A vitrine emitia brilho pelos arredores com
um prisma, tornando assim mais atraente a joalheria de onde desfilavam aos olhos
cobiçosos dos clientes, sejam suspensas por finos aros, envoltas em cilindro
felpudo ou repousadas sobre aquários tais e quais valiosos peixes, sedutores
adornos. Um grande espelho posicionado para atrair a atenção do público, entretinha
uma bela moça que, focada em seu reflexo, meneava o corpo ajeitando aqui e acolá.
Vasculhava inexistentes rugas no rosto, avaliava as sobrancelhas e cílios, ajeitava
mexas de cabelo, analisava cintura, os glúteos, sempre com o olhar fixo no
espelho. Assim envolvida estava que não percebeu a senhora aproximando-se e, ao
que parece, observava a outra que se observava no espelho
- Permita-me - ouviu, por trás de si, contrariada em ter
que findar a inspeção como se aguardasse que o cristalino objeto validasse sua
onipotente beleza.
Pois não senhora, perdão... Estava distraída aqui... Deseja
ver alguma jóia?- Disse ao voltar para a possível cliente e o fez com tão natural
elegância que sua majestosa cabeleira, ao acompanhar movimento do corpo, culminou
por concluir a fabulosa tarefa do espelho. A voz carregava um sotaque
interiorano, algo da região norte do estado. Sorriu à recém chegada, conforme
protocolo e apanhou um cartão que esta lhe estendia com certo desagravo, afinal
a vendedora ali seria ela e a ação da senhora que a interpelara deixava claro
que não nasceria daquele relacionamento qualquer valor de comissão. Erguendo os
olhos, deparou-se com a feição da interceptora e ficou regalada com a eficácia
de sua maquiagem, além do vestir e ornar elegantes. Apesar de tratar-se de uma
senhora, passearia entre a quarta e quinta década, porém empinada em uma
postura jovial. Visíveis camadas de creme e pintura contribuíam em defender a
aparência.
- Realmente preciso de jóias. Quem não precisa? Mas não sei se percebe, a jóia valiosa aqui é
você. Como é bonita, menina! Onde achou tanta beleza assim?!?
- Obrigada... Não sei não... – ela se precavia. Preparava
para se livrar do galanteio quando leu o cartão que recebera.
- Bia Mourão! Produtora de moda... Então? Que tal pensa em
dar um up em sua vida profissional? Hein? Se tornar modelo, meu anjo.Tem brilho
minando em você! Ninguém
nunca lhe disse?
- Acho que não, senhora.
-Bom, filha- disse a outra que havia feito rápida analise
de sua cobiça e pelo sotaque e fraco conteúdo do diálogo entendeu que se
tratava do velho clichê: Mineirinha do interior, jovem e incauta, presa fácil e
domesticável. Já traçava planos para explorar o perfil em campanha de
lançamento e demais eventos e não tinha dúvidas quanto a ter garimpado diamante
dos bons. Lapidaria a sua menina dos olhos, embora tivesse que fazer o jogo de
desinteressada para atrair a caça. Contudo, lançara a isca, e o fizera bem
feito, é aguardar o mordiscar.
Paola assentiu por mera cortesia. Viu a senhora seguir caminho
atenta às demais vitrines e ironizou seu andar elegante e curiosamente sinuoso.
De fato, viera a pouco da região rural para estudos e trabalho na capital
mineira. De hábitos moderados e precária ambição, não encontrava dificuldades
na adaptação em conviver na metrópole a não ser a saudade de sua terra, sua
família e o namorado que, para a semana, chegaria à capital em busca de
trabalho. Ainda tinha as derradeiras palavras da senhora em mente, de forma que
pegou o cartão de visitas para certificar-se da localização de sua agência. “Hum...
Talvez, ela possa ter razão...” pensou. Foi ao espelho, aparentemente buscando
a aprovação deste sobre a proposta e sentiu súbita vertigem com a figura
deformada que vira. Outro cliente aproximava-se e ela se antecipou a atendê-lo.
