terça-feira, 13 de junho de 2017

LUAR



Ela queria apagar a luz. Somente isto para que pudesse esticar seu corpo combalido na cama. O dedo indicador tamborilava próximo ao interruptor, pronto a findar o único clarão existente na casa. Ele rogou mais um tempo, coisa de um minuto ou algo próximo, com olhar fixo no teto. Lacrimejava.

A impaciência a fez tirar o dedo da tomada e se questionar ceticamente. O cansaço contribuiu para que ela com bruscos gestos fosse se deitar, proferindo um apaga você então! Onde já se viu isso? Certamente não deveria existir céu mesmo,  porque só conhecera até então sítios do inferno! Dormir tarde, acordar cedo... Bem dizia a saudosa mãe, que nos casamos também com as manias dos noivos, só que elas não dizem sim à fatídica pergunta do oficial, tampouco do sacerdote, estão entranhadas nas alianças que, afinal, não seriam meros adornos. Citava a senhora que o marido passava noites em claro à caça de pernilongos ou qualquer outro inseto, feito um combatente, vigiando qualquer movimento ou zumbido.

Ele finalmente apagou a luz e ela, que fingia dormitar, viu no teto do quarto a incandescente lua, contrapondo a escuridão do local. Veio à mente o dia do seu casamento quando o esposo a conduziu para o quarto deitando-a na cama nupcial. Após isso ele abriu o compartimento do criado e retirou pequeno baú. A vaidade invadiu a alma da recém casada, que associara a um presente, um romântico adorno,  e seus olhos cintilavam de curiosidade. O brilho, entretanto, foi se esvaindo dos olhos quando viu que o marido buscou a escada e ajustou-a para utilização no quarto. Pediu que segurasse o pequeno baú, e, do alto da escada foi retirando pequenas peças da caixa para colá-las em profundo silencio de concentração, no teto. Ela, incrédula, seguia em auxiliá-lo, assistindo peça por peça ser afixada ora agrupadas ora com pequena distância até que o teto se viu povoado destas. Ao fim, o marido sorriu satisfeito, desceu os degraus e lhe beijou, gratificante. Acionou o interruptor e o quarto tornou-se escuro. Contudo, que olhasse para o teto o via  recheado de estrelas, planetas, discos voadores e cometas, tudo incandescente desafiando a escuridão. A lua cheia, pregada bem ao canto direito do teto reinava e abaixo,  sua calda era nada menos que estrelas de variados tamanhos que formavam um rio luminoso, intercaladas por anéis de saturno, discos voadores e, ao final da calda, na outra extremidade do teto, a meia lua concluía o ciclo. Ele disse ser sua coleção, que ganhara do avô ao sete anos e a partir daí ele foi adquirindo outras. Mostrava as antigas, que já não tinham tanto brilho, mas compunham as demais. A esposa não poderia discordar. Era lindo. Aqueles adesivos incandescentes que brilhava nos escuros legados no teto correção Ele então confessou-lhe que somente conseguia adormecer vendo o teto incandescente, sentia-se embalado e seria como se uma das estrelas o transportasse para o seu grupo e o entregasse à lua para que esta o ninasse. Ela sentiu leve ciúme das peças incandescentes, embora ficara reconfortada somente ao vê-lo feliz. Aninharam-se então, consumando o casamento há pouco abençoado.

Dia , noite
Se é dia sou dono do mundo e me sinto filho do sol
Se é noite eu me rendo às estrelas em busca de um farol
Ôoohh... estrelas, estrelas...
As estrelas elas brilham como eu

Na manhã seguinte ela despertou e viu os olhos do amado a contemplando-a, esfregou os seus foi descobrindo o ambiente recheado de flores, café da manhã em romântica bandeja e a voz rouca e matinal do marido cantando o refrão da cantiga que sempre ouviram juntos. Sentiu-se feliz. No seguir dos anos o ritual noturno foi mantido diariamente pelo esposo e, não muito raro após se amarem ela permanecia acordada e via o marido adormecer após viajar no teto incandescente. Oito anos já se passavam de matrimônio e em uma ou outra noite ela protestava, alegando a predileção do outro pela mania, ao que ele se desvencilhava com um chamego. Já não tinha mais a mãe, os filhos não vieram e inevitavelmente estaria incomodada. Vergonha tinha vergonha de falar isso aos outros até que desabafou com a vizinha abelhudaO consolo seria a abelhuda vizinha,  que sempre lhe questionava sobre o marido, estranhava a relação tão apaixonada e carente de crises ao que ela desconversava, não era afoita a expor intimidades e dizia que todos os casais deveriam resolver seus conflitos sem envolver terceiros. Entretanto, em uma visita, ao ser indagada pela amiga, segredou da cacoete que o marido mantinha. Sentiu-se mal, tão logo narrou, como se traísse a confiança do outro. E a reação da vizinha, pouco discreta e barulhenta foi nada menos que ironizar, dizer que era bobagem e que a amiga deveria desaparecer imediatamente com as figuras, pintar o quarto e não se preocupar, que o marido poderia até ficar nervoso que com o tempo se acalmaria... Afinal não há haveria local melhor que aquele para se acalmar um homem, e a propósito, insistiu em ver o teto do citado quarto

