terça-feira, 13 de junho de 2017

PECADO ORIGINAL



A vitrine emitia  brilho pelos arredores com um prisma, tornando assim mais atraente a joalheria de onde desfilavam aos olhos cobiçosos dos clientes, sejam suspensas por finos aros, envoltas em cilindro felpudo ou repousadas sobre aquários tais e quais valiosos peixes, sedutores adornos. Um grande espelho posicionado para atrair a atenção do público, entretinha uma bela moça que, focada em seu reflexo, meneava o corpo ajeitando aqui e acolá. Vasculhava inexistentes rugas no rosto, avaliava as sobrancelhas e cílios, ajeitava mexas de cabelo, analisava cintura, os glúteos, sempre com o olhar fixo no espelho. Assim envolvida estava que não percebeu a senhora aproximando-se e, ao que parece, observava a outra que se observava no espelho

- Permita-me - ouviu, por trás de si, contrariada em ter que findar a inspeção como se aguardasse que o cristalino objeto validasse sua onipotente beleza.

Pois não senhora, perdão... Estava distraída aqui... Deseja ver alguma jóia?- Disse ao voltar para a possível cliente e o fez com tão natural elegância que sua majestosa cabeleira, ao acompanhar movimento do corpo, culminou por concluir a fabulosa tarefa do espelho. A voz carregava um sotaque interiorano, algo da região norte do estado. Sorriu à recém chegada, conforme protocolo e apanhou um cartão que esta lhe estendia com certo desagravo, afinal a vendedora ali seria ela e a ação da senhora que a interpelara deixava claro que não nasceria daquele relacionamento qualquer valor de comissão. Erguendo os olhos, deparou-se com a feição da interceptora e ficou regalada com a eficácia de sua maquiagem, além do vestir e ornar elegantes. Apesar de tratar-se de uma senhora, passearia entre a quarta e quinta década, porém empinada em uma postura jovial. Visíveis camadas de creme e pintura contribuíam em defender a aparência.

- Realmente preciso de jóias. Quem não precisa?  Mas não sei se percebe, a jóia valiosa aqui é você. Como é bonita, menina! Onde achou tanta beleza assim?!?

- Obrigada... Não sei não... – ela se precavia. Preparava para se livrar do galanteio quando leu o cartão que recebera.

- Bia Mourão! Produtora de moda... Então? Que tal pensa em dar um up em sua vida profissional? Hein?  Se tornar modelo, meu anjo.Tem brilho minando em  você! Ninguém nunca lhe disse?

- Acho que não, senhora.

-Bom, filha- disse a outra que havia feito rápida analise de sua cobiça e pelo sotaque e fraco conteúdo do diálogo entendeu que se tratava do velho clichê: Mineirinha do interior, jovem e incauta, presa fácil e domesticável. Já traçava planos para explorar o perfil em campanha de lançamento e demais eventos e não tinha dúvidas quanto a ter garimpado diamante dos bons. Lapidaria a sua menina dos olhos, embora tivesse que fazer o jogo de desinteressada para atrair a caça. Contudo, lançara a isca, e o fizera bem feito, é aguardar o mordiscar.


Paola assentiu por mera cortesia. Viu a senhora seguir caminho atenta às demais vitrines e ironizou seu andar elegante e curiosamente sinuoso. De fato, viera a pouco da região rural para estudos e trabalho na capital mineira. De hábitos moderados e precária ambição, não encontrava dificuldades na adaptação em conviver na metrópole a não ser a saudade de sua terra, sua família e o namorado que, para a semana, chegaria à capital em busca de trabalho. Ainda tinha as derradeiras palavras da senhora em mente, de forma que pegou o cartão de visitas para certificar-se da localização de sua agência. “Hum... Talvez, ela possa ter razão...” pensou. Foi ao espelho, aparentemente buscando a aprovação deste sobre a proposta e sentiu súbita vertigem com a figura deformada que vira. Outro cliente aproximava-se e ela se antecipou a atendê-lo. Enfim, decidiu por ir à agência ao menos pela curiosidade e assim o fez, após agendar em horário de seu intervalo. Faria a visita antes da refeição, não fosse o cheiro de sua terra comercialmente representado pelo restaurante de culinária mineira, na praça de alimentação. A moça revisou o planejamento e mudou o trajeto. Serviu-se avidamente de tutu, torresmo, frango com quiabo e ainda arriscou em sujar o prato com porçãozinha de farofa, não percebeu o garçom que indiscretamente cortejava sua beleza e quando avistou o prato servido, ficou confuso buscando relação entre o corpo escultural e o apetite de predador. A menina comeu com nostalgia por sua terra, da comida de mamãe. Deu cabo de tudo sem dificuldades, arrematando com uma dose de café com raspas de rapadura.