Enfim, decidiu por ir à agência ao menos pela curiosidade e assim o fez, após
agendar em horário de seu intervalo. Faria a visita antes da refeição, não
fosse o cheiro de sua terra comercialmente representado pelo restaurante de
culinária mineira, na praça de alimentação. A moça revisou o planejamento e
mudou o trajeto. Serviu-se avidamente de tutu, torresmo, frango com quiabo e
ainda arriscou em sujar o prato com porçãozinha de farofa, não percebeu o
garçom que indiscretamente cortejava sua beleza e quando avistou o prato
servido, ficou confuso buscando relação entre o corpo escultural e o apetite de
predador. A menina comeu com nostalgia por sua terra, da comida de mamãe. Deu
cabo de tudo sem dificuldades, arrematando com uma dose de café com raspas de
rapadura.
Palmas afetadas da promoter soaram nos corredores do
estúdio, assim que anunciada pela recepcionista sobre a presença de seu achado.
Seria o dia do pescador? A menina observava o mobiliário no hall de espera,
encantada com uma mesa de centro com vidro temperado e com relevos decorativos.
A própria recepcionista era de uma elegância similar à sua possível patroa. Na
entrevista regada à água, café e biscoitinhos amanteigados, a mais velha
procurou enfatizar os benefícios de se investir na carreira e vislumbrava sem
sombra de dúvidas projeção internacional. Vez por outra eram interrompidas para
atendimento telefônico onde a entrevistadora por vezes dialogava em outros
idiomas, desconhecido pela outra. Sendo a vez da entrevistada, esta narrou que
deixara há quase um dois anos a sua cidade natal na região norte de Minas,
trabalhava no shopping conforme de conhecimento e estaria no segundo período no
curso de Direito, não sendo de sua idéia abandonar os estudos, devido ao seu
deseje de se tornar advogada. Discorreram a conversa e a senhora buscou ser
jovial, captando dados da menina, a qual morava com parentes e mantinha um
namoro não muito sólido com um conterrâneo, com vias de vir também para
capital. Enfatizou, a empresária, que a garota não precisaria abandonar de todo
o seu curso e sim, paralisá-lo devido à carreira, para que, com os benefícios e
monetários advindos do projeto ela retornasse com mais folga ao curso. Buscou,
sorrateiramente, minimizar a importância de se graduar, apregoando que as
academias sufocam os alunos em teorias arcaicas para depois deixar, em suas
falidas mãos, mero canudo, e abandoná-los à mercê do mercado, como peixes em
feiras fossem. Não garantiam salários no mínimo satisfatórios e a cada semestre
são cuspidas milhares de túnicas, e capelos voam, aumentando a concorrência.
Pausou para uma ordem à recepcionista e disse ao telefone, sem reserva alguma, informação
financeira na casa de milhões. A moça se perdia por não conhecer o meio da moda
e pelo acúmulo de informações. Indecisa, evidenciou que temia a não aprovação
pelo namorado ao que a senhora por pouco não ironizou, assegurando esta seria a
mais corriqueira preocupação de todos contratados pela agência, sendo problema
de fácil resolução e que, inclusive, ela própria seria especialista em lidar
com o assunto. Enfim, agendaram testes e salões, mudanças aqui e acolá enquanto
confeccionavam o contrato e promessas de que iriam falar muito da modelo pelo
mundo afora.
Paola então foi invadida por maquiadores, penteadores,
fotógrafos e eventos diversos, incluindo viagens. Firmado o contrato, o
investimento em divulgação massiva e incisiva em poucos meses transformou a
modelo em revelação no mundo da moda. Era requisitada por outras agências, estilistas
e empresas ligadas ao ramo da beleza. Certa feita, em solenidade ocorrida no
sul do país, Paola desfilou tão magistralmente que foi ovacionada a ponto de
encantar a marca publicitária Pecado Original, a mais conceituada no ramo da
moda e não menos cobiçada. Bia comemorava a faraônica parceria com a companhia
que encheria suas algibeiras, consolidando sua aposentadoria. Ao que a modelo
revelou um entrave, o namorado, que ciente das novidades estaria enciumado e
contrário à situação, exigindo-lhe decisão pelo casamento ou carreira e
deixando a moça em aflição, já que ela desejava as duas fatias do atormentado
bolo. Estaria gostando dos flashes e fama, embora amasse Alfredo de forma que recorreu
aflita à administradora. Como de hábito e também afirmado, a empresária agiu
rápido e eficaz, tão logo ouviu os apelos da jovem, requisitou uma entrevista
com Alfredo e este milagrosamente aprovou aos projetos da enamorada, inclusive
tornando-se aos poucos, mais distante dela. Bia parecia consentir com as
atitudes dele. Contudo, em conversas com sua pequena, salpicava que ela merecia
coisa melhor, alegando algo de primitivo no amásio.
