terça-feira, 13 de junho de 2017

A bela e a fera

A BELA E A FERA

A girafa mantinha a fama de má vizinha e parecia não se importar nem um pouco com isso. Ao contrário, humilhava a todos os condôminos do zoológico, gabando-se elegante e asseada, entre um séquito de características que a si mesma atribuía. Sem o mínimo de modéstia, sentenciava, em uma de suas megalômanas palestras:
- Ora, senhores... Não percebem que os visitantes demoram-se mais em contemplar a minha casa? Claro... Sou requintada, elegante e sei receber muito bem! Mirem meu lar... Alto, imponente...- inclinava, sem a mínima dificuldade devido o longo pescoço, a cabeça ao topo de seu curral buscando validar a informação - Não lembram as antigas torres que abrigavam nobres? Querem mais?!? Olhem para esse corpo e me digam se não represento o padrão de beleza aceitável. Ora! Não censuro vocês, hein? Afinal, nem todos podem gozar de alimentos frescos, colhidos do topo de boas ramagens, limpos, verdes e saborosos. Agora, digam-me: – mirava a todos, extremamente soberba. Seus arregalados olhos pareciam querer brilhar mais do que o sol- Qual quadrúpede pode se comparar a mim?
- Mas o que é isso, comadre? Como pode falar assim com seus vizinhos?... Quer saber? Já estamos fartos de sua arrogância. Não vê que está dento de um curral, come ração, tem rabo e até chifre?
A girafa nem se deu ao trabalho de girar o imenso pescoço para responder à zebra que já se entretinha com um pequeno arbusto, após a manifestação.
_Como ousa tratar-me por “comadre”? Não me recordo de ter batizado burricos listrados de preto... - Ora... Se enxerga, querida! Deverias manter a boca fechada, porque tens enormes dentes e carrega azar até no nome – deixou escapar cínico risinho –Ih! Deu zebra, meu amor, deu zebra!

Ouviram-se risos, tímidos a principio  e aumentando a cada animal presente na conferência. A preguiça moveu-se ao se dar conta do burburinho. Arrastou no galho buscando melhor foco. Ofendida, a zebra cismou por segundos, as orelhas decaíram e o focinho as imitou. Foi recolher-se em seu alojamento, ainda com ramos do mato presos à mandíbula.

Protegida em sua gordura também estava a hipopótamo, que mal punha os focinhos no tempo para não topar com a antipática vizinha. Tinha pavio curto estava pelas tampas desde o dia que a girafa  teceu ácidas críticas à sua silhueta tridimensional e impuro lago onde ela banhava. Comentavam que ela sugerira à melindrosa hipopótamo conhecer as fontes de Araxá, e já que gostava de banhar em lama, que fosse em lamas onde se deleitava a deusa Beja.

- A situação está insustentável... Temos que dar um jeito nisso! - Protestou o elefante, girando freneticamente a calda para afastar hospedeiros - Não sabem da última? A coisa ruim amolou minha dona. Falou que sua pele era grossa demais para hidratantes e as orelhas nada mimosas, sendo impossível qualquer brinco cair-lhe bem. A patroa está com uma tromba colossal! E isso já vai pra uma semana! Pescoçuda dos diabos!

Os bichos se envolveram em depoimentos, invariavelmente queixosos e em poucos segundos uma profusão de grunhidos se formou no ambiente, conquanto o tema unânime fosse os impropérios destilados pela esnobe girafa. Toda a fauna guardava um episódio, verídico ou não, em desabono à girafa. Discutiram, discordaram e, após gritos e palavras de ordem, findaram a assembléia, tendo elegendo o macaco – famoso mensageiro de fuxicos, e não menos mal quisto - para transmitir os relatos ao leão.


_ Hummm... - gemeu o felino, sem ao menos mover uma pestana. Aquele macaco abusado sempre vinha atrapalhar-lhe a sesta, com seus enredos banais. Sujeitinho inconveniente, trapaceiro e trapalhão. Entretanto, o assunto pareceu-lhe merecer alguma atenção: Uma girafa fa, potencial presa, ameaçando seu incólume poder – Quer dizer que vaidade anda a dar as caras por aí... Interessante... muito interessante, meu caro  –tornou ao fofoqueiro que, com a calda enrolada no tronco e de ponta cabeça, evitava em mirar o temível interlocutor – Acaso conhece algo na terra ou no ar, nos mares, enfim, no universo, e que este tal algo concentre poder superior ao seu rei? Hein?– inquiriu, engrossando a voz e arrepiando a felpuda juba.

_A-A-Absolutamente, majestade...– balbuciou o macaco, movendo freneticamente a cabeça, em sinal de negação. Sua bocarra exibia desconexos desalinhado sdentes.