Palmas afetadas da promoter soaram nos corredores do estúdio, assim que anunciada pela recepcionista sobre a presença de seu achado. Seria o dia do pescador? A menina observava o mobiliário no hall de espera, encantada com uma mesa de centro com vidro temperado e com relevos decorativos. A própria recepcionista era de uma elegância similar à sua possível patroa. Na entrevista regada à água, café e biscoitinhos amanteigados, a mais velha procurou enfatizar os benefícios de se investir na carreira e vislumbrava sem sombra de dúvidas projeção internacional. Vez por outra eram interrompidas para atendimento telefônico onde a entrevistadora por vezes dialogava em outros idiomas, desconhecido pela outra. Sendo a vez da entrevistada, esta narrou que deixara há quase um dois anos a sua cidade natal na região norte de Minas, trabalhava no shopping conforme de conhecimento e estaria no segundo período no curso de Direito, não sendo de sua idéia abandonar os estudos, devido ao seu deseje de se tornar advogada. Discorreram a conversa e a senhora buscou ser jovial, captando dados da menina, a qual morava com parentes e mantinha um namoro não muito sólido com um conterrâneo, com vias de vir também para capital. Enfatizou, a empresária, que a garota não precisaria abandonar de todo o seu curso e sim, paralisá-lo devido à carreira, para que, com os benefícios e monetários advindos do projeto ela retornasse com mais folga ao curso. Buscou, sorrateiramente, minimizar a importância de se graduar, apregoando que as academias sufocam os alunos em teorias arcaicas para depois deixar, em suas falidas mãos, mero canudo, e abandoná-los à mercê do mercado, como peixes em feiras fossem. Não garantiam salários no mínimo satisfatórios e a cada semestre são cuspidas milhares de túnicas, e capelos voam, aumentando a concorrência. Pausou para uma ordem à recepcionista e disse ao telefone, sem reserva alguma, informação financeira na casa de milhões. A moça se perdia por não conhecer o meio da moda e pelo acúmulo de informações. Indecisa, evidenciou que temia a não aprovação pelo namorado ao que a senhora por pouco não ironizou, assegurando esta seria a mais corriqueira preocupação de todos contratados pela agência, sendo problema de fácil resolução e que, inclusive, ela própria seria especialista em lidar com o assunto. Enfim, agendaram testes e salões, mudanças aqui e acolá enquanto confeccionavam o contrato e promessas de que iriam falar muito da modelo pelo mundo afora.

Paola então foi invadida por maquiadores, penteadores, fotógrafos e eventos diversos, incluindo viagens. Firmado o contrato, o investimento em divulgação massiva e incisiva em poucos meses transformou a modelo em revelação no mundo da moda. Era requisitada por outras agências, estilistas e empresas ligadas ao ramo da beleza. Certa feita, em solenidade ocorrida no sul do país, Paola desfilou tão magistralmente que foi ovacionada a ponto de encantar a marca publicitária Pecado Original, a mais conceituada no ramo da moda e não menos cobiçada. Bia comemorava a faraônica parceria com a companhia que encheria suas algibeiras, consolidando sua aposentadoria. Ao que a modelo revelou um entrave, o namorado, que ciente das novidades estaria enciumado e contrário à situação, exigindo-lhe decisão pelo casamento ou carreira e deixando a moça em aflição, já que ela desejava as duas fatias do atormentado bolo. Estaria gostando dos flashes e fama, embora amasse Alfredo de forma que recorreu aflita à administradora. Como de hábito e também afirmado, a empresária agiu rápido e eficaz, tão logo ouviu os apelos da jovem, requisitou uma entrevista com Alfredo e este milagrosamente aprovou aos projetos da enamorada, inclusive tornando-se aos poucos, mais distante dela. Bia parecia consentir com as atitudes dele. Contudo, em conversas com sua pequena, salpicava que ela merecia coisa melhor, alegando algo de primitivo no amásio.

