O tilintar das panelas confundia-se com
o ruído de chinelas formando insípida percussão no ambiente. O
patriarca, à cabeceira da mesa, devorava o jornal, indiferente ao
casal de crianças que também aguardava o jantar. Um deles, o menino,
brincava com talheres enquanto a irmã inventava novidades para preencher o
diário. No vaivém das chinelas, a mesa, outrora vazia, viu-se
povoada de frios e quentes, ornada de pratos e talheres. A
mãe fiscalizou o arranjo e suspirou como quem conclui uma obra, mal disfarçando
a fisionomia alquebrada de tarefas ininterruptas desde os primeiros
gorjeios de aves, quando teria que saltar da cama para os afazeres
matinais da familia. Mal recebia o beijo na face de até breve,
mergulhava nas infinitas rotinas domésticas. Bailava entre
lavagem de roupas e preparo do almoço, ramificava-se para arrumar a
casa e educar a cria, tanto que, naquela noite, abatida como cisne em seu
derradeiro ato, convocou a família à ceia, servindo ao marido e fiscalizado o
prato das crianças, tentada a sugerir, à moda de mães, legumes e
folhas. Segundos de meditação e mais barulho de talheres que
combatiam a fome não de todos, pois aquela que ofertara a ceia
fincava preguiçosamente o garfo em uma rodela de tomate afundada no
purê de batatas, em seu seco prato. Sua língua,
confusa de temperos, rejeitava o que as outras tanto regalavam. Sem
algum apetite, invejou o marido que abocanhava suculento
naco de carne, semicerrando os olhos enquanto mastigava como se
embriagado pelo sabor. Este, com a face terna de um noivo, cortejou:
_Tempero impecável, amor! As travessas
não poderiam ter melhor direção... -Assentiu às louças que enfeitavam a mesa.
Sorriu. -Como cozinha divinamente... Tem mãos de fada, hein?
Ela talvez tenha conseguido sorrir,
embora clamasse por ser abruptamente abduzida. Examinava de soslaio o
marido que supostaemnte feliz com elogio feito aspirava pertencer ao topo da cadeia alimentar e provavelmente
devoraria a toda a iguaria para na sequência
, ruminaria algo, procurando finalmente o sofá, onde
pudesse assistir ao futebol. Mais um dia. Um após outro sem diálogos
expressivos, sem manutenção do bem viver. Ela se viu no reflexouMirou seu prato, este pareceu provocar-lhe
com sua imensa boca de louça: “Mãos de fada...”
Intrigada, resolveu conferir
as mãos: ressecadas. Sulcos profundos e unhas débeis a deixaram
perplexa. As linhas da palmap formavam indecifrável amaranhado que desafiariam a
interpretação da mais astuta cigana. Tornou ao prato, e a boca sorria lhe,
sussurrando "Isso são mãos,
Amélia? Uma bruxa não seria tão ousada! Fada? Ora essa! Em qual capítulo
do conto? Claro! Naquele do Era uma vez... No altar, fresca, hidratada e linda
com véu e flores. Distribuindo “sims” ao sacerdote, ao noivo, ao fogão e ao lar
e depois assistir, em um golpe de vento, seu castelo sucumbir".
Amélia deslizava o garfo entre os dedos
enrugados, no carrossel de suas fantasias. Tentou evitar a louça
alcoviteira e se dedicar ao marido, que dava cabo da refeição e já buscava o
palito para rastrear os dentes.l
Mãos de fada,... Mãos de fada... ouvia, como um arrastado cochicho... Súbito, seus olhos tornaram de luminosos ela ergueu o garfo,
girando-o em semicírculos e apontando para a cabeceira da
mesa, de onde bufava o varão.
_Plim! – emitiu pequeno grito, ainda
com o garfo suspenso.
