terça-feira, 13 de junho de 2017

Mãos de Fada

O tilintar das panelas confundia-se com o ruído de chinelas formando insípida percussão no ambiente. O patriarca, à cabeceira da mesa, devorava o jornal, indiferente ao casal de crianças que também aguardava o jantar. Um deles, o menino, brincava com talheres enquanto a irmã inventava novidades para preencher o diário. No vaivém das chinelas, a mesa, outrora vazia, viu-se povoada de frios e quentes, ornada de pratos e talheres. A mãe fiscalizou o arranjo e suspirou como quem conclui uma obra, mal disfarçando a fisionomia alquebrada de tarefas ininterruptas desde os primeiros gorjeios de aves, quando teria que saltar da cama para os afazeres matinais da familia. Mal recebia o beijo na face de até breve, mergulhava nas infinitas rotinas domésticas. Bailava entre lavagem de roupas e preparo do almoço, ramificava-se para arrumar a casa e educar a cria, tanto que, naquela noite, abatida como cisne em seu derradeiro ato, convocou a família à ceia, servindo ao marido e fiscalizado o prato das crianças, tentada a sugerir, à moda de mães, legumes e folhas. Segundos de meditação e mais barulho de talheres que combatiam a fome não de todos, pois aquela que ofertara a ceia fincava preguiçosamente o garfo em uma rodela de tomate afundada no purê de batatas, em seu seco prato. Sua língua, confusa de temperos, rejeitava o que as outras tanto regalavam. Sem algum apetite, invejou o marido que abocanhava suculento naco de carne, semicerrando os olhos enquanto mastigava como se embriagado pelo sabor. Este, com a face terna de um noivo, cortejou:
_Tempero impecável, amor! As travessas não poderiam ter melhor direção... -Assentiu às louças que enfeitavam a mesa. Sorriu. -Como cozinha divinamente... Tem mãos de fada, hein?
Ela talvez tenha conseguido sorrir, embora clamasse por ser abruptamente abduzida. Examinava de soslaio o marido que supostaemnte feliz com elogio feito aspirava pertencer ao topo da cadeia alimentar e provavelmente devoraria a toda a iguaria para na sequência
, ruminaria algo, procurando finalmente o sofá, onde pudesse assistir ao futebol.  Mais um dia. Um após outro sem diálogos expressivos, sem manutenção do bem viver. Ela se viu no reflexouMirou seu prato, este pareceu provocar-lhe com sua imensa boca de louça: “Mãos de fada...”
 Intrigada, resolveu conferir as mãos: ressecadas. Sulcos profundos e unhas débeis a deixaram perplexa. As linhas da palmap formavam indecifrável amaranhado que desafiariam a interpretação da mais astuta cigana. Tornou ao prato, e a boca sorria lhe, sussurrando "Isso são mãos, Amélia? Uma bruxa não seria tão ousada! Fada? Ora essa! Em qual capítulo do conto? Claro! Naquele do Era uma vez... No altar, fresca, hidratada e linda com véu e flores. Distribuindo “sims” ao sacerdote, ao noivo, ao fogão e ao lar e depois assistir, em um golpe de vento, seu castelo sucumbir".
Amélia deslizava o garfo entre os dedos enrugados, no carrossel de suas fantasias. Tentou evitar a louça alcoviteira e se dedicar ao marido, que dava cabo da refeição e já buscava o palito para rastrear os dentes.l

Mãos de fada,... Mãos de fada... ouvia, como um arrastado cochicho... Súbito, seus olhos tornaram de luminosos ela ergueu o garfo, girando-o em semicírculos e apontando para a cabeceira da mesa, de onde bufava o varão.

_Plim! – emitiu pequeno grito, ainda com o garfo suspenso.

O outro tentou levantar os olhos, mas foi tudo tão rápido quanto o monossílabo que ouvira a esposa dizer e já se percebia um coaxante e viscoso sapo, com olhos arregalados e larga boca, ocupando lugar à mesa como chefe de família! Os pequenos recuaram, entre confusos e admirados com o improvável encantamento.

_Coach! – Disse enfim o anfíbio, provavelmente na tentativa de quebrar o silêncio ali instaurado.

_Boa noite para você também, meu senhor. – retornou a outra, destemida. Ora, então tenho mãos de fada, não é?  Providencial, não acha? -gargalhou ruidosamente.

_Coach...

_Hum... Talvez tenha sido fada sim, quando nos conhecemos! – eEla se levantou pronta a palestrar- Do altar para o lar, dependente e condenada ao degredo. Ocultei suas ausências! Vê nossas crias? Como estão coradas! -apontava, ainda com o garfo, para as intrigadas crianças, excitadas da expectativa de serem também transformadas em algo fabuloso. Contemplava o mágico talher, como que admirada. _Ora, ora... Não sabia que a varinha de condão estava tão próxima! Obrigada pela provocação – disse ao prato,(nada) e cravou em seu interlocutor o par de olhos tanto e quanto esbugalhados quanto aos dele:) _Olhe para estas mãos! Olhe para mim! A fada, aquela, petrificou no altar, Osvaldo! Prazer em conhecê-lo... Agora sou ela, a bruxa, a que sai do casulo de onde  entrou, quando princesa...
 
As crianças presenciavam a tudo, boquiabertas. Ainda que não entendessem em absoluto o discurso materno, mantinham-se envaidecidas com a perspectiva de viverem a lenda em tempo real, sendo os próprios pais protagonistas. Não tardou que a mãe ordenasse que fossem dormir para que, desapontados, obedecessem. Contudo, estavam ansiosos para o dia seguinte e arriscavam nomes para o recém-chegado. Desejavam também ser convertidos e elencavam extensa lista de exóticas espécies. Os jantares nunca mais seriam os mesmos e haveria dilúvio de palavras no diário da pequena.

Quanto a Osvaldo, ou meramente o sapo, parecia favorável em sua nova posição na cadeia alimentar, já que vez ou outra projetava a língua para pescar, em fração de segundos, mariposas desavisadas de sua visita. Amélia continuou a sabatina enquanto desfazia a mesa, decidindo por transportar o faminto ouvinte para a sala de televisão. O anfíbio aninhou-se próximo ao controle remoto, afetando tamanha intimidade com o acessório que qualquer incrédulo poderia jurar que ele aguardava o inicio do futebol. Todavia, Amélia continuava desfiando os lamentos e a dura tarefa, reivindicando maior atenção do marido, passeios, compras e outras formas de lazer. Até que sentiu saudades de um ouvinte com o mínimo de equivalência, ainda que alheio como outrora. Ponderava que os monossílabos emitidos pelo sapo seriam involuntários, tais como os do marido, conquanto não surtisse o mesmo efeito. Vieram-lhe então os murmúrios do prato na memória e ela quis dispersá-los, apoderando-se do controle remoto para sintonizar a televisão. Logo saltou na tela extenso gramado verde com pernas e bola em movimento, para aguçar a atenção do viscoso telespectador. Enfim, riu-se do o sapo que fitava sem piscar as imagens projetadas, se ajeitando na poltrona e dilatando ainda mais as pupilas. Nada mudara. A esposa ali se manteve, serviu e admirada, refletindo sobre a natureza das relações familiares e ponderando que ao menos desabafara, vomitando o que lhe embolava a garganta. Tornou à cozinha para se munir do mágico talher, já recolhido, e desfazer a o encantoobra, já que todo encantamento em sua natureza perece e não deveria ser diferente para aquele anfíbio, posto que cobra ela não fosse, e sim, guerreira fada.




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