Veio a parceria com a Pecado Original e deixaram a sala de
reuniões com o contrato, fita métrica e balança nas mãos. Um assistente media, media
novamente, calculava, aferia. A balança informava o peso da massa preciosa e a
menina do interior foi auditada por todos os ângulos, sendo o resultado
apresentado à empresaria que, preocupada em manter a parceria, teve que adotar
postura radical, o que significava o controle rigoroso do peso de sua pepita, e
também a perda deste, significando a obrigatoriedade dela abdicar-se de
refeições calóricas. Resultaria em adeus a frangos com quiabos, até nunca a molhos pardos, tutus, miúdos
e toda sorte de vísceras. Rabadas, jamais! Costelinha só nas passarelas. Angus, feijoadas e tantos outros
pratos amineirados estariam terminantemente proibidos. Não foi citado no
discurso de Bia a pele suína pururucada, por óbvios motivos. A simples pronúncia
do item sugeria cancelamento irrevogável ao contrato que necessitaria da máxima
proteção por ser super valioso!
- Bia...-suplicou a menina- Devo mesmo abrir mão disso
tudo?
- Absolutamente... – retornou a promotora, agora em tom
mais grave- Caso contrário, teremos que preparar outra modelo e apresentar à
Pecado Original.
- Até o frango com quiabo?- arriscou uma última tentativa,
em tom de agonia na voz.
- Prin-ci-pal-men-te – silabou a contratante, arregalando
os olhos como se tivesse escutado satânica palavra.
Contratos fechados, dieta iniciada e Paola agora se
mantinha a bolachas compostas de água, dia e noite, noite e dia. Chás seriam
alternativas, para o fim de emagrecimento. Em contrapartida, a fama formigou os
calcanhares da menina e passarelas de todo o mundo conheceram o seu andar
elegante e seu discreto corpo, ainda que, às vezes vacilante de fome, porquanto
belo. Vieram apartamento na zona sul, carro, flores e perfumes... Seu rosto de
menina ingênua atraia câmeras de todos os cantos e as bancas de revistas eram
decoradas com suas poses, em estouro de vendas. O namorado, requisitado por
Bia, fiscalizava sua alimentação e a incentivava, por meio de promessas e
gracejos, manter a dieta. A intimidade
da moça oscilava entre deslumbre e frustração, uma vez que seus passos eram também
controlados pela promotora, disposta a proteger sua mina fecunda. Interferia em
sua abstinência alimentar, com tanto rigor e diligência que a dama das
passarelas, por mais esquálida que se tornava, sentia-se gorda a ponto de ter
vertigens e passar até dias sem se alimentar. Em uma das auditorias disfarçadas
de visita que Bia promovia em seu apartamento, queixava-se do namorado que se
tornara muito ausente e não se fixara em nenhuma ocupação conforme lhe
prometera quando se fixou veio para a capital. A patroa, enquanto vistoriava o
refrigerador a procura de alimento suspeito, alegou não aprovar o envolvimento
de Paola com o gaiato. Sentia-o despojado e desinteressado, um tanto preocupado
com a forma física e hibernado em academias de ginástica. Indagou
maliciosamente de onde viriam os recursos para despesas do rapaz enquanto
removia o refrigerante dietético da prateleira, substituindo-o por água mineral.
Por fim, sugeriu que a menina terminasse
o namoro e desse uma banana para o amado, não sendo difícil para ela
pretendentes consideravelmente melhores e mais atraentes.