Veio a parceria com a Pecado Original e deixaram a sala de reuniões com o contrato, fita métrica e balança nas mãos. Um assistente media, media novamente, calculava, aferia. A balança informava o peso da massa preciosa e a menina do interior foi auditada por todos os ângulos, sendo o resultado apresentado à empresaria que, preocupada em manter a parceria, teve que adotar postura radical, o que significava o controle rigoroso do peso de sua pepita, e também a perda deste, significando a obrigatoriedade dela abdicar-se de refeições calóricas. Resultaria em adeus a frangos com quiabos, até nunca a molhos pardos, tutus, miúdos e toda sorte de vísceras. Rabadas, jamais! Costelinha só nas passarelas. Angus, feijoadas e tantos outros pratos amineirados estariam terminantemente proibidos. Não foi citado no discurso de Bia a pele suína pururucada, por óbvios motivos. A simples pronúncia do item sugeria cancelamento irrevogável ao contrato que necessitaria da máxima proteção por ser super valioso!

- Bia...-suplicou a menina- Devo mesmo abrir mão disso tudo?

- Absolutamente... – retornou a promotora, agora em tom mais grave- Caso contrário, teremos que preparar outra modelo e apresentar à Pecado Original.

- Até o frango com quiabo?- arriscou uma última tentativa, em tom de agonia na voz.

- Prin-ci-pal-men-te – silabou a contratante, arregalando os olhos como se tivesse escutado satânica palavra.

Contratos fechados, dieta iniciada e Paola agora se mantinha a bolachas compostas de água, dia e noite, noite e dia. Chás seriam alternativas, para o fim de emagrecimento. Em contrapartida, a fama formigou os calcanhares da menina e passarelas de todo o mundo conheceram o seu andar elegante e seu discreto corpo, ainda que, às vezes vacilante de fome, porquanto belo. Vieram apartamento na zona sul, carro, flores e perfumes... Seu rosto de menina ingênua atraia câmeras de todos os cantos e as bancas de revistas eram decoradas com suas poses, em estouro de vendas. O namorado, requisitado por Bia, fiscalizava sua alimentação e a incentivava, por meio de promessas e gracejos, manter a dieta.  A intimidade da moça oscilava entre deslumbre e frustração, uma vez que seus passos eram também controlados pela promotora, disposta a proteger sua mina fecunda. Interferia em sua abstinência alimentar, com tanto rigor e diligência que a dama das passarelas, por mais esquálida que se tornava, sentia-se gorda a ponto de ter vertigens e passar até dias sem se alimentar. Em uma das auditorias disfarçadas de visita que Bia promovia em seu apartamento, queixava-se do namorado que se tornara muito ausente e não se fixara em nenhuma ocupação conforme lhe prometera quando se fixou veio para a capital. A patroa, enquanto vistoriava o refrigerador a procura de alimento suspeito, alegou não aprovar o envolvimento de Paola com o gaiato. Sentia-o despojado e desinteressado, um tanto preocupado com a forma física e hibernado em academias de ginástica. Indagou maliciosamente de onde viriam os recursos para despesas do rapaz enquanto removia o refrigerante dietético da prateleira, substituindo-o por água mineral.  Por fim, sugeriu que a menina terminasse o namoro e desse uma banana para o amado, não sendo difícil para ela pretendentes consideravelmente melhores e mais atraentes.

