Ela queria apagar a luz. Somente isto para que pudesse
esticar seu corpo combalido na cama. O dedo indicador tamborilava próximo ao
interruptor, pronto a findar o único clarão existente na casa. Ele rogou mais
um tempo, coisa de um minuto ou algo próximo, com olhar fixo no teto.
Lacrimejava.
A impaciência a fez tirar o dedo da tomada e se questionar
ceticamente. O cansaço contribuiu para que ela com bruscos gestos fosse se
deitar, proferindo um apaga você então! Onde já se viu isso? Certamente não
deveria existir céu mesmo, porque
só conhecera até então sítios do inferno! Dormir tarde, acordar cedo... Bem
dizia a saudosa mãe, que nos casamos também com as manias dos noivos, só que
elas não dizem sim à fatídica pergunta do oficial, tampouco do sacerdote, estão
entranhadas nas alianças que, afinal, não seriam meros adornos. Citava a
senhora que o marido passava noites em claro à caça de pernilongos ou qualquer
outro inseto, feito um combatente, vigiando qualquer movimento ou zumbido.
Ele finalmente apagou a luz e ela, que fingia dormitar, viu
no teto do quarto a incandescente lua, contrapondo a escuridão do local. Veio à
mente o dia do seu casamento quando o esposo a conduziu para o quarto
deitando-a na cama nupcial. Após isso ele abriu o compartimento do criado e
retirou pequeno baú. A vaidade invadiu a alma da recém casada, que associara a
um presente, um romântico adorno, e seus
olhos cintilavam de curiosidade. O brilho, entretanto, foi se esvaindo dos olhos
quando viu que o marido buscou a escada e ajustou-a para utilização no quarto.
Pediu que segurasse o pequeno baú, e, do alto da escada foi retirando pequenas
peças da caixa para colá-las em profundo silencio de concentração, no teto.
Ela, incrédula, seguia em auxiliá-lo, assistindo peça por peça ser afixada ora
agrupadas ora com pequena distância até que o teto se viu povoado destas. Ao
fim, o marido sorriu satisfeito, desceu os degraus e lhe beijou, gratificante.
Acionou o interruptor e o quarto tornou-se escuro. Contudo, que olhasse para o
teto o via recheado de estrelas, planetas, discos voadores e cometas,
tudo incandescente desafiando a escuridão. A lua cheia, pregada bem ao canto
direito do teto reinava e abaixo, sua
calda era nada menos que estrelas de variados tamanhos que formavam um rio
luminoso, intercaladas por anéis de saturno, discos voadores e, ao final da
calda, na outra extremidade do teto, a meia lua concluía o ciclo. Ele disse ser
sua coleção, que ganhara do avô ao sete anos e a partir daí ele foi adquirindo
outras. Mostrava as antigas, que já não tinham tanto brilho, mas compunham as
demais. A esposa não poderia discordar. Era lindo. Aqueles adesivos incandescentes que brilhava nos escuros legados no teto correção Ele então confessou-lhe que
somente conseguia adormecer vendo o teto incandescente, sentia-se embalado e
seria como se uma das estrelas o transportasse para o seu grupo e o entregasse
à lua para que esta o ninasse. Ela sentiu leve ciúme das peças incandescentes,
embora ficara reconfortada somente ao vê-lo feliz. Aninharam-se então,
consumando o casamento há pouco abençoado.
Dia , noite
Se é dia sou dono
do mundo e me sinto filho do sol
Se é noite eu me
rendo às estrelas em busca de um farol
Ôoohh... estrelas,
estrelas...
As estrelas elas
brilham como eu
Na manhã seguinte ela despertou e viu os olhos do amado a
contemplando-a, esfregou os seus foi descobrindo o ambiente recheado de flores,
café da manhã em romântica bandeja e a voz rouca e matinal do marido cantando o
refrão da cantiga que sempre ouviram juntos. Sentiu-se feliz. No seguir dos
anos o ritual noturno foi mantido diariamente pelo esposo e, não muito raro
após se amarem ela permanecia acordada e via o marido adormecer após viajar no
teto incandescente. Oito anos já se passavam de matrimônio e em uma ou outra
noite ela protestava, alegando a predileção do outro pela mania, ao que ele se
desvencilhava com um chamego. Já não tinha mais a mãe, os filhos não vieram e
inevitavelmente estaria incomodada. Vergonha tinha vergonha de falar isso aos outros até que desabafou com a vizinha abelhudaO consolo seria a abelhuda vizinha, que sempre lhe questionava sobre o marido,
estranhava a relação tão apaixonada e carente de crises ao que ela
desconversava, não era afoita a expor intimidades e dizia que todos os casais
deveriam resolver seus conflitos sem envolver terceiros. Entretanto, em uma
visita, ao ser indagada pela amiga, segredou da cacoete que o marido mantinha.