- Se eu tivesse uma banana, comeria-a no ato- retornou a
modelo, que teria a fruta banida de seu magro cardápio, onde somente a maçã
estaria liberada após análise e com o limite máximo de uma por dia.
Definhava-se então a humana manequim, dia após dia, apesar de estar no
paraíso. Ora infeliz no amor, o dinheiro e fama vinham-lhe a cântaros. O
glamour, portanto, cobrava-lhe o preço da abstinência, crua e amarga e o não
mover das mandíbulas era o lema para a manutenção do projeto, a ponto dela
sentir vertigens quando se deparava com qualquer local freqüentado por glutões.
Mastigar tornou-se ato pecaminoso, algo como envenenar-se. Assim deambulava
Paola. Quando em tentação caía, embora raramente, investia o dedo indicador à
goela, convidando o intruso alimento a ser despejado de suas solitárias entranhas,
como penitência ao pecaminoso ato. Até o sono parecia sentir fome, pois
raramente a dominava e a pobre menina rica que não mais dormia direito,
assustando-se com freqüência. Quando lhe vinham espasmos de cochilo, eram
acompanhados de pesadelos onde travessas de tutu à mineira bailavam em provocante
harmonia, seguidos de torresmos que pipocavam, rebolativos e em desmedida
algazarra, assombrando-a. Doces de figo eram depositados aos seus pés, e toda
sorte de compotas caía como torrenciais tempestades, espatifando-se no chão e
formando então ondas de pêssegos, laranjas e demais frutas, regadas em doces
caldas, pegajosas e cristalinas. Despertava aterrorizada, em suor frio e
insosso.
O barulho da zona sul misturava sons de buzinas, pneus
cantando, um ou outro som de automóveis. De sua janela Paola contempla a vista
da Praça da Liberdade e suas charmosas arquiteturas ao redor, primorosamente
iluminadas. Invejava casais de namorados, entre brincadeiras e gracejos passear
entre coqueiros e roseiras. Veio à lembrança Alfredo que não aparecera em mais
uma noite. Cada dia mais distante e que em uma de suas visitas, insinuou que
estaria com saudades das carninhas hoje tão raras na namorada. Talvez Bia
tivesse novamente certa: o namoro de ambos já não tinha razão de ser, não dava
mais liga e, se ele não a procurava com freqüência de outrora certamente teria
outra em campo. Deu meia dúzia de passos, examinou o apartamento ricamente
mobiliado de conforto e beleza. Tudo ao seu alcance e sentia-se enquadrada em sua
vida espionada por hienas fotográficas e promotores de moda. Exposição comercial,
como peixes em feira, inanimada vida amorosa. Comer e beber o que não sacia... Teria
vendido sua alma?
Apanhou sem vontade o controle remoto, objeto mais
utilizado em seu lar e iniciou a ciranda de canais. Como não sabia o que queria
ver ou se queria ver algo, tateou os teclados passeando por dezenas de canais
e, por cansaço deteve-se na programação de um desenho animado. A cabeça lhe
doía e o brilho emitido pelo televisor aumentava a sensação. Estranhamente sorriu
e se deu conta que há muito não o fazia a não ser mecanicamente e sob
influência de flashes, embora o motivo fosse a recordação de quando menininha,
espalhada no sofá de sua casa, devorando variadas brevidades e cereais. Participava
da nostalgia uma esquelética pantera de cor rosa, que na animação da grande
tela, aprontava as suas, enlouquecendo a quem contracenava consigo e botando
abaixo, embora malignamente, o mito de sexo frágil atribuído à sua cor. De
olhos vivos, arregalados e silhueta delgada de causar inveja à mais cobiçada
manequim, a personagem selvagem de andar vacilante, lembrava à sua
telespectadora ao menos no físico, conquanto comprovasse em peripécias o quão
perigosa seria quando provocada. E assim o fazia com soberbos requintes de cinismo
e ironia. Paola remexeu-se subitamente no sofá. A felina, apesar da semelhança corporal,
comportava-se contrariamente à ela e talvez quisesse explicitar isso, porque a cada
ato, o animal a olhava de soslaio, intrigante e discretamente debochada, como
se quisesse exibir seu feito. A telespectadora disse algo para si e para a
tela, de onde a pantera, a esta altura, fugia em debandada por ser perseguida
por um possível desafeto. Paola sorria e lamentou quando anunciaram o the end na tela. Levantou-se da
poltrona, girou nos gravetos e foi ao quarto para se trocar, sentindo que
precisava tomar um ar e também algo naquele verão abafado.
