terça-feira, 10 de novembro de 2015

Adão e Eva

Adão e Eva

_Boa noite, senhora. O documento do veículo e habilitação, por gentileza? – inquiriu o policial, segundos após soar o apito e indicar a contenção para estacionamento do veículo. A autoridade empunhava uma lanterna para auxiliar a vistoria, embora a iluminação da Avenida Afonso Pena dispensasse o acessório. Com explícita simpatia e sedutor sorriso, a condutora respondeu ao comprimento e entregou-lhe a documentação solicitada, aproveitando do manuseio da bolsa para apanhar o estojo e retocar a maquiagem. Ajeitou-se na poltrona, promovendo a exibição de um par de coxas cinematográfico, mal contido na justa saia, o que causou dificuldades ao policial em manter a compostura. Pigarreou o agente, tentando desviar os olhos que teimavam em manter desviados à parte do corpo à mostra, e suas mãos tremiam ao recolher os documentos requeridos, ainda porque momentaneamente se esquecera de qual seria seu objetivo naquele momento. O nervosismo do agente, entretanto, aumentou ao validar a habilitação. Mal, muito mal, disfarçou o sobressalto:

_Eh.. Hum... Pre-preciso também de sua identidade, senhora...

A inquirida, ocupada em ajeitar os cabelos com auxilio do retrovisor interno, abandonou ao painel a escova e novamente tateou a bolsa, até enfim localizar o outro documento. Enquanto isso, o militar prosseguia em sua avaliação, não apenas ao veículo, conforme se esperava. “Muita mulher isso... –maquinava- Pernões, peitões... Que mãos! Grandes, na verdade, mas tão bem talhadas! Que boca é esta?”. 
Procurou concentrar-se. Empertigou-se: “Temperança, Cabo Adão. Temperança!”. Removia-se por dentro da farda. Coçou a sobrancelha. No dedo angular sentiu o arder da aliança que lhe parecia apertar com um cinto de silício. Veio-lhe à mente a esposa, de punhos cerrados, excomungado a motorista infratora da família e que deveria ser impiedosamente castigada com gravíssimas multas, sendo também o seu pecaminoso veículo, recolhido por ato de crime de trânsito.

- Aqui... A identidade, meu bem.

A voz oscilava entre rouca e estéreo, como se forçada e o pescoço delgado exibia indiscreto pomo de Adão, o qual subia e descia como compasso de garganta. Desperto do devaneio, a autoridade buscou averiguar o outro documento, novamente surpreso. Mirava a motorista e relia a identificação, alternada e repetidamente. Comparava, meditava. Por fim, balbuciou:

__ Pe...Perdoe-me senhora. Acho que se enganou. Eu preciso é de sua carteira de identidade, ou seja, o “RG” e, ao que parece entregou o de outra pessoa, talvez de seu marido.

Ela sorriu, mostrando os mais brancos e delineados dentes já vistos pelo policial.

__ Não há engano algum, querido... - tentou identificar a credencial do policial, que exibia a patente de cabo e provavelmente o sobrenome Soares - São os meus documentos, sim senhor.

Tendo argumentado, a condutora interrompeu o motor e removeu o cinto de segurança, preparando para deixar o veículo com leve impaciência. Posicionou-se frente ao policial, substanciosa, como se provocasse enorme sombra e obstruisse o homem da lei– Querido, o que há de errado com meus documentos? Veja aqui na habilitação, meu bem: João Carlos Valadão. Confere? Ora, no documento do carro e na carteira de identidade o mesmo nome, certo? O que mais tenho que apresentar ao senhor?- Girou, inclinando-se sobre a porta para retirar algo do banco. Segundos depois um leque era agitado freneticamente, movimentando a cabeleira loura e volumosa.

_Perdão... Então a senhora é... O senhor João?

_Ora, meu bem... Registrado e lavrado na comarca de Belo Horizonte! A propósito, pode me chamar de Eva, que prefiro, e certamente facilitaria nossa conversa. Dúvidas? – Indagou, cravando-lhe os imensos cílios.

Todas as dúvidas possíveis para o cabo que custava a crer em um João tão curvilíneo e recheado de carnes, com vistosas e sedosas madeixas deslizantes sobre o dorso, formando cachos de invejar inúmeras Marias. Os pés não eram pequenos, vá lá, embora as unhas ornavam-no, repousando sobre imponentes saltos. Seria difícil aceitar que tinham algo -certamente em diferentes dimensões- em comum. Outros militares da equipe aproximaram-se feito hienas, melindrosas, porém atraídas pela caça. Ignoraram por completo o veículo que já se delongava na inspeção para diligenciarem a condutora, com indiscreta precisão.

_Positivo equipe. Já vou liberar o carro. Documentos e licenças em ordem. Pode prosseguir o trajeto, senhor...  João!, Perdão! Eva...Claro, Eva!. Boa viagem para o... a... Senhora... - finalizou o Cabo Adão Soares, tentando acalmar os ânimos da infantaria, além do próprio. Suava a cântaros e ainda observava, confuso, ele ou ela que entrou no carro, deixando um rastro de perfume no ar. Ali permaneceu o agente, apito na mão, sem qualquer barulho, a mínima ação, como se a interpelada houvesse lhe arrancado uma de suas costelas e comprometesse para a eternidade a sua viril autoridade. Houve a dispersão e o motor foi acionado. A motorista ajustou as luzes, ajeitou o retrovisor, conferindo novamente a pintura do rosto. Enfim, partiu. Linda, loura e habilitada.



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