- Se eu tivesse uma banana, comeria-a no ato- retornou a modelo, que teria a fruta banida de seu magro cardápio, onde somente a maçã estaria liberada após análise e com o limite máximo de uma por dia.  

Definhava-se então a humana manequim,  dia após dia, apesar de estar no paraíso. Ora infeliz no amor, o dinheiro e fama vinham-lhe a cântaros. O glamour, portanto, cobrava-lhe o preço da abstinência, crua e amarga e o não mover das mandíbulas era o lema para a manutenção do projeto, a ponto dela sentir vertigens quando se deparava com qualquer local freqüentado por glutões. Mastigar tornou-se ato pecaminoso, algo como envenenar-se. Assim deambulava Paola. Quando em tentação caía, embora raramente, investia o dedo indicador à goela, convidando o intruso alimento a ser despejado de suas solitárias entranhas, como penitência ao pecaminoso ato. Até o sono parecia sentir fome, pois raramente a dominava e a pobre menina rica que não mais dormia direito, assustando-se com freqüência. Quando lhe vinham espasmos de cochilo, eram acompanhados de pesadelos onde travessas de tutu à mineira bailavam em provocante harmonia, seguidos de torresmos que pipocavam, rebolativos e em desmedida algazarra, assombrando-a. Doces de figo eram depositados aos seus pés, e toda sorte de compotas caía como torrenciais tempestades, espatifando-se no chão e formando então ondas de pêssegos, laranjas e demais frutas, regadas em doces caldas, pegajosas e cristalinas. Despertava aterrorizada, em suor frio e insosso.

O barulho da zona sul misturava sons de buzinas, pneus cantando, um ou outro som de automóveis. De sua janela Paola contempla a vista da Praça da Liberdade e suas charmosas arquiteturas ao redor, primorosamente iluminadas. Invejava casais de namorados, entre brincadeiras e gracejos passear entre coqueiros e roseiras. Veio à lembrança Alfredo que não aparecera em mais uma noite. Cada dia mais distante e que em uma de suas visitas, insinuou que estaria com saudades das carninhas hoje tão raras na namorada. Talvez Bia tivesse novamente certa: o namoro de ambos já não tinha razão de ser, não dava mais liga e, se ele não a procurava com freqüência de outrora certamente teria outra em campo. Deu meia dúzia de passos, examinou o apartamento ricamente mobiliado de conforto e beleza. Tudo ao seu alcance e sentia-se enquadrada em sua vida espionada por hienas fotográficas e promotores de moda. Exposição comercial, como peixes em feira, inanimada vida amorosa. Comer e beber o que não sacia... Teria vendido sua alma?

Apanhou sem vontade o controle remoto, objeto mais utilizado em seu lar e iniciou a ciranda de canais. Como não sabia o que queria ver ou se queria ver algo, tateou os teclados passeando por dezenas de canais e, por cansaço deteve-se na programação de um desenho animado. A cabeça lhe doía e o brilho emitido pelo televisor aumentava a sensação. Estranhamente sorriu e se deu conta que há muito não o fazia a não ser mecanicamente e sob influência de flashes, embora o motivo fosse a recordação de quando menininha, espalhada no sofá de sua casa, devorando variadas brevidades e cereais. Participava da nostalgia uma esquelética pantera de cor rosa, que na animação da grande tela, aprontava as suas, enlouquecendo a quem contracenava consigo e botando abaixo, embora malignamente, o mito de sexo frágil atribuído à sua cor. De olhos vivos, arregalados e silhueta delgada de causar inveja à mais cobiçada manequim, a personagem selvagem de andar vacilante, lembrava à sua telespectadora ao menos no físico, conquanto comprovasse em peripécias o quão perigosa seria quando provocada. E assim o fazia com soberbos requintes de cinismo e ironia. Paola remexeu-se subitamente no sofá.  A felina, apesar da semelhança corporal, comportava-se contrariamente à ela e talvez quisesse explicitar isso, porque a cada ato, o animal a olhava de soslaio, intrigante e discretamente debochada, como se quisesse exibir seu feito. A telespectadora disse algo para si e para a tela, de onde a pantera, a esta altura, fugia em debandada por ser perseguida por um possível desafeto. Paola sorria e lamentou quando anunciaram o the end na tela. Levantou-se da poltrona, girou nos gravetos e foi ao quarto para se trocar, sentindo que precisava tomar um ar e também algo naquele verão abafado.