O táxi encostou para embarque e o motorista cumprimentou a passageira
que estaria de peruca e óculos escuros, apesar de ser noite. A modelo decidiu
por camuflar-se para evitar assédios de tietes, paparazzis e demais abutres que
desrespeitam o direito de um ser humano faminto ir e vir. Não revelou o destino
ao chofer, mesmo porque não o saberia, dado o desejo de passear a esmo. A
alguns metros, sugeriu ao motorista que a deixasse próximo ao shopping localizado
à Avenida do Contorno, onde gastaria tempo e dinheiro para ocupar o tempo. O
trânsito estava congestionado como sempre naquela região que abrigava bares,
restaurantes e diversas outras opções de lazer e para o desespero da modelo, o
aroma convidativo de carne assada invadiu o veículo, oriundo do restaurante
onde o cartaz anunciava promoção de rodízio para casais. Ela apertou os olhos,
tentando expulsar da memória o paladar adormecido. O motorista que reclamava do
trânsito agora se deliciava com o cheiro da carne, tentado adivinhar qual parte
de qual animal seria. Fez um comentário, e não recebeu retorno da passageira
que dispensava palestras e se contorcia, rogando que lhe poupassem do pecado da
carne pela carne. Não conseguia se concentrar, mesmo porque o intermitente som
de buzina era emitido por outro veículo que pedia a passagem para acessar a
entrada do restaurante. O taxista até
então monologava sobre coisas assadas e, como estaria indiferente à buzina, foi
ultrapassado e o outro condutor, não satisfeito, protestou algo nada agradável
ao companheiro de tráfego. Ainda que não tenha entendido o verbete utilizado
pelo impaciente motorista, a voz pareceu familiar à passageira que
instintivamente abriu os olhos para tentar se acercar do acontecido. O carro,
tendo sucesso na ultrapassagem foi deixado aos cuidados do manobrista após o
casal entregar a chave e uma elegante senhora adentrou as portas do restaurante
acompanhada de espadaúdo mancebo, um tanto mais jovem que ela. Imediatamente
Paola informou ao motorista que ali ficaria e, mal aguardando o condutor
procurar acostamento, desembarcou, sem se preocupar com as normas de trânsito e
deixando uma quantia desproporcionalmente superior ao serviço. Em poucos passos
estava ao pé da escada. A lufada de aromas assados a deixou ainda mais tonta, que
foi preciso o recepcionista se precipitar e segurá-la por ter percebido um
cambalear com algum risco de queda.
-Boa noite... A senhora tem reserva?
-Não. Inclusive, não pretendo demorar por aqui.
-Tudo bem. Temos mesas vagas naquela direção. Por favor...
– conduziu o empertigado recepcionista. Um tanto espantado com a magricela
cliente, indicou o assento, mantendo respeitada distância e aproveitando para
avaliar, ainda que discretamente, seu corpo que seguia em frente. Fixou nas nádegas e desaprovou mentalmente a
ausência de carnes em moça tão bonita.
Já acomodada, ela solicitou água tônica diet e apoderou-se do cardápio, para
assim observar, sem ser
observada, mal se dando conta de que estaria camuflada. Sacudiu os ossos na
cadeira quando reconheceu, a três mesas de distância a promoter, a chefe, a Bia, sorridente, ao lado de um
Apolo, lindo e não menos sorridente acompanhado-a. Sentiu vertigens e tentava,
em vão, desacreditar que aquele homem, vistoso homem, era o mesmo que ela
esperava em seu apartamento. Sim... Ele mesmo, que não fora vê-la hoje e
tampouco nos últimos dias... Alfredo, menino, bonito... Atracado com a Bia!
