terça-feira, 13 de junho de 2017

A Ceia

A Ceia

Ouvi em algum lugar e algum momento que somos escravos de nossos sentidos. Estes, que sempre a tudo se antecipam, formam conceitos, tornando-os por vezes nossa concepção do real um tanto recheados de valores ou deméritos. Não fosse pela agradável aparência, ignoraria talvez aquele restaurante que mantinha à sua porta de entrada graciosa e sorridente atendente, convidando famintos a conhecer o ambiente rústico e requintado. Decidi por ali cear e, assim que transpus a porta, o garçom se apresentou, alinhado em sua camisa branca como a toalha que cobria a mesa. Seus cabelos demonstravam rigor ao penteado e o perfil era um todo disciplina e cortesia. Indicou-me polidamente o assento.

_Boa tarde, o cardápio, senhor. Algo para beber?

_Boa tarde. Por hora, água tônica. Tenho agenda para a tarde e preciso de algo rápido – busquei sugestões enquanto corria o olho nas opções e não percebi que estava falando às paredes, já que o atendente voltara sua atenção a outro cliente que me furtava de seus serviços. 
Com efeito, entendi a preocupação do garçom que se precipitou pra tentar interromper a figura maltrapilha, de irregular cabeleira e grotesca barba, tendo pendurado sobre o ombro puída sacola do pior aspecto possível. O típico andarilho urbano foi entrando sem maiores anúncios do que sua própria figura,  tomando assento à minha mesa, para meu espanto.Ao fundo, a recepcionista da porta indagava com gestos ao garçom, talvez frustrada por não ter conseguido barrá-lo à entrada.

- Senhor... – antecipou afetadamente o garçom, na intenção de indicar ao maltrapilho o local de saída.

- Muito boa tarde, tudo bom? – ouvi como resposta do outro. Sua bocarra movia-se e conduzia junto dela os pelos espessos e disformes do rosto – Oh! Não, meu caro. Hoje não... -continuou ele, para o garçom-Declinarei de entradas... Escusa disso. Por favor, traga-me apenas um bom e fumegante virado, à moda da casa... – discorria, fitando o garçom, com a amabilidade de um dandy. Sua voz soava pausada e tão velada que tornaria imperceptível possível mau hálito. Fiz menção de me retirar e procurar outro local para sentar embora a curiosidade  e expectativa mantivera-me acomodado ali, quase que paralisado e disposto a cear com o cliente. Absorto, decidi por um prato qualquer com algo assado,  talvez o primeiro elencado no cardápio e investi de soslaio a observar o miserável examinar, candidamente, o cardápio. O garçom, demonstrava descontrole.

_Senhor... A duas quadras daqui há outro restaurante, com opções talvez mais adequadas... – indicou, mostrando a direção com o braço, com clara intenção de auxiliar na retirada do cliente.

_Hum... Arroz de carreteiro... – ponderou andarilho que pareceu tão envolvido na leitura do cardápio como se saboreasse um clássico literário. Coçou a fronte para depois marcar com o indicador o prato identificado. Um olho fechou e o outro se elevou, destacando confusas ramificações de cores vermelhas em torno da íris. Num relance, pude observar suas enormes unhas sobre a caderneta- Desejo saborear o mexidão aqi batizado como arroz de carreteiro - ironizou- Traga-o para mim, sim?

Percebi que o desânimo invadia o garçom talvez por sentir que não se livraria do inconveniente e que o embaraço não agradaria à sua gerência e certamente pagaria caro pela desídia. Gotículas de suor brotavam em sua testa diante daquele mendigo, surgido do nada e supostamente provido de nada, conquanto um senhor já cozido; maduro e de um porte majestoso, a guisa das vestes e própria figura. Eu fingia ler o cardápio apesar de já haver escolhido a refeição,  enquanto espionava o minimo ato. A cada gole da bebida tônica aproveitava para lançar o olhar, furtivamente, ao meu companheiro. Validava a sua postura altiva e aristocrática. A cadência de seus atos impunha, em alguma dúvida, certo fascínio. Talvez o serviçal bem gostaria de repugná-lo e seria avalizado apenas pelas vestes do cliente, fatalmente um faminto sem recursos e impróprio para usufruir dos serviços do requintado restaurante, alem de profanar a imagem do local. 

