de hábitos e conceitos. E já.

Dedicou-se mais aos estudos e se preparava para vestibulares. Preocuparia mais com sua imagem e concluindo a retirada do último piercing que, até então, somente a namorada teria visto. Abandonou o intuito de tatuar o nome de Marilu, sua namorada, no cotovelo. Aproveitando, transferiu a possível dor que sentiria no cotovelo pela à então namorada, quando decidiu por dar fim ao relacionamento. Via com bons olhos a recuperação da mãe, paralelamente à suas mudanças e planejava cauterizar todas as tatuagens na tentativa de voltar à pele natural, sem interferências. Lera três romances em tempo recorde. Tornara-se caseiro e introspectivo e nas raras vezes que passeava, ia ter com o pai, na tentativa de persuadi-lo a reconciliar-se com a ex-esposa e conviver mais com a família. Contudo, desistiu do intento uma vez que foi visitá-lo e uma adolescente o atendeu, em roupas e maquiagem cor de rosa. Custou acreditar que estudante caminhava para o posto de sua madrasta. Ela o conduziu até o quarto onde o  pai estaria acamado devido à aventuras e diversões com a  infante namorada. Sete dias de repouso absoluto, bolsa de água quente nas articulações e até fisioterapia. Priorizar atividades pouco exaustivas como cinema, teatro, pescaria. Tudo recomendações médicas, do mesmo que assistia à família. Deixara recado para que Alfredo o procurasse e, assim quem o rapaz atendeu recebeu as orientações para diligenciar também os hábitos paternos, com recomendações contrárias ao ministrado para a mãe.

Já a desquitada resolvera também seguir as ordens de quem entende sobre saúde. Dois dias depois da crise dos quarenta estava em um shopping com amigas, também solteiras e cicatrizadas do matrimônio. Bebiam, sorriam entre milhares de assuntos que facilmente dissertavam. Não raro, o filho teria o sono interrompido para abrir a porta para ela, altas madrugadas, totalmente ébria e sem ao menos se recordar de sua própria chave. Sentia o bafo pelo beijinho de boa noite, já sendo dia. Incomodado, percebia que a mãe melhorara o humor e ponderou que talvez estivesse ela mal dimensionando as recomendações médicas.

Alfredo era outro, portanto. Proferia as palavras como se estivesse defendendo um litígio, sem gírias e com todos os pingos nos is, esses, vírgulas e ponto final. Evitava monossílabos. Seu guarda roupa também recebeu peças de roupas sóbrias. Não deixava um palito sequer fora do lugar e auxiliava a mãe na maioria das tarefas domésticas. Uma noite, ao retornar da faculdade, pensou que estivesse errado de casa quando avistou em sua sala um rapaz pachorrentamente espalhado no sofá, com controle remoto em uma das mãos e latinha de cerveja na outra. Na mesinha de centro, uma travessa,  recheada de batatas fritas e amendoins, esperavam serem degustadas. Havia televisor e o som ligados. Alfredo quedou-se por instantes, examinando o terráqueo de cabelos projetados para o alto, empapados de gel. Apesar de mamífero, o espectro lembrava a uma ave silvestre. Só no seu rosto contava-se cinco piercings, sendo dois grandes, um em cada orelha, um menor no nariz, outro na sobrancelha e o último nos lábios. Uma camiseta preta, totalmente aberta denunciava outro metal cruelmente cravado no mamilo e a calça deixava à mostra metade da cueca. Apesar da grotesca aparência, aparentava ter idade inferior à sua.

A mãe vem da cozinha trazendo mais cerveja, cantarolando e sorrindo. Seus cabelos estavam desalinhados e suas roupas um tanto desconexas. Deteve-se, entre surpresa e acanhada, tentando em vão se compor diante de seu filho.

-Alfredo! Chegou tão cedo, filho!- Tentou quebrar o gelo, embora o outro não tirasse os olhos da visita- Oh! Este é o Rô... –franziu a testa e odiou sua memória.