Aquela voz que agredira o taxista... Desviou o olhar para as paredes,
sentindo-lhe as tripas brigarem por carne. Tomada pelo ódio e lampejos de
delírio, viu emergir, dos quadros decorativos, enormes bocas acusando-a de
ingênua, gargalhando à traição exposta. Dedos saltavam dos quadros, hirtos,
indicando o casal leviano e olhos arregalados, miravam na, como se a
censurassem pela inação...
Seguiu a espreita, presenciando afagos indiscretos para o
local, beijos e até mãos passeando sob o pano que cobria a mesa. Garçons
rodopiavam, como anjos, em volta do envolvido casal, portando recheados espetos
como se harpas fossem, vez ou outra detendo se, cortesmente, para deslizar
suavemente as facas nas carnes espetadas, e estas pareciam cantar, dolentes,
enquanto caíam prontas e suculentas nos pratos, e ali permaneciam, como
oferendas, tal qual um ritual. Os pombinhos portavam-se, como serpentes fossem,
absorvendo amontoado de coraçõezinhos, picanhas, cupins, rãs, capivaras, enfim,
toda a fauna, sem pecado e, absolutamente, sem juízo. Paola testemunhava o
sangue que escorria pela boca da empresária. Viu quando a língua bifurcada
descreveu um semicírculo e envolveu todo o lábio pintado, feito um descarado
palhaço, retendo o líquido escarlate com tanta eficiência que causou rebuliço
na cadeira do acompanhante. A modelo teve que assumir que sua personal novamente estaria certa. Saberia lidar
com namorados ciumentos e Alfredo talvez merecesse uma banana. Quis chorar, mas
não só lhe faltava forças como as mudanças que sofrera, intensas e incisivas,
em alguma parte deflorara a ingênua menina do interior. Ergueu de novo os olhos
sobre o cardápio. Sacudiu a cabeleira para tentar expulsar o que via. Varias
panteras cor de rosa, idênticas, assumiam o posto antes atribuído aos garçons,
desfilavam, cada qual com seu espeto de carne assada. Vez por outra uma elas estancava
para servir a mesa dos amantes e, mesmo à distância, lançava o felino olhar
para a modelo, como se questionasse acerca da reação desta, porque ali estava,
a servir e abundância o que lhe era terminantemente proibido. A felina a
desafiava com mesmo olhar de soslaio, de irônico mistério.
-Senhora? –disse o garçom, visivelmente preocupado com a
estranheza da cliente - deseja degustar algo?
- Não, obrigada... - Se recompôs a outra, com certa
confusão, modulando o tom de voz- Receio perder o apetite...
- Como quiser, esteja a gosto. –retirou se cortesmente o
atendente- convencido de que atendera a mais uma, rica e louca, da metrópole.
A água não foi sequer sorvida. Paola ergueu-se da mesa,
pagando diretamente ao garçom como fez com o chofer. Não poderia, em hipótese
alguma, se atrasar.
Bia entrou no elevador, abanando-se. Estaria exausta devido
à nababesca noite anterior. Não fosse o
chamado de sua modelo, que insistiu em vê-la, alegando urgência, teria ficado inerte
em seu aconchegante puff, espreguiçada e curtindo a ressaca e os aromas do
amor. A porta se abriu ao chamado, e a visita espantou-se com o a penumbra
presente na sala. À meia luz, admirou-se ao ver a mesa educadamente arranjada,
com toalhas rendadas e um castiçal bem ao centro. “Haveria jantar? -intuiu -Tomara
que essa menina tonta não me venha com surpresas, hoje não estou para essas
mesuras!”.
- Que foi, meu anjo? Chamou-me assim, de supetão... Fiquei
preocupada!