O táxi encostou para embarque e o motorista cumprimentou a passageira que estaria de peruca e óculos escuros, apesar de ser noite. A modelo decidiu por camuflar-se para evitar assédios de tietes, paparazzis e demais abutres que desrespeitam o direito de um ser humano faminto ir e vir. Não revelou o destino ao chofer, mesmo porque não o saberia, dado o desejo de passear a esmo. A alguns metros, sugeriu ao motorista que a deixasse próximo ao shopping localizado à Avenida do Contorno, onde gastaria tempo e dinheiro para ocupar o tempo. O trânsito estava congestionado como sempre naquela região que abrigava bares, restaurantes e diversas outras opções de lazer e para o desespero da modelo, o aroma convidativo de carne assada invadiu o veículo, oriundo do restaurante onde o cartaz anunciava promoção de rodízio para casais. Ela apertou os olhos, tentando expulsar da memória o paladar adormecido. O motorista que reclamava do trânsito agora se deliciava com o cheiro da carne, tentado adivinhar qual parte de qual animal seria. Fez um comentário, e não recebeu retorno da passageira que dispensava palestras e se contorcia, rogando que lhe poupassem do pecado da carne pela carne. Não conseguia se concentrar, mesmo porque o intermitente som de buzina era emitido por outro veículo que pedia a passagem para acessar a entrada do restaurante.  O taxista até então monologava sobre coisas assadas e, como estaria indiferente à buzina, foi ultrapassado e o outro condutor, não satisfeito, protestou algo nada agradável ao companheiro de tráfego. Ainda que não tenha entendido o verbete utilizado pelo impaciente motorista, a voz pareceu familiar à passageira que instintivamente abriu os olhos para tentar se acercar do acontecido. O carro, tendo sucesso na ultrapassagem foi deixado aos cuidados do manobrista após o casal entregar a chave e uma elegante senhora adentrou as portas do restaurante acompanhada de espadaúdo mancebo, um tanto mais jovem que ela. Imediatamente Paola informou ao motorista que ali ficaria e, mal aguardando o condutor procurar acostamento, desembarcou, sem se preocupar com as normas de trânsito e deixando uma quantia desproporcionalmente superior ao serviço. Em poucos passos estava ao pé da escada. A lufada de aromas assados a deixou ainda mais tonta, que foi preciso o recepcionista se precipitar e segurá-la por ter percebido um cambalear com algum risco de queda.

-Boa noite... A senhora tem reserva?

-Não. Inclusive, não pretendo demorar por aqui.

-Tudo bem. Temos mesas vagas naquela direção. Por favor... – conduziu o empertigado recepcionista. Um tanto espantado com a magricela cliente, indicou o assento, mantendo respeitada distância e aproveitando para avaliar, ainda que discretamente, seu corpo que seguia em frente. Fixou nas nádegas e desaprovou mentalmente a ausência de carnes em moça tão bonita.

Já acomodada, ela solicitou água tônica diet e apoderou-se do cardápio, para assim observar,  sem ser observada, mal se dando conta de que estaria camuflada. Sacudiu os ossos na cadeira quando reconheceu, a três mesas de distância a promoter, a chefe, a  Bia, sorridente, ao lado de um Apolo, lindo e não menos sorridente acompanhado-a. Sentiu vertigens e tentava, em vão, desacreditar que aquele homem, vistoso homem, era o mesmo que ela esperava em seu apartamento. Sim... Ele mesmo, que não fora vê-la hoje e tampouco nos últimos dias... Alfredo, menino, bonito... Atracado com a Bia! Aquela voz que agredira o taxista... Desviou o olhar para as paredes, sentindo-lhe as tripas brigarem por carne. Tomada pelo ódio e lampejos de delírio, viu emergir, dos quadros decorativos, enormes bocas acusando-a de ingênua, gargalhando à traição exposta. Dedos saltavam dos quadros, hirtos, indicando o casal leviano e olhos arregalados, miravam na, como se a censurassem  pela inação...