-Rogério – disse o novato, mordiscando uma azeitona e não tirando os olhos da transmissão televisiva

-Rogério!. Isso, Claro! Rogério! Eu e Rogério estamos “ficando”, meu filho...

O recém chegado ainda permanecia inerte processando o termo utilizado pela mãe para definir o relacionamento com possível candidato a padrasto, o qual estendeu-lhe a mão, exibindo o braço tatuado. Entre várias figuras excêntricas , um nome grotescamente impresso na pele: “Amelía”.
Alfredo sentiu uma fincada no peito! Era o nome de sua mãe, erroneamente escrito no braço analfabeto! Olhou desolado para a outrora patroa, que procurava esboçar um sorriso. Percebeu que o braço esticado para si aguardava o seu para apertarem as mãos.

- Prazer, Alfredo – mentiu,  quanto ao prazer,  buscando polidez nas palavras. Quis exigir imediata correção no acento agudo no nome tatuado no estranho braço.

-Já é... – foi o que ouviu como resposta.



Velhos tempos, belos dias...

Publicada no Jornal Oeste em Dezembro 2009 - Belo Horizonte, MG



O pai ouvia a melodia nostálgica que outrora coçara seus jovens ouvidos, cantando o refrão, aproveitando-se da solidão na sala: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber...” Suspirou, ao recordar da época em que letras de músicas e idéias socialistas eram consideradas subversivas. O filho veio do quarto, despertá-lo do devaneio:
- Veinho, amanhã tem axé no Mineirão, valeu? Pode adiantar uma grana para segurar a onda?
O patriarca levantou os olhos nos óculos inclinados e suas grisalhas sobrancelhas contraíram-se.
- Axé? – De que se trata filho? Algum movimento sobre consciência negra? – entusiasmou-se, aproximando-se do filho que o mirava com incredulidade- Como fico feliz por vê-lo assim tão engajado em causas sociais! Movimento racial... Igualdade... Chego a me arrepiar! Sabia que nosso país foi edificado por braços negros? Certamente já ouviu falar de Chico Rei, Chica da Silva, da corrida pelo ouro e diamantes...–empolgava-se- Olhe, quando era jovem, da sua idade...
- Viaja não, paizão...– interrompeu o filho, ajeitando os cabelos para ficarem arrepiados– a parada é Axé Music, sacou? Agitação, Zoeira, mu-lhe-ra-da... Pense em uma louraça, cantando no palco “Eu quero mais é beijar na boca, eu quero mais é beijar na boca e ser feliz...” Então pai! É a deixa, cara... Vou beijar demais! Tira o pé do chão!!!
- Beijar muito...- retrucou o outro, coçando a barba - Só o velho aqui sabe o que teve que enfrentar para chegar aos lábios de sua mãe... É o tempo... Nos dá lambadas, revira a história, retira e põe seres em vários cenários, contraditórios como hoje. Veja você: na sua idade eu tinha que driblar meus amedontrados pais, se quisesse assistir a festivais de música. Você hoje de camiseta, bermudão e cabelo arrepiado. Eu ontem cabeludo, boca larga na calça, camisas vermelhas. Você no funk e no axé e eu brigando por um vinil do Raul Seixas e outros novos baianos, oriundos, inclusive da terra do axé... E aqui, face a face contigo vejo o quão é covarde esse tempo, né filhote? Ele brinca conosco! Veja você que suas músicas tocam livremente nas rádios e não são perigosas à sociedade, como aquelas...
-E aí paizão? O papo tá bom, mas... Pode ser? – apressou-se o jovem, com as mãos estendidas não para a benção e sim para receber o donativo. Alcançado o intento, o filho iniciou a promessa de beijos já na face porosa do pai, que, ainda meditativo, o viu sair apressado, caminhando -com os pés no chão - contra o vento.