Ela titubeava... Não faria retiraria os adornos sem consentimento dele. A conselheira, no entanto, investia em convencê-la. Ratificava que, se o marido teria paixão por estrelas pregadas no teto, facilmente se renderia por estrelas que se movem, rebolativas sobre o chão. Tinha que tirar já e botar no lixo! A outra quis demovê-la, acusando-a de radical onde ela ponderou e sugeriu que melhor seria se retirasse aos poucos... um hoje, outro depois... Os homens não percebem as coisas. E se porventura perguntasse,Diga que caiu e você recolheu como lixo, por engano. E a amiga, sem cerimônia pegou da escada, foi ao quarto e arrancou sete peças intercaladas, entregando-a. Você sabe o que deve fazer...sentenciou,

Ao deitar, o marido estranhou o cenário, sem ao certo saber o que estaria faltando. A justificativa foi utilizada e seguiu-se os procedimentos noturnos. Ela oscilava entre ter a atenção integral do esposo e traí-lo, segundo conselhos da vizinha ( de um) nome para essa vizinha, que intensificara suas visitas e as cobranças, além de indiscretas perguntas acerca da intimidade do casal, o desempenho do marido, coisas que a esposa respondia com reservas e encabulada. Em pouco mais de um mês metade do conjunto já havia sido removida do teto. Ele, apesar de parecer não notar conforme previsto pela vizinha, foi tornando-se a cada dia mais macambúzio e pouco falava com a mulher. Ao jantar, alimentava-se sem vontade ou voracidade como se não mais sentisse o paladar conforme outrora e não disfarçava a insatisfação quando deparava com a vizinha em visita à sua casa. O fulgor de esposo ao amá-la, embora não findasse, tinha outra roupagem, menos viva e de inferior (a vizinha colocava as estrelinhas no quarto dela) desejo e calor. A companheira cogitou em interromper o plano, conquanto não conseguisse mais olhar no teto sem sentimento de rivalidade, tamanha avanço que alcançou o projeto e também o embaraço de justificar para a amiga sobre a sua desistência. Ao fim de três  meses faltava remover apenas a lua, gorda e rubicunda, que parecia brilhar por todo o universo naquela noite. Ele levantou-se ante a rispidez da esposa e foi apagar a luz (o marido começou a chegar tarde em casa a mudar os hábitos a chegar madrugada em casa). Mirava o teto, apático,  embora ainda apaixonado. Comunicava com a esposa apenas monossílabos, quando o fazia,  e naquela noite não se amaram. Ela tentou retardar o sono como fazia sempre, no intuito de remover a lua. Traída pelo cansaço, acabou por adormecer, do marido que mantinha olhos fixos na estrela de primeira grandeza.

O galo não (não se ouviu os sons matinais)cantou naquela manhã e a esposa, após mal dormida noite, despertou ao clarão do sol, atrasada para o trabalho. De relance, estranhou os olhos inertes do marido.  Murmurou algo, como se o censurasse por ainda olhar para o teto, aquela hora da manhã. Reclamou do atraso abre parentes descrever como se acorda uma pessoa a voz embargada olhar difuso)e inclinou-se para beijar a face do companheiro. Recuou assustada. Havia algo de estranho naquela manhã que não trouxera o calor habitual do corpo desperto dele afagando-a. Quis afastar os presságios e chegou a protestar com a possível brincadeira dele até identificar, espantada, um fio viscoso que descia pelo canto dos lábios deste, passeando pelo queixo e pescoço e desaguando no travesseiro. Abateu-se em um grito longo e dolorido sobre o inanimado par de olhos direcionados ao teto.