Seguiu a espreita, presenciando afagos indiscretos para o local, beijos e até mãos passeando sob o pano que cobria a mesa. Garçons rodopiavam, como anjos, em volta do envolvido casal, portando recheados espetos como se harpas fossem, vez ou outra detendo se, cortesmente, para deslizar suavemente as facas nas carnes espetadas, e estas pareciam cantar, dolentes, enquanto caíam prontas e suculentas nos pratos, e ali permaneciam, como oferendas, tal qual um ritual. Os pombinhos portavam-se, como serpentes fossem, absorvendo amontoado de coraçõezinhos, picanhas, cupins, rãs, capivaras, enfim, toda a fauna, sem pecado e, absolutamente, sem juízo. Paola testemunhava o sangue que escorria pela boca da empresária. Viu quando a língua bifurcada descreveu um semicírculo e envolveu todo o lábio pintado, feito um descarado palhaço, retendo o líquido escarlate com tanta eficiência que causou rebuliço na cadeira do acompanhante. A modelo teve que assumir que sua personal novamente estaria certa. Saberia lidar com namorados ciumentos e Alfredo talvez merecesse uma banana. Quis chorar, mas não só lhe faltava forças como as mudanças que sofrera, intensas e incisivas, em alguma parte deflorara a ingênua menina do interior. Ergueu de novo os olhos sobre o cardápio. Sacudiu a cabeleira para tentar expulsar o que via. Varias panteras cor de rosa, idênticas, assumiam o posto antes atribuído aos garçons, desfilavam, cada qual com seu espeto de carne assada. Vez por outra uma elas estancava para servir a mesa dos amantes e, mesmo à distância, lançava o felino olhar para a modelo, como se questionasse acerca da reação desta, porque ali estava, a servir e abundância o que lhe era terminantemente proibido. A felina a desafiava com mesmo olhar de soslaio, de irônico mistério.

-Senhora? –disse o garçom, visivelmente preocupado com a estranheza da cliente - deseja degustar algo?
- Não, obrigada... - Se recompôs a outra, com certa confusão, modulando o tom de voz- Receio perder o apetite...

- Como quiser, esteja a gosto. –retirou se cortesmente o atendente- convencido de que atendera a mais uma, rica e louca, da metrópole.

A água não foi sequer sorvida. Paola ergueu-se da mesa, pagando diretamente ao garçom como fez com o chofer. Não poderia, em hipótese alguma, se atrasar.

Bia entrou no elevador, abanando-se. Estaria exausta devido à nababesca noite anterior.   Não fosse o chamado de sua modelo, que insistiu em vê-la, alegando urgência, teria ficado inerte em seu aconchegante puff, espreguiçada e curtindo a ressaca e os aromas do amor. A porta se abriu ao chamado, e a visita espantou-se com o a penumbra presente na sala. À meia luz, admirou-se ao ver a mesa educadamente arranjada, com toalhas rendadas e um castiçal bem ao centro. “Haveria jantar? -intuiu -Tomara que essa menina tonta não me venha com surpresas, hoje não estou para essas mesuras!”.

- Que foi, meu anjo? Chamou-me assim, de supetão... Fiquei preocupada!