Sentiu-se mal, tão logo narrou, como se traísse a confiança do outro. E a
reação da vizinha, pouco discreta e barulhenta foi nada menos que ironizar,
dizer que era bobagem e que a amiga deveria desaparecer imediatamente com as
figuras, pintar o quarto e não se preocupar, que o marido poderia até ficar
nervoso que com o tempo se acalmaria... Afinal não há haveria local melhor que
aquele para se acalmar um homem, e a propósito, insistiu em ver o teto do
citado quarto
Ela titubeava... Não faria retiraria os adornos sem consentimento
dele. A conselheira, no entanto, investia em convencê-la. Ratificava que, se o
marido teria paixão por estrelas pregadas no teto, facilmente se renderia por
estrelas que se movem, rebolativas sobre o chão. Tinha que tirar já e botar no
lixo! A outra quis demovê-la, acusando-a de radical onde ela ponderou e sugeriu
que melhor seria se retirasse aos poucos... um hoje, outro depois... Os homens
não percebem as coisas. E se porventura perguntasse,Diga que caiu e você recolheu como lixo, por engano. E
a amiga, sem cerimônia pegou da escada, foi ao quarto e arrancou sete peças
intercaladas, entregando-a. Você sabe o que deve fazer...sentenciou,
Ao deitar, o marido estranhou o cenário, sem ao certo saber
o que estaria faltando. A justificativa foi utilizada e seguiu-se os procedimentos
noturnos. Ela oscilava entre ter a atenção integral do esposo e traí-lo,
segundo conselhos da vizinha ( de um) nome para essa vizinha, que intensificara suas visitas e as cobranças,
além de indiscretas perguntas acerca da intimidade do casal, o desempenho do
marido, coisas que a esposa respondia com reservas e encabulada. Em pouco mais
de um mês metade do conjunto já havia sido removida do teto. Ele, apesar de
parecer não notar conforme previsto pela vizinha, foi tornando-se a cada dia
mais macambúzio e pouco falava com a mulher. Ao jantar, alimentava-se sem
vontade ou voracidade como se não mais sentisse o paladar conforme outrora e
não disfarçava a insatisfação quando deparava com a vizinha em visita à sua
casa. O fulgor de esposo ao amá-la, embora não findasse, tinha outra roupagem,
menos viva e de inferior (a vizinha colocava as estrelinhas no quarto dela) desejo e calor. A companheira cogitou em interromper o
plano, conquanto não conseguisse mais olhar no teto sem sentimento de
rivalidade, tamanha avanço que alcançou o projeto e também o embaraço de
justificar para a amiga sobre a sua desistência. Ao fim de três meses faltava remover apenas a lua, gorda e
rubicunda, que parecia brilhar por todo o universo naquela noite. Ele
levantou-se ante a rispidez da esposa e foi apagar a luz (o marido começou a chegar tarde em casa a mudar os hábitos a chegar madrugada em casa). Mirava o teto,
apático, embora ainda apaixonado.
Comunicava com a esposa apenas monossílabos, quando o fazia, e naquela noite não se amaram. Ela tentou
retardar o sono como fazia sempre, no intuito de remover a lua. Traída pelo
cansaço, acabou por adormecer, do marido que mantinha olhos fixos na estrela de
primeira grandeza.
O galo não (não se ouviu os sons matinais)cantou naquela manhã e a esposa, após mal
dormida noite, despertou ao clarão do sol, atrasada para o trabalho. De
relance, estranhou os olhos inertes do marido. Murmurou algo, como se o censurasse por ainda olhar
para o teto, aquela hora da manhã. Reclamou do atraso abre parentes descrever como se acorda uma pessoa a voz embargada olhar difuso)e inclinou-se para beijar
a face do companheiro. Recuou assustada. Havia algo de estranho naquela manhã
que não trouxera o calor habitual do corpo desperto dele afagando-a. Quis
afastar os presságios e chegou a protestar com a possível brincadeira dele até
identificar, espantada, um fio viscoso que descia pelo canto dos lábios deste,
passeando pelo queixo e pescoço e desaguando no travesseiro. Abateu-se em um
grito longo e dolorido sobre o inanimado par de olhos direcionados ao teto.
Vieram parentes, colegas de trabalho e amigos, abalados
pela noticia da morte súbita e precoce. A viúva correspondia aos cumprimentos de toda parte e
lamentos de familiares, sem ao menos despender (dispensar festa do parênteses qualquer lágrima. Todos a miravam , incomodados com o inusitado comportamento e ela ali
permanecia, impassível, próxima à
face lívida do falecido marido, velando-o com a ternura e paciência dos anjos.