Vieram parentes, colegas de trabalho e amigos, abalados pela noticia da morte súbita e precoce.  A viúva correspondia aos cumprimentos de toda parte e lamentos de familiares, sem ao menos despender (dispensar festa do parênteses qualquer lágrima. Todos a miravam , incomodados com o inusitado comportamento e ela ali permanecia, impassível,  próxima à face lívida do falecido marido, velando-o com a ternura e paciência dos anjos. Não conseguiram fechar os olhos do morto, de forma que alguns não se aproximaram do corpo e cumpriram apenas a visita do funeral. Já a esposa contemplava como velha amante pois o olhar do marido, a seu ver,  continuaria sereno. Abre parentes ignore o funeral e coloque que a esposa foi correndo a vizinha chegando lá vizinha não estava vazio a casa vizinha estava no banheiro ela foi no quarto e viu o as estrelas pregadas no teto)

O clima fúnebre, de silêncio e consternação foi quebrado com o bater de saltos no assoalho do salão  obrigando a  todos voltarem-se para ver a visita um tanto extrovertida para a ocasião. A vizinha da viúva rompeu a entrada, ornada de vivas cores na vestimenta, excêntrica maquiagem e mal disfarçado pesar. Mal identificou a viúva foi ao seu encontro, abrindo caminho entre os presentes. Abraçou-a com comprimentos da ocasião e olhar fixo no defunto. Perguntava-lhe o que teria ocorrido, o motivo de tamanha desgraça.

Um facho de luz acionou na mente combalida da viúva. A pergunta seria absolutamente pertinente. Importante para interrogada, interrogador e também vítima. Ainda não a teriam feito neste tom, com esta voz familiar. Recuou, buscando espaço para encarar a recém chegada e pôde saborear, ainda que sem paladar, o cinismo em seus lábios. Mantendo a postura, remoía, contorcendo-se internamente à náusea causada pela mistura de odores féretros e femininos. Aproximava-se a hora do desfecho e intensificaram-se as orações. A viúva buscou aproveitar os últimos momentos, voltando a contemplar o corpo do companheiro. Seu cinza par de olhos percorreu os circunspetos presentes e viu, de relance,  a imensa cruz na cabeceira do caixão com placa identificando o protagonista da cerimônia: RAUL. Leu devagar, releu,  de frente para trás, de trás para frente: RAUL, LUAR, LUAR, RAUL... Desejou que não vedassem o caixão e que o corpo ali continuasse, olhos hirtos como se fosse ao teto celeste... Se assim o fizessem , seu amado marido, veria o luar que sempre o encantou. Via a tampa que cobriria a urna e o coração já miúdo comprimia ainda mais. Dentro em breve seria selada a cerimônia e a escuridão dominaria o corpo amado.

A amiga destilou infinidades de bobagens citou outros velórios, reclamou do trabalho e na ciranda de inutilidades profetizou que a outra superaria,  por mais dolorido que fosse, daria a volta por cima e quase não percebeu a ponta fria da tesoura encostada em seu pescoço. Enquanto a viúva, de olhos tão abertos quanto os do cadáver apontava-lhe pequeno baú acondicionado à cabeceira do caixão, bem próximo às duas. Ordenou que ela pegasse. O nervosismo a fez rir da situação e a simples troca de olhares deixou claro que o ato não se tratava de brincadeira mesmo porque seria de extremo mau gosto qualquer tipo de troça no ambiente. À segunda ordem pegou, tremula o baú e ao comando de abri-lo, quase não se conteve em pé. Não foram para o lixo, conforme orientado por ela, as peças retiradas do teto, alias, ela estaria coberta de razão quando disse que a amiga, a casada saberia o que fazer com aqueles ditos trastes luminosos. Ainda contida e com a tesoura cutucando a pele, foi encaminhada à tampa do caixão, onde recebeu a derradeira ordem para colar, uma a uma no interior da tampa mortuária

Nenhum dos presentes ousou se aproximar da dupla. Uma, segura pelo braço e com o pescoço acariciado por generosa metal.  A outra, em vestes negras e face dura, entregando as peças para serem afixadas pelas mãos trêmulas, e total repugnância. Pouco a pouco foi se formando um grupo de estrelas, de variadas formas, planetas e cometas, condensado no interior da tampa fúnebre, o que trouxe à viúva lembrança das núpcias e enfim lágrimas brotaram em seus olhos. Concluída a obra, ela abandonou a vizinha que buscou fugir, trêmula, do local. A viúva compões para o marido. Discursou brevemente em gratidão e amor a este, narrando a vida apaixonada e cúmplice de ambos. Cantou com voz embargada o refrão da canção que gostavam e que ele a utilizara em lua de mel. Emocionada, olhou fixamente para o corpo e disse-lhe até um dia, assegurando-o que ao fechar o seu caixão, a escuridão seria vencida pelas luzes das estrelas, para que dormisse em paz, em seu universo.














Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por visitar meu blog. Deixe aqui seu comentário...