Paola estava envolta em avental, indumentária nunca então
vista por Bia. Ainda que em aparentes atividades culinárias, a promotora
estranhou na maquiagem bem feita e as unhas de um vermelho vivo. Não se sentiu
à vontade. Sua pombinha de ouro, cozinhando? A referida pomba a tranqüilizou
alegando saudades. Queixava-se de que se sentia abandonada por ela, pelo
namorado, sentindo-se solitária e carente! Até não durmo como antigamente. Como
se não bastasse, sou assaltada por pesadelos, acredita? Ontem mesmo, sonhei que
um jovem leão abatia uma vaca e eu assistia a tudo! Pode isso?!? - arregalou os
olhos que imprimiam um brilho não muito habitual. A outra se assustou com a
face magra da cozinheira -E o mais estranho é que a vaca, apesar de vítima,
sorria, a medida que seu sangue escorria pela mandíbula do predador. Eu acordei
suada, tomei goles de água gelada e voltei a dormir. E não é que os malditos
sonhos voltaram? Estava eu em um jardim lindo, parecia o paraíso, e fiquei
apavorada quando vi um bezerrinho, tão jovem pastando e o pobre, sem chance de
defesa, foi atacado pela serpente!
-Cruzes! -, apavorou-se Bia. Pressentiu que a moça estaria
realmente esquisita. Talvez fosse prudente rever a dieta e estipular um
descanso - O Alfredo não tem aparecido? -tentou remediar, teatralmente... - Eu
não te disse? Eu conheço os homens! E
esse arranjo todo?- desviou o olhar apontando os cílios para a sala decorada -
Está cozinhando para o amado?
Ela confirmou. Ao ser indagada sobre o prato, limitou-se a
dizer que seria um velho prato apreciado pelo rapaz.
Pimentões e cebolas aguardavam, sobre a tábua, o inevitável
corte. Paola apanhou a faca de carnes dentro da gaveta e escolheu uma cebola, a
qual ao primeiro golpe, escorregou de sua inexperiente mão culinária. Raios de
sol invadiam a janela, despedindo-se da tarde, e defrontavam com o instrumento
cortante, distribuindo ramificações luminosas pela cozinha.
- Permita-me- disse, solícita, a caça talentos,
inclinando-se para apanhar o legume que se aninhara entre os pés da modelo.
Assustou-se, porém, quando visualizou um par de canelas de causar inveja a
flamingos. Calçavam o pé magro de unhas engenhosamente pintadas de vermelho, um
salto negro feito a graúna. Bia ficou por entender a vestimenta requintada e de
cores marcantes, para momento tão doméstico. Certamente teria que auxiliar a
menina nas tarefas, tão desajeitada a via. Lamentou-se para si, já que não
tencionava se demorar na visita.
Às vinte horas ele chegou. Pontual, cheiroso, lindo e ainda
sorridente. Beijou a anfitriã como se desculpasse das ausências e foi logo
apoderar-se do espelho para certificar que o jeans se ajeitara no corpo
atlético. O reflexo confirmou. Ajeitou os cabelos e foi ter com a namorada,
abraçando-a por trás e aspirando-lhe o pescoço lânguido como o de uma girafa.
- O que é isso, amor? Que surpresa! Um jantar? Você nunca
me disse sobre seus dotes culinários - brincou, beliscando-lhe a nádega - Tá
querendo me agarrar pelo estômago, hein? –prosseguiu, tateando o escasso
traseiro da pequena. Amorzinho, precisa novamente pegar uma carninha, rechear
as coisas...
.
Ela apenas sorriu um sorriso de passarela e o acomodou ao
topo da mesa para finalizar o projeto. Acendeu o candeeiro e foi buscar os
pratos. Um tênue chama se impôs no local, tornando a penumbra ainda mais
atraente. Algo de volúpia e um cheiro de pecado vestiam o ambiente. Menu
servido, tampas removidas e agradável aroma tornou a sala um tanto quanto
afrodisíaca. Conversaram amenidades ele estaria bem humorado como se tivesse
cruzado com algum passarinho verde, conforme ditado de sua terra. Aspirou o ar
tentando identificar o prato
- Hum... –suspirou, sentindo que teria que se reforçar, afinal,
a noite última fizera plantão. Esfregou as mãos uma à outra – É hoje que eu
morro...
