terça-feira, 13 de junho de 2017

Frango Púbere

_ O que vai querer hoje pro almoço, Dona Bela? – disse a negra,  com uma das mãos segurando a colher de pau e a outra na cintura, aparentando um robusto bule- O "orégo" cabô e o “ai” tá quais no fim. – um suspiro dilatou suas já dilatadas proporções- Num gosto de cozinhá sem meus tempero.
Izabelle, a patroa, desconversou e foi para a sala de televisão. Desistira de ensinar à cozinheira sobre a nomenclatura dos ingredientes. Orégano soa melhor e mais saboroso que “orégo”... “Ai”... Senhor, que diabos seria isto?!? _Alho, Judite, A-lho!

A outra também dava de ombros. Engolia o “s” ao final das frases sem cerimônia. Uma luta inglória da patroa. Judite já viria temperada com o dicionário do interior de Minas Gerais e toda sua infinidade de substantivozinhos: cafezin, anguzin, franguin. Acostumada ao eterno calor da lenha que se mantêm independente de chamas, em seu interior, a negra não teve dificuldades em empregar-se na capital e, na cozinha, operava milagres com suas colheres de pau, conhecedora de temperos e ervas como ninguém. Prática com insumos, plural com o os cozidos e fritos, disponibilizava pratos com rapidez e qualidade impecáveis.

 Já a patroa apreciava os pratos da cozinheira, embora viesse sendo entupida de atrações onde consultores de culinária se portavam como reais alquimistas, ora ensinando a fritar ovos no vapor, ora inventando mirabolantes pratos de complexidade sem igual, quase sempre resultando em um magro palito com ervas e decoração de cremes a ser servido em rica louça. O tempero marcante seria a afetação.  Sim, seria o chic, o creme de la creme que seduzia a cada dia a patroa e seriam incansavelmente discutidos em roda de amigos, em jantares e coquetéis.

Izabelle, vez por outra, convocava à cozinheira à sala de televisão ou exibia um vídeo pelo celular para compartilhar uma ou outra exibição do gênero, esperançosa de que a matéria aguçasse o apetite desta, ansiando em metamorfosea-la em, quem sabe, em uma Cheff.  Ao que a outra sancionava, com as mãos na cintura e pano de prato ao ombro:

_Uai, Dona Bela. O moço tá ensinando fritar ovo?- Gracejava, exibindo a beiçola. – Num vi de tudo ainda nessa vida, meu pai... Quero saber se ele ensina botá ovo. Fritá já sei é muito!- concluiu, desta vez com ruidosa gargalhada, apressando-se em fiscalizar o feijão no fogo.

Ocorreu que renomado Cheff de cozinha, mineiro de parto e europeu de moradia há mais de vinte anos, visitaria o Brasil para um evento gastronômico, e, segundo a programação, viria meter sua colher aqui nas Minas Gerais, sua terra natal, provavelmente distante de suas lembranças. Corria aos quatro cantos que o mago das panelas exibiria, em feira gastronômioca no Minascentro,  o afamado “frango púbere”, prato de sua autoria consagrado em Paris. A produção não economizou na divulgação, onde chamadas eram anunciadas em vários meios de comunicação, fotos diversas do prato expostas de ângulos e tamanhos distintos e o nome em língua estrangeira “pulet pube” seduziria mais ainda os amantes da boa mesa. Isabelle se apressou em adquirir os limitados convites, ciente de que haveria apresentação dos pratos conforme anunciado. Ponderava que se a onda era repaginar o espaço gourmet, porque não repaginar também a tradicional Judite? Poderia não ser de tão mal. Ela aprenderia pratos requintados, oportunamente o nome dos ingredientes, e poderia fugir dos padrões mineiros de cozinhar. Algo mais apresentável, mais fino...

Nesse pensamente, tornou à cozinha, intencionada:

_Judite...
_Hum...
_Temos um programa amanhã, querida- disse arregalando os olhos puerilmente- Um evento com o Cheff Flavio Moss. – mirava a cozinheira que arregalava também os olhos.- Ele é brasileiro, daqui de Minas e mora na França há mais de vinte anos. Um guru em gastronomia, renomado consultor. Vai apresentar seu famoso prato “pulet pube”, dar oficinas e dicas para requintarmos nosso espaço gourmet! Prepare boa roupa para irmos.

A cozinheira franziu a testa. Queria saber o significado de Cheff e o nome do prato dito com biquinho. Isabelle explicou, procurando sintetizar e convencer a empregada em acompanhá-la. Temia preconceito dos convidados para futuras recepções por causa dos pratos regionais que servia em casa. E como os apreciava!  A outra assentiu em prestigiar o conterrâneo, afetado a gringo.