Qual o quê! O farroupilha parecia inspirar-lhe algo como respeito, subserviência e outras atitudes dispensada a algo real, divino e superior. Veio a pergunta quase mecânica:

– Bom... Algo para beber?

_ Vejamos... Gostaria que sugerisse de sua carta, meu bom rapaz. Adianto que nada tão frenético, ousado... Também não muito tímido. Alguma coisa nativa, tocante e sedutora...

Desenhou-se na face do garçom a mais indisfarçada ironia de quem ponderasse se disponibilizava a carta de vinhos ou convidasse a esdrúxulo figura a visitar sua adega.Limitou-se a esticar-lhe novamente o cardápio, deixando claro sua incapacidade em elaborar liquido no perfil descrito pelo outro, o qual não se apressou em analisar o elenco de drinques.

-O que me diz desse?

-“Cachaça”? – Pestanejou o atendente, ainda irônico e um tanto impaciente. Pude perceber o escárnio de um ante a sutileza do outro. Fosse concedida a mim oportunidade, premiaria com gorda gorjeta ao garçom por ter me presenteado com tão fomentada mesa, ainda que testemunhasse seu desarranjo em atender um miserável, sem eira de beira, esmolambado e com ares de nobreza. Mal percebia o garçom que negligenciava aos outros clientes, incluindo-me,  para dedicar-se cegamente ao excêntrico. Seus colegas de trabalho pareciam imitar-lhe, uma vez que aos poucos abandonavam afazeres para indagarem, apreensivos, possivelmente apostando em atitudes, ou ausência destas, que o colega de trabalho tomaria. Pratos jaziam à espera dos seus condutores. Menus eram incorretamente servidos para desespero dos famintos. O caos gastronômico anunciava-se.

O garçom retornava com a bebida definida, e o percurso do balcão à mesa foi seguido por diversos e curiosos olhares. Até a cozinheira, que provavelmente desconhecia o meu pedido, trouxe seus enormes peitos para o salão, ansiosa em testemunhar também tão famoso cliente. Este, entretinha-se na leitura de um volume ensebado, que tentei em vão identificar título e autor. Em suas pernas cruzadas sobre a cadeira, chinelas capengas e desbeiçadas mal lhe protegiam os calcanhares rachados. O destilado servido à mesa anunciou seu regional aroma no local e, talvez embriagados pelo olfato, percebia-se o elevar dos rumores e um ou outro abafado riso.

O cliente interrompeu sua leitura para sorveu um pequeno trago. Ao gole, comprimiu os lábios, contraindo-os entre a língua. Como em êxtase, fechou vagarosamente os olhos. Expirou. Por fim, meneou leve e positivamente a cabeça, aprovando a bebida. Confesso que fiquei tentado a brindar com o companheiro, em outra dose.

- Um néctar! Um néctar! - Dizia, enquanto o copo lagoinha enchia-se novamente. – Agora, por gentileza, traga boa água, dessas que só as nossas fecundas minas conseguem parir...

-Com gás ou sem gás- tornou impacientemente o garçom, afastado-e sem aguardar reposta.

Vieram enfim os pratos quentes e houve tanto o requinte do companheiro ao fazer a refeição que julguei impossível haver alguém no entorno de atributos tão nobres. Todo o restaurante se convergiu à fatídica mesa. O universo parecia observar o talher dançando no ar em sacros movimentos e passeando alternadamente do prato à boca murcha e desdentada a quem servia. O garfo fazia-se esquecer de sua grotesca forma, deixando em seu movimento um rastro aurífero, imitado pela faca que ziguezagueava no corpo do prato leitoso. Vez por outra, o líquido condensado e claro umedecia os lábios ressecados, sendo sequenciado pelo guardanapo que, o outrora alvo, buscava secá-los.

Findado o banquete o cliente indagou sobre as despesas, e senti que presenciaria o momento crucial. Abandonado pela fome, meu prato permaneceu intocável sobre a mesa.

- Não se preocupe, Sr – disse, encabulado que estava, o garçom. Espantou-se com a própria reação e certamente perderia o gorjeta destinada  à equipe.

- Ora, meu bom rapaz, não me faça embaraços... – atalhou o outro mirando o garçom, enquanto removia cédulas amassadas e velhas. – Está certo e a contento! – procurava o interlocutor, buscando a confirmação, e, como não houve resposta e sim a paralisação de seu atendente, acomodou os valores sob o cardápio. Fez uma mesura, balbuciou algo