Adão e Eva
_Boa noite, senhora. O documento do veículo e habilitação,
por gentileza? – inquiriu o policial, segundos após soar o apito e indicar a
contenção para estacionamento do veículo. A autoridade
empunhava uma lanterna para auxiliar a vistoria, embora a iluminação da Avenida
Afonso Pena dispensasse o acessório. Com explícita simpatia e sedutor sorriso,
a condutora respondeu ao comprimento e entregou-lhe a documentação solicitada,
aproveitando do manuseio da bolsa para apanhar o estojo e retocar a maquiagem.
Ajeitou-se na poltrona, promovendo a exibição de um par de coxas
cinematográfico, mal contido na justa saia, o que causou dificuldades ao
policial em manter a compostura. Pigarreou o agente, tentando desviar os olhos
que teimavam em manter desviados à parte do corpo à mostra, e suas mãos tremiam ao recolher os documentos
requeridos, ainda porque momentaneamente se esquecera de qual seria seu objetivo naquele momento. O nervosismo do agente, entretanto, aumentou ao validar a
habilitação. Mal, muito mal, disfarçou o sobressalto:
_Eh.. Hum... Pre-preciso também de sua identidade, senhora...
A inquirida, ocupada em ajeitar os cabelos com auxilio do retrovisor interno, abandonou ao
painel a escova e novamente tateou a bolsa, até enfim localizar o outro
documento. Enquanto isso, o militar prosseguia em sua avaliação, não apenas ao
veículo, conforme se esperava. “Muita mulher isso... –maquinava- Pernões,
peitões... Que mãos! Grandes, na verdade, mas tão bem talhadas! Que boca é esta?”.
Procurou concentrar-se. Empertigou-se: “Temperança, Cabo Adão. Temperança!”. Removia-se por dentro da farda. Coçou a sobrancelha. No dedo angular sentiu o arder da aliança que lhe parecia apertar com um cinto de silício. Veio-lhe à mente a esposa, de punhos cerrados, excomungado a motorista infratora da família e que deveria ser impiedosamente castigada com gravíssimas multas, sendo também o seu pecaminoso veículo, recolhido por ato de crime de trânsito.
Procurou concentrar-se. Empertigou-se: “Temperança, Cabo Adão. Temperança!”. Removia-se por dentro da farda. Coçou a sobrancelha. No dedo angular sentiu o arder da aliança que lhe parecia apertar com um cinto de silício. Veio-lhe à mente a esposa, de punhos cerrados, excomungado a motorista infratora da família e que deveria ser impiedosamente castigada com gravíssimas multas, sendo também o seu pecaminoso veículo, recolhido por ato de crime de trânsito.
- Aqui... A identidade, meu bem.
A voz oscilava entre rouca e estéreo, como se forçada e o pescoço delgado
exibia indiscreto pomo de Adão, o qual subia e descia como compasso de
garganta. Desperto do devaneio, a autoridade buscou averiguar o outro documento,
novamente surpreso. Mirava a motorista e relia a identificação, alternada e
repetidamente. Comparava, meditava. Por fim, balbuciou:
__ Pe...Perdoe-me senhora. Acho que se enganou.
Eu preciso é de sua carteira de identidade, ou seja, o “RG” e, ao que parece
entregou o de outra pessoa, talvez de seu marido.
Ela sorriu, mostrando os mais brancos e delineados dentes
já vistos pelo policial.
__ Não há engano algum, querido... - tentou identificar a
credencial do policial, que exibia a patente de cabo e provavelmente o
sobrenome Soares - São os meus documentos, sim senhor.
Tendo argumentado, a condutora interrompeu o motor e
removeu o cinto de segurança, preparando para deixar o veículo com leve
impaciência. Posicionou-se frente ao policial, substanciosa, como se provocasse
enorme sombra e obstruisse o homem da lei– Querido, o que há de errado com meus
documentos? Veja aqui na habilitação, meu bem: João Carlos Valadão. Confere?
Ora, no documento do carro e na carteira de identidade o mesmo nome, certo? O
que mais tenho que apresentar ao senhor?- Girou, inclinando-se sobre a porta
para retirar algo do banco. Segundos depois um leque era agitado
freneticamente, movimentando a cabeleira loura e volumosa.
_Perdão... Então a senhora é... O senhor João?
_Ora, meu bem... Registrado e lavrado na comarca de Belo
Horizonte! A propósito, pode me chamar de Eva, que prefiro, e certamente
facilitaria nossa conversa. Dúvidas? – Indagou, cravando-lhe os imensos cílios.
Todas as dúvidas possíveis para o cabo que custava a crer
em um João tão curvilíneo e recheado de carnes, com vistosas e sedosas madeixas deslizantes sobre o dorso, formando cachos de invejar inúmeras Marias.
Os pés não eram pequenos, vá lá, embora as unhas ornavam-no, repousando sobre imponentes saltos. Seria difícil aceitar que tinham algo -certamente em
diferentes dimensões- em comum. Outros militares da equipe aproximaram-se feito
hienas, melindrosas, porém atraídas pela caça. Ignoraram por completo o veículo
que já se delongava na inspeção para diligenciarem a condutora, com indiscreta
precisão.
_Positivo equipe. Já vou liberar o carro. Documentos e
licenças em ordem. Pode prosseguir o trajeto, senhor... João!, Perdão! Eva...Claro, Eva!. Boa viagem para o... a... Senhora... - finalizou o Cabo Adão Soares, tentando acalmar os ânimos da infantaria, além do próprio. Suava a
cântaros e ainda observava, confuso, ele ou ela que entrou no carro,
deixando um rastro de perfume no ar. Ali permaneceu o agente, apito na mão, sem qualquer barulho, a mínima ação, como se a interpelada houvesse lhe arrancado uma de suas
costelas e comprometesse para a eternidade a sua viril autoridade. Houve a
dispersão e o motor foi acionado. A motorista ajustou as luzes, ajeitou o
retrovisor, conferindo novamente a pintura do rosto. Enfim, partiu. Linda, loura
e habilitada.
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