_ Hummm... Perfeito... Perfeito! Então a magrela quer ser celebridade... Mal sabe ela, creio eu, que neste mundo o preço pela fama não é dos menores. A vaidade, ouça bem! É uma das facetas da paixão, responsável pela cegueira e pela dormência da mente. Ela ludibria, encanta, extasia... Depois degola...- procurou fixar os grandes olhos no macaco, fiel ouvinte - Ela rastrja é réptil,  fulgás, de inúmeras facetas. Cobra que se envolve no tronco, sinuosa, servil e letal, (oferecendo tenra maçã)... A vaidade é saborosa como a tenera maçã .Eenquanto quente, alimentada pela luz dos olhares, pilotada pela cegueira. Basta esfriar, pobre primata, ela nos abandona e nos lança ao cinza da solidão. Destrói-nos, sendo ela criminosa e testemunha única... – o soberano deu uma pausa, pousou seu olhar em um ponto fixo,  saboreando as palavras como a um lombo de antílope. Já o macaco estava inebriado com a altivez de seus passos, o discurso firme e comedido – Afirma então que a quadrúpede anda boquejando por aí sobre sua pelagem bonita, altura, o refinado paladar, balelas, balelas e balelas! - Urrou forte, fazendo estremecer adjacências. O mensageiro, desperto do torpor da admiração, por pouco não despencou do galho, e já se arrependia da missão assumida. – Senhor mico - suavizou o orador – deves presumir que as reclamações sobre o seu comportamento não são raras, pois não? Então... És indisciplinado, acusado recorrentemente costumaz  de atirar dejetos nos visitantes, furtando adornos e alimentos; Cheira e come as próprias fezes, em público, e, irrita aos seus companheiros com seu leva e traz alcoviteirointeresseiro... Confesso que já havia formulado uma solução para o seu caso e, se lhe interessa saber, não seria de seu agrado – riu moderado, mostrando parte das infalíveis presas. Girou majestosamente o corpo, para a sanção: Amanhã é dia de visitas, dia de desfilar!!! Converse com a lady pescoço , convença-a a ficar bem bonita para os visitantes. Quem sabe assim não fomente sua emergente fama? Tenho certeza de que você, afamado racional e estrategista, providenciará uma solução –Definitiva...- frisou- para esse mau arranjo... Entendo que devo contar com você para resolvermos o pormenor, e, quem sabe assim reviso a sua ficha, abonando uma reclamação aqui, outra acolá... O leão girou nas patas, evidenciando o fim da conferência. O ouvinte buscou apressar-se para a irrecusável delegação. Levava a palestra na mente e teria que agir rápido, sem (permissão) para erros.

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_Não é que o povo do zôo tem razão? Daqui do alto posso confirmar! É realmente bem apanhada, colega... Penso que talvez devesse se resguardar para amanhã, dia de visitas... Sopraram por aí que a zebra promete novidades no visual. Modelito inovador, alta costura, boa fazenda... Ton sir ton... Já se tem apostas de que todos ficarão paralisados no curral dela. A zebra nwtrsrs jóias...

A girafa quis dar de ombros: “Macaco descabelado e insolente! Como se atreve a dialogar comigo, em linguagem tão vulgar? Que macaquices quis dizer com “colega”?
Todavia, o assunto da zebra a intrigou.

_Ton sir ton? Na quadrúpede listrada? Ora, Não me faças rir! Conversinhas de pouca monta...-retrucou, mastigando uma fresca ramagem.- Ela não nasceu pra anfitriã meu bem... Não tem tombo e, cá pra nós, veste-se muito mal! Você, alcoviteiro por natureza, acha que eles preferirão ver a zebra a se admirarem por mim?

_Sei não... – o macaco lançou a calda em outro galho mais próximo da referida colega , para o martírio desta que estava atormentada com o odor nauseabundo- A senhora pode ser até elegante de modos, e saber receber convidados –redargüiu, em velado som. As palavras do leão tamborilavam em sua mente. O tronco, a cobra, a maçã... – Mas sabe como os são os humanos né?. Esses visitantes não perdoam, são exigentes e detalhistas... Permita-me: A madame não inova...

_ Não o entendo, miserável... Seja mais claro, ou retire-se o quanto antes! Não vê que interrompe o meu desjejum?

_ É impossível que ainda não tenha percebido, madame... Oh! Detalhes! Porque existem! – Dramatizou, levando afetada mente a pata à testa - Perdoe-me senhora, a ousadia. Penso que é tão vistosa, esse pescoço tão delgado e bonito, embora tão nu... – mirou o horizonte, imitando grotescamente ao leão.

_Nu?