Paola achou divertida a originalidade do companheiro. O
outro riu também, convencido de ter contado uma anedota à ingênua. Serviu-se da
bebida escura que lhe fora ofertada, não a identificando, embora tenha lançando
uma piscadela já conhecida à anfitriã, prometendo festa iminente. À primeira
garfada, o garanhão fechou os olhos e expressou prazer. Indagou sobre a
iguaria. Algo agridoce, picante. Vísceras? Sarapatéu? O guisado estava
caudaloso, e a penumbra dificultava a análise - Entretanto, sentia-o saboroso, um
tanto rançoso, na verdade, e levemente adocicado.
- O que é querida? Conte... – Sorriu.
-Não tá reconhecendo? Vocês homens... – ironizava a autora,
servindo mais uma porção ao amado - comem por instinto e, depois de saciados,
são incapazes de identificar ao menos o que foi lhes servido.
- Fígado de galinha - arriscou, confiante.
- Quase... Está quente...
- Não vai comer? Inquiriu o faminto
- Quero deixar esfriar um pouco... Esse tipo de prato deve
ser apreciar bem frio...
Ele, como de costume, ignorou suas palavras e continuaram a
brincadeira de adivinhação, tendo o convidado cantando uma ciranda de opções,
de temperaturas quentes, fervendo e frias... Todos os miúdos comumente
degustados desfilaram nas tentativas. Errou a todos. Resolveu, por fim, apelar
para os mais regionais, chegando a ferver quando citou rabada bovina. Desistiu
então da divertida brincadeira, alegando que o que realmente importa é comer, e
deu cabo de mais um prato da incógnita refeição. Suas mandíbulas fizeram o
trabalho em menos de uma hora que não teria sido feito em uma ano naquele
apartamento. Comeu à maneira de padre imune ao pecado da gula. Bebeu feito um
pagão. Saciado, procurou recompensar aquela que lhe alimentava, dizendo
gracejos apaixonados e colhendo, com certa facilidade, o mirrado corpo para
levá-lo ao quarto.
A cama estava coberta com lençol tão vermelho que dominava
as demais cores do quarto. Ele sentiu um torpor. Sobre a cabeceira, uma rosa príncipe
negro repousava entre os travesseiros de renda também escarlates e com detalhes em preto. Novamente o torpor e Alfredo
procurou algo para se apoiar. Perdia gradativamente os sentidos, chegando a
supor que exagerara em alguma
coisa. Teve que abandonar o feixe
de ossos que mal conduzia quando sentiu que a respiração o deixava, era como
seu um ser o devorasse por dentro, partindo do estômago e talvez quisesse sair
de seu corpo ficando entalado, portanto na garganta. Suas majestosas pernas se
confundiam. Olhou para a namorada, a qual retribuiu com o olhar entre doce e
felino, alertando que nem todas as rosas tem a mesma cor. Talvez ele decifrasse
o olhar da namorada narrando tudo que vira na véspera... Talvez fosse apenas os
efeitos colaterais de quem tenha mordido a única fruta permitida naquela casa. Enfim,
ensaiou desajeitado passo e seu monumental corpo desabou, pesado, sobre o
colchão, estressando a espuma e atrapalhando todo o arranjo. A rosa, lançada
pelo impacto, veio cair aos pés da manequim, a qual a capturou pela boca,
mantendo-a presa pelo galho, entre os dentes, a despeito dos espinhos.
Paola voltou à sala de televisão, provocando feixes
iluminados em toda a sala ao ligar o aparelho de televisão. Procurava debalde o
programa que assistira na noite anterior, ansiando em rever a face da
enigmática pantera e compartilhar com a felina a sua peripécia, além de
agradecê-la pela deixa. Não localizando, ponderou que precisava descansar. Cruzou
a sala e o espelho a convidou. Continuava impecável no vestido preto, examinou
as unhas vermelhas e o salto agulha. As palavras de Bia repicavam em sua mente
“Ainda vão falar muito de você, darling!”. Bia danada... Sempre com
razão, embora, nas mulheres o sentido não abre mão de seu lugar. O espelho
sorriu-lhe. Realmente era ela a mais bela! Caminhou, afinal, para o merecido e
necessário repouso. Amanhã seria um dia longo e talvez precisasse de uma
advogada.
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