Paola estava envolta em avental, indumentária nunca então vista por Bia. Ainda que em aparentes atividades culinárias, a promotora estranhou na maquiagem bem feita e as unhas de um vermelho vivo. Não se sentiu à vontade. Sua pombinha de ouro, cozinhando? A referida pomba a tranqüilizou alegando saudades. Queixava-se de que se sentia abandonada por ela, pelo namorado, sentindo-se solitária e carente! Até não durmo como antigamente. Como se não bastasse, sou assaltada por pesadelos, acredita? Ontem mesmo, sonhei que um jovem leão abatia uma vaca e eu assistia a tudo! Pode isso?!? - arregalou os olhos que imprimiam um brilho não muito habitual. A outra se assustou com a face magra da cozinheira -E o mais estranho é que a vaca, apesar de vítima, sorria, a medida que seu sangue escorria pela mandíbula do predador. Eu acordei suada, tomei goles de água gelada e voltei a dormir. E não é que os malditos sonhos voltaram? Estava eu em um jardim lindo, parecia o paraíso, e fiquei apavorada quando vi um bezerrinho, tão jovem pastando e o pobre, sem chance de defesa, foi atacado pela serpente!

-Cruzes! -, apavorou-se Bia. Pressentiu que a moça estaria realmente esquisita. Talvez fosse prudente rever a dieta e estipular um descanso - O Alfredo não tem aparecido? -tentou remediar, teatralmente... - Eu não te disse? Eu conheço os homens!  E esse arranjo todo?- desviou o olhar apontando os cílios para a sala decorada - Está cozinhando para o amado?

Ela confirmou. Ao ser indagada sobre o prato, limitou-se a dizer que seria um velho prato apreciado pelo rapaz.

Pimentões e cebolas aguardavam, sobre a tábua, o inevitável corte. Paola apanhou a faca de carnes dentro da gaveta e escolheu uma cebola, a qual ao primeiro golpe, escorregou de sua inexperiente mão culinária. Raios de sol invadiam a janela, despedindo-se da tarde, e defrontavam com o instrumento cortante, distribuindo ramificações luminosas pela cozinha.

- Permita-me- disse, solícita, a caça talentos, inclinando-se para apanhar o legume que se aninhara entre os pés da modelo. Assustou-se, porém, quando visualizou um par de canelas de causar inveja a flamingos. Calçavam o pé magro de unhas engenhosamente pintadas de vermelho, um salto negro feito a graúna. Bia ficou por entender a vestimenta requintada e de cores marcantes, para momento tão doméstico. Certamente teria que auxiliar a menina nas tarefas, tão desajeitada a via. Lamentou-se para si, já que não tencionava se demorar na visita.

Às vinte horas ele chegou. Pontual, cheiroso, lindo e ainda sorridente. Beijou a anfitriã como se desculpasse das ausências e foi logo apoderar-se do espelho para certificar que o jeans se ajeitara no corpo atlético. O reflexo confirmou. Ajeitou os cabelos e foi ter com a namorada, abraçando-a por trás e aspirando-lhe o pescoço lânguido como o de uma girafa.

- O que é isso, amor? Que surpresa! Um jantar? Você nunca me disse sobre seus dotes culinários - brincou, beliscando-lhe a nádega - Tá querendo me agarrar pelo estômago, hein? –prosseguiu, tateando o escasso traseiro da pequena. Amorzinho, precisa novamente pegar uma carninha, rechear as coisas...
.
Ela apenas sorriu um sorriso de passarela e o acomodou ao topo da mesa para finalizar o projeto. Acendeu o candeeiro e foi buscar os pratos. Um tênue chama se impôs no local, tornando a penumbra ainda mais atraente. Algo de volúpia e um cheiro de pecado vestiam o ambiente. Menu servido, tampas removidas e agradável aroma tornou a sala um tanto quanto afrodisíaca. Conversaram amenidades ele estaria bem humorado como se tivesse cruzado com algum passarinho verde, conforme ditado de sua terra. Aspirou o ar tentando identificar o prato

- Hum... –suspirou, sentindo que teria que se reforçar, afinal, a noite última fizera plantão. Esfregou as mãos uma à outra – É hoje que eu morro...