O evento iniciou com ligeiro atraso e elas se acomodaram nos primeiros lugares reservados à platéia onde se via câmeras ocupadas em transmitir ao vivo a apresentação para as redes de televisão e internet. O stand montado proporcionava a visão de uma bem equipada cozinha. Ao fundo, espécies de legumes graciosamente dispostos em cestas e cartaz informativo das propriedades nutricionais, plantio e origem destes. A lado, uma graciosa gaiola abrigava um frango de vistosas penas e carnes,  que se entretinha em bicar grãos. Serviria de exposição para o público onde uma moça explicava sobre o cultivo do animal titulo do prato apresentado, a alimentação, cultivo e tempo de abate. Sobre o balcão os insumos para o prato principal, já com outra ave similar,  já abatida e preparada para execução da apresentação. Judite observava a tudo: o amplo espaço e beleza do salão no Minascentro, embora estivesse por entender o porquê de tudo aquilo para cozinhar um simples frango.

Com efeito, o mago Moss apareceu sobre aplausos, agradeceu em francês e português, anunciou suas credenciais bem mais extensas que sua própria figura contida e miúda. Judite estranhou o pequeno, achou-o “prosa”. Cutucou a patroa que decifrou sua impressão.

- Não Ju.. ele não é pedante... São apenas trejeitos de sua terra...

Após palestra sobre tendências, novos temperos e afetadas ervas, o cheff elencou características do prato principal, o “pulet pube” como era conhecido em seu bistro, na França. Apresentou a ave reclusa, que deveria ser preparada ainda adolescente, sendo portanto mantida em cativeiro especial observadas as ações do clima e alimentação rigorosamente selecionada . O mestre iniciou por demonstrar em brilhosa tigela de inox a própria matéria prima limpa e desossada, de cor rosada e atraente. Temperou-o, enaltecendo cuidados e mesuras na quantidade ingrediente. Era um nanico cheio de modos, com passos comedidos e sinuosos, gestos das mãos um tanto melindrosas. Protestou contra uma das luzes de filmagem, afastando o câmera no ápice de sua afetação, alegando que até a inserção da luz poderia alterar o teor do prato. Judite assistia a tudo, incrédula. A cozinheira custava acreditar que ali ainda estavam, perfiladas e atenciosas, três assistentes além do cozinheiro para preparar uma simples galinha. Ficou ainda mais estarrecida quando da montagem do prato já pronto que resultou um pedaço ínfimo de carne compatível a uma rã, depositado no imenso prato de louça branca e ornado com galhos de alecrim, manjericão e um molho cor vinho circundava as bordas do prato. O arranjo, aspirando a obra de arte, parecia afugentar apetite dos presentes.  Foi sugerido espuma de batata inglesa para acompanhamento. Fez menção de gargalhar a cozinheira:

_Aquilo é uma perereca “atrupelada”, Dona Bela! -disse, sacudindo o peitoril em possível convulsão de riso.

O cheff olhou para seu público aguardando talvez aplausos e estes, incrédulos de que findava a apresentação aguardavam talvez a sobremesa. Pairava no ambiente a ausência de empatia com o anfitrião talvez pela impressão de complexidade ao mensurar os temperos, alguns já bem conhecidos em Minas, no entanto apresentado com nomes excêntricos e exagerada recomendação na utilização, o que confundiu os expectadores. E o titular do prato, praticamente canonizado pelo apresentador ao apresentá-lo, parecia o ter distanciado do povo, por ter sido exposto com algo como sacro, intocável. Uma palma soou tímida e solitária na terceira fila, e lá mesmo morreu, sem a companhia de outras. Buscando minimizar o desconforto, o guru do paladar cogitou por convidar um expectador para provar o alimento, e seus minúsculos olhos por trás do óculos pousaram em Judite, a qual levantou, após orientação proferida, entre os dentes, pela patroa.

_ Veja lá o que me apronta, Judite.. Por favor.

Ela foi conduzida por uma das assistentes ao pequeno palco e recebeu afago do Cheff. Foi lhe oferecido o prato que ela olhou com estranheza. Eis o frango púbere, acompanhado de espuma de batata...

- Vai sentir que está comendo faisão, mileide. Aqui em minas não tem... aproveita!

Ela abriu facilmente a boca em sorriso. Se já comera não sabia, mas desconhecia o tal do faisão. Gostou, entretanto, do mileide. Provou. O Cheff a mirava e sua expectativa era compartilhada com todos no local, com exceção da patroa que misturava aflição com o sentimento geral. Judite mastigava com motivação bovina. Encabulada, olhou ao derredor, viu temperos diversos. “Tem orégo”... Identificou, enquanto observava ramos de alecrim, coentro, tomilho e outras ervas. O odor aromático da cozinha cenográfica despertou-lhe desejo de interagir com as panelas. Ao desviar os olhos do prato, pousou-os na ave que ainda comia em sua elegante gaiola e, sentiu que trairia a patroa com relação ao controle.

Está vendo aquele lindo frango? Então,  é ele que prova agora. – O perfume do afrancesado confundia o ambiente. - Que tal? Faltou-lhe algo?- Ironizou o pequeno astro.

Izabelle remexeu no assento e quis intervir com gestos, quando notou que a empregada fez também gesto de cabeça ao interlocutor:

- Leva a mal não colega, mas tá faltando sim.

Dito isto, abandou o prato sobre o balcão para, em seguida, investir no fogão acendendo a todos os suspiros possíveis. Como tentáculos tivesse, abria e fechava gavetas recrutando talheres e panelas, depois selecionou ervas e tubérculos. Colocou água para ferver e iniciou o preparo do arroz. Feliz como criança em praça processou como humana centrífuga, cebolas pimentões, tomates, alhos e alguns ramos os quais cheirava, identificando o aroma.   A assistência, a esta hora muda e apreensiva do objetivo da convidada, investia os olhos ao palco para não perder a mínima ação, inebriadas, portanto, com o cheiro de arroz torrado com alho. A cozinheira explicou que estaria “afogando” o arroz, quando despejou certa quantidade de água fazendo borbulhar e perfumar ainda mais os arredores. Tapou-o para que ele “chegasse”. Conforme narrava ao referido colega e às assistentes. O Cheff buscou socorro com a organizadora do evento e esta foi ao encontro da inusitada figura, na clara intenção de demovê-la. Não se sabe se a empregada de Izabelle a ouviu ou todo seu ser convergia à tarefa culinária de modo que, dando de ombros à outra, dirigiu-se à gaiola resgatando o bucólico frango, até então mero coadjuvante do espetáculo. Ela examinou, revirou, apalpou. Se era púbere ou não a ave, sua adquirente provavelmente ignorava. Fato é que com todas as testemunhas possíveis a negra uniu as asas e pés do animal e travou-o entre suas pernas enquanto segurava-lhe pela cabeça. Com a outra mão apanhou uma das facas, depilou parte do pescoço do imobilizado frango,  provavelmente mais apreensivo que outrora, deu três palmadinhas com a base da faca, como em ritual, na parte limpa do pescoço, conferindo o volume da veia que não tardou a anunciar, desferindo um corte na região preparada, aparando imediatamente o sangue em uma tigela que deixara no chão para esse fim. O sangue caiu feito água de mina, calmo e servil no recipiente, e o som da queda misturava com murmúrios dos assistentes O anfitrião parecia não acreditar, deixando-se tombar em um assento próximo à geladeira. As câmeras, moviam-se preocupadas em registrar todos os atos da cozinheira.

Já organizadora, ao presenciar o destino do frango ornamental, manteve considerada distância do campo onde Judite operava. A ave ainda tremelicava para se despedir da vida quando foi liberta das pernas de Judite para ser mergulhada em água quente. As mesmas mãos que lhe fecharam os olhos agora a despiam de suas vestes, pena por pena a deixando sobre o balcão,  nua e crua, para vista de todos. Judite limpou a carne, aqui e acolá, tirou e lavou, virou e mexeu e a reluzente panela recebia o corpo já fracionado, alem de óleos e temperos. Ela agora já assoviando, buscou quiabos na cesta, procedeu a limpeza e investiu em torná-los dezenas de rodelas.

Ao sacrifício do frango, alguns assistentes tiveram menção de se retirarem embora algo aparentemente o encantassem de forma que ali permanecessem. Izabelle, inerte, sabia ser impossível deter sua empregada e que cozinhar, para Judite, era ato tão sacro quanto o prato do dia. Ela jamais tolerava palpites ou que qualquer um mexesse em suas colheres de pau, destampasse panelas ou furtasse quitutes. Não media temperos a não ser com olhos e provava a intensidade pingando o caldo nas costas da mão, lambendo, conforme acabara de fazer ao inspecionar o frango.

Judite localizou o fubá de milho e sorriu.Como se estalasse os dedos, já tinha na travessa fumegante angu, ornado com folhas de manjericão. A cozinheira concluiu o projeto, bastava orientar a uma assistente sobre a armazenagem do sangue já coagulado, ofertado pela ave. Pegou de um prato e serviu primeiro o angu, para, na seqüência, cobrir com porção suculenta do frango com quiabo. Ao lado aninhou generosa colher do arroz soltinho e cheiroso. Ofereceu a refeição ao Cheff, como retribuição. Este quis esquivar talvez por orgulho, embora o aroma há muito o traia. À primeira garfada semicerrou os olhos para depois abri-los e encarar a negra. Olhar de filho para mãe, de mago para bruxa, saudoso e marejado. Contemplava-a como se esta o transportasse à sua raiz, simplesmente com aromas e paladar. Após a refeição sua vontade era de arrancar a bandeira do estado presa ao mastro a um canto do salão para cobrir em manto a santa cozinheira. Sentiu que se demoraria por estas terras.

A cozinheira piscou para a patroa que já reservava seu lugar na fila. Se feijão houvesse, fatalmente seria necessário colocar mais água porque o simples prato de Judite despertou as entranhas dos presentes.






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