_Exatamente. Nu. De que adianta gracioso pescoço, sem sequer um adorno? Uma jóia? Vá por mim, senhora... Explore mais esse monumento e eternize sua altivez e beleza! Não é um pecado deixar de ornar esse tronco vivo e aveludado?

_Ora, ora... Vejo que pensas! – a girafa já bailava em seus devaneios. Palavras como pecado e ornar, cheiravam-lhe bem e aguçavam-lhe o paladar – quem sabe alguns ramos de laranjeira não deixariam-me mais graciosa? Providencie alguns, bem bonitos, para mim.

_ Oh, não seja ingênua! – objetou o macaco, afetadamente.  - Não ficaria de bom tom um colar tão simples, e ramagens murcham quando tiradas da fonte. Ademais, a senhora poderia comê-las, antes mesmo da exibição!- pausou, grave - Talvez a coral... – arriscou, estalando os dedos - Sim! Uma coral, lustrosa, linda ofuscante, enfeitando-lhe. É o que há!

_O que diz? A cobra coral?!? – A outra arregalou os grandes olhos. Sentiu um aperto nas amígdalas.

_Por que não? Diga-me: Qual de nós não ficaria lisonjeado em acompanhar a celebridade do zoológico? Imaginou a senhora, lindíssima com o colar envolto no pescoço, podendo variar de formatos, ora pêndulos ora adornos à moda africana, a pele da coral brilhando sobre os raios de sol, com suas encantadoras cores. Cá pra nós:- aproximou-se, sorrateiro e fedido. Mordiscava desajeitosamente uma semente- Seria a última palavra sobre moda no reino animal! Que venha a zebra com seus cafonas pijamas!

A girafa quase não ouvia o que o outro dizia, absorta que estava na imagem onde se expunha, glamourosa, para a tietagem do publico. Seria o trunfo! Via flashes câmeras ovações..

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A cobra coral (consultadw) não ofereceu resistência ao pedido, inclusive antecipando-se ao horário combinado. Apresentou-se mais lustrosa que a encomenda e com apetites de motivação. Realizados as negociações com o macaco, ornou o pescoço da girafa e esta promoveu a faraônica apresentação, como nunca presenciad dea no local. Todos os presentes admiraram a sua ousadia e não queriam perder um lance sequer, convencidos de que evento daquela proporção jamais se repetiria. Ouviram-se sussurros, aplausos, e o brilho da deusa ofuscava tanto que bastava aproximar do público para que máquinas nervosas disparassem flashes. O
 macaco batia palmas lá do alto, pendurado em um tronco. Não se importou de ser ignorado pela estrela, inclusive, declinou-se de aproximar da dupla. Findo a programação, os presentes dispersaram, aos poucos, até restarem apenas a girafa, seu cilíndrico adorno e o macaco. Exausta, a super star fez uma leve reverência ao seu consultor, obsequiada e não menos orgulhosa. Aproximou-se de um tronco, na intenção de facilitar a retirada da coral. A cobra certamente não entendeu a mensagem ou, pelo contrário, aconchegou-se ainda mais ao cilindro felpudo, provocando à lisonjeada certo incômodo de calor. A Estrela tonteava, sentindo o chão esvair-se e o brilho ofuscar, enquanto a serpente condensava os afagos. Ocorreu-lhe de pedir auxílio ao promoter. Logrou vê-lo, embora a voz não lhe saísse da garganta. Lembrou difusa, que combinara tudo com o impertinente e que talvez descuidara de tratar do pagamento. Talvez não tenha ficado claro, como sua visão agora turva, sobre eternizar a sua beleza . Teve desejo de comer flores de laranjeira, tão doces, refrescantes e aromáticas. Pareceu-lhe ver a zebra desfilando perto de si, desajeitada em seu vivo ton sir ton. A elefante abanava languidamente as orelhas e o vento produzido  ainda assim não alcançava a agonizante girafa, que jurou testemunhar um brilho de brincos rasgando o ar e bailando como um caleidoscópio. Estariam eles ornando a grotesca orelha do dromedário? Ouviu estrondosa gargalhada e conferiu ser da hipopótamo, que ao pé da cachoeira, banhava-se retirando o resíduo de lama, com enormes dentes à mostra. Estaria sonhando? Sentiu, a girafa, que as longas pernas não mais lhe obedeciam e fatalmente desabaria breve, como uma vedete falida e bêbada. O que, de fato,bocorreu

O macaco, que a tudo assistia, validou o projeto. Sorriu, sarcástico. Lançou-se em um galho frondoso onde teceu uma coroa de flores de laranjeira. Presenteando a si, ornou a cabeça sureca e grotesca com a coroa cheirosa. Arrepiou carreira para participar o feito ao leão. Teria que se apressar ou então interromperia o repouso real.