Paola achou divertida a originalidade do companheiro. O outro riu também, convencido de ter contado uma anedota à ingênua. Serviu-se da bebida escura que lhe fora ofertada, não a identificando, embora tenha lançando uma piscadela já conhecida à anfitriã, prometendo festa iminente. À primeira garfada, o garanhão fechou os olhos e expressou prazer. Indagou sobre a iguaria. Algo agridoce, picante. Vísceras? Sarapatéu? O guisado estava caudaloso, e a penumbra dificultava a análise - Entretanto, sentia-o saboroso, um tanto rançoso, na verdade, e levemente adocicado.

- O que é querida? Conte... – Sorriu.

-Não tá reconhecendo? Vocês homens... – ironizava a autora, servindo mais uma porção ao amado - comem por instinto e, depois de saciados, são incapazes de identificar ao menos o que foi lhes servido.

- Fígado de galinha - arriscou, confiante.

- Quase... Está quente...

- Não vai comer? Inquiriu o faminto

- Quero deixar esfriar um pouco... Esse tipo de prato deve ser apreciar bem frio...

Ele, como de costume, ignorou suas palavras e continuaram a brincadeira de adivinhação, tendo o convidado cantando uma ciranda de opções, de temperaturas quentes, fervendo e frias... Todos os miúdos comumente degustados desfilaram nas tentativas. Errou a todos. Resolveu, por fim, apelar para os mais regionais, chegando a ferver quando citou rabada bovina. Desistiu então da divertida brincadeira, alegando que o que realmente importa é comer, e deu cabo de mais um prato da incógnita refeição. Suas mandíbulas fizeram o trabalho em menos de uma hora que não teria sido feito em uma ano naquele apartamento. Comeu à maneira de padre imune ao pecado da gula. Bebeu feito um pagão. Saciado, procurou recompensar aquela que lhe alimentava, dizendo gracejos apaixonados e colhendo, com certa facilidade, o mirrado corpo para levá-lo ao quarto.

A cama estava coberta com lençol tão vermelho que dominava as demais cores do quarto. Ele sentiu um torpor. Sobre a cabeceira, uma rosa príncipe negro repousava entre os travesseiros de renda também escarlates e com detalhes em preto. Novamente o torpor e Alfredo procurou algo para se apoiar. Perdia gradativamente os sentidos, chegando a supor que exagerara em alguma coisa. Teve que abandonar o feixe de ossos que mal conduzia quando sentiu que a respiração o deixava, era como seu um ser o devorasse por dentro, partindo do estômago e talvez quisesse sair de seu corpo ficando entalado, portanto na garganta. Suas majestosas pernas se confundiam. Olhou para a namorada, a qual retribuiu com o olhar entre doce e felino, alertando que nem todas as rosas tem a mesma cor. Talvez ele decifrasse o olhar da namorada narrando tudo que vira na véspera... Talvez fosse apenas os efeitos colaterais de quem tenha mordido a única fruta permitida naquela casa. Enfim, ensaiou desajeitado passo e seu monumental corpo desabou, pesado, sobre o colchão, estressando a espuma e atrapalhando todo o arranjo. A rosa, lançada pelo impacto, veio cair aos pés da manequim, a qual a capturou pela boca, mantendo-a presa pelo galho, entre os dentes, a despeito dos espinhos.

Paola voltou à sala de televisão, provocando feixes iluminados em toda a sala ao ligar o aparelho de televisão. Procurava debalde o programa que assistira na noite anterior, ansiando em rever a face da enigmática pantera e compartilhar com a felina a sua peripécia, além de agradecê-la pela deixa. Não localizando, ponderou que precisava descansar. Cruzou a sala e o espelho a convidou. Continuava impecável no vestido preto, examinou as unhas vermelhas e o salto agulha. As palavras de Bia repicavam em sua mente “Ainda vão falar muito de você, darling!”. Bia danada... Sempre com razão, embora, nas mulheres o sentido não abre mão de seu lugar. O espelho sorriu-lhe. Realmente era ela a mais bela! Caminhou, afinal, para o merecido e necessário repouso. Amanhã seria um dia longo e talvez precisasse de uma advogada. 



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