Não conseguiram fechar os olhos do morto, de forma que alguns não se aproximaram
do corpo e cumpriram apenas a visita do funeral. Já a esposa contemplava como
velha amante pois o olhar do marido, a seu ver,
continuaria sereno. Abre parentes ignore o funeral e coloque que a esposa foi correndo a vizinha chegando lá vizinha não estava vazio a casa vizinha estava no banheiro ela foi no quarto e viu o as estrelas pregadas no teto)
O clima fúnebre, de silêncio e consternação foi quebrado
com o bater de saltos no assoalho do salão
obrigando a todos
voltarem-se para ver a visita um tanto extrovertida para a ocasião. A vizinha
da viúva rompeu a entrada, ornada de vivas cores na vestimenta, excêntrica
maquiagem e mal disfarçado pesar. Mal identificou a viúva foi ao seu encontro,
abrindo caminho entre os presentes. Abraçou-a com comprimentos da ocasião e
olhar fixo no defunto. Perguntava-lhe o que teria ocorrido, o motivo de tamanha
desgraça.
Um facho de luz acionou na mente combalida da viúva. A
pergunta seria absolutamente pertinente. Importante para interrogada,
interrogador e também vítima. Ainda não a teriam feito neste tom, com esta voz
familiar. Recuou, buscando espaço para encarar a recém chegada e pôde saborear,
ainda que sem paladar, o cinismo em seus lábios. Mantendo a postura, remoía,
contorcendo-se internamente à náusea causada pela mistura de odores féretros e
femininos. Aproximava-se a hora do desfecho e intensificaram-se as orações. A
viúva buscou aproveitar os últimos momentos, voltando a contemplar o corpo do
companheiro. Seu cinza par de olhos percorreu os circunspetos presentes e viu,
de relance, a imensa cruz na
cabeceira do caixão com placa identificando o protagonista da cerimônia: RAUL.
Leu devagar, releu, de frente para
trás, de trás para frente: RAUL, LUAR, LUAR, RAUL... Desejou que não vedassem o
caixão e que o corpo ali continuasse, olhos hirtos como se fosse ao teto
celeste... Se assim o fizessem , seu amado marido, veria o luar que sempre o
encantou. Via a tampa que cobriria a urna e o coração já miúdo comprimia ainda
mais. Dentro em breve seria selada a cerimônia e a escuridão dominaria o corpo
amado.
A amiga destilou infinidades de bobagens citou outros
velórios, reclamou do trabalho e na ciranda de inutilidades profetizou que a
outra superaria, por mais dolorido que
fosse, daria a volta por cima e quase não percebeu a ponta fria da tesoura
encostada em seu pescoço. Enquanto a viúva, de olhos tão abertos quanto os do
cadáver apontava-lhe pequeno baú acondicionado à cabeceira do caixão, bem
próximo às duas. Ordenou que ela pegasse. O nervosismo a fez rir da situação e
a simples troca de olhares deixou claro que o ato não se tratava de brincadeira
mesmo porque seria de extremo mau gosto qualquer tipo de troça no ambiente. À
segunda ordem pegou, tremula o baú e ao comando de abri-lo, quase não se
conteve em pé. Não foram para o lixo, conforme orientado por ela, as peças
retiradas do teto, alias, ela estaria coberta de razão quando disse que a
amiga, a casada saberia o que fazer com aqueles ditos trastes luminosos. Ainda
contida e com a tesoura cutucando a pele, foi encaminhada à tampa do caixão,
onde recebeu a derradeira ordem para colar, uma a uma no interior da tampa mortuária
Nenhum dos presentes ousou se aproximar da dupla. Uma,
segura pelo braço e com o pescoço acariciado por generosa metal. A outra, em vestes negras e face dura,
entregando as peças para serem afixadas pelas mãos trêmulas, e total
repugnância. Pouco a pouco foi se formando um grupo de estrelas, de variadas
formas, planetas e cometas, condensado no interior da tampa fúnebre, o que
trouxe à viúva lembrança das núpcias e enfim lágrimas brotaram em seus olhos.
Concluída a obra, ela abandonou a vizinha que buscou fugir, trêmula, do local.
A viúva compões para o marido. Discursou brevemente em gratidão e amor a este,
narrando a vida apaixonada e cúmplice de ambos. Cantou com voz embargada o
refrão da canção que gostavam e que ele a utilizara em lua de mel. Emocionada,
olhou fixamente para o corpo e disse-lhe até um dia, assegurando-o que ao
fechar o seu caixão, a escuridão seria vencida pelas luzes das estrelas, para
que dormisse em paz, em seu universo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por visitar meu blog. Deixe aqui seu comentário...