O outro tentou levantar os olhos, mas
foi tudo tão rápido quanto o monossílabo que ouvira a esposa dizer e já se percebia um
coaxante e viscoso sapo, com olhos arregalados e larga boca, ocupando lugar à
mesa como chefe de família! Os pequenos recuaram, entre confusos e
admirados com o improvável encantamento.
_Coach! – Disse enfim o anfíbio,
provavelmente na tentativa de quebrar o silêncio ali instaurado.
_Boa noite para você também, meu
senhor. – retornou a outra, destemida. Ora, então tenho mãos de fada,
não é? Providencial, não acha? -gargalhou ruidosamente.
_Coach...
_Hum... Talvez tenha
sido fada sim, quando nos conhecemos! – eEla se levantou pronta a
palestrar- Do altar para o lar, dependente e condenada ao degredo. Ocultei suas
ausências! Vê nossas crias? Como estão coradas! -apontava, ainda com o garfo,
para as intrigadas crianças, excitadas da expectativa de serem também
transformadas em algo fabuloso. Contemplava o mágico talher, como que admirada.
_Ora, ora... Não sabia que a varinha de condão estava tão próxima!
Obrigada pela provocação – disse ao prato,(nada) e cravou em seu interlocutor o
par de olhos tanto e quanto esbugalhados quanto aos dele:) _Olhe para estas mãos! Olhe para mim! A fada,
aquela, petrificou no altar, Osvaldo! Prazer em conhecê-lo... Agora sou ela, a
bruxa, a que sai do casulo de onde entrou, quando princesa...
As crianças presenciavam a tudo, boquiabertas.
Ainda que não entendessem em absoluto o discurso materno, mantinham-se
envaidecidas com a perspectiva de viverem a lenda em tempo real,
sendo os próprios pais protagonistas. Não tardou que a mãe ordenasse que fossem
dormir para que, desapontados, obedecessem. Contudo, estavam ansiosos para o
dia seguinte e arriscavam nomes para o recém-chegado. Desejavam também ser
convertidos e elencavam extensa lista de exóticas espécies. Os
jantares nunca mais seriam os mesmos e haveria dilúvio de palavras no
diário da pequena.
Quanto a Osvaldo, ou meramente o sapo,
parecia favorável em sua nova posição na cadeia alimentar, já que vez ou outra
projetava a língua para pescar, em fração de segundos, mariposas
desavisadas de sua visita. Amélia continuou a sabatina enquanto
desfazia a mesa, decidindo por transportar o faminto ouvinte para a
sala de televisão. O anfíbio aninhou-se próximo ao controle remoto,
afetando tamanha intimidade com o acessório que qualquer incrédulo poderia
jurar que ele aguardava o inicio do futebol. Todavia, Amélia continuava
desfiando os lamentos e a dura tarefa, reivindicando maior atenção do marido,
passeios, compras e outras formas de lazer. Até que sentiu
saudades de um ouvinte com o mínimo de equivalência, ainda
que alheio como outrora. Ponderava que os monossílabos emitidos pelo sapo
seriam involuntários, tais como os do marido, conquanto não surtisse o mesmo
efeito. Vieram-lhe então os murmúrios do prato na memória e ela quis
dispersá-los, apoderando-se do controle remoto para sintonizar a televisão.
Logo saltou na tela extenso gramado verde com pernas e bola em movimento, para
aguçar a atenção do viscoso telespectador. Enfim, riu-se do o sapo que fitava
sem piscar as imagens projetadas, se ajeitando na poltrona e dilatando ainda
mais as pupilas. Nada mudara. A esposa ali se manteve, serviu e admirada,
refletindo sobre a natureza das relações familiares e ponderando que ao menos
desabafara, vomitando o que lhe embolava a garganta. Tornou à cozinha para se
munir do mágico talher, já recolhido, e desfazer a o encantoobra, já que todo
encantamento em sua natureza perece e não deveria ser diferente para aquele
anfíbio, posto que cobra ela não fosse, e sim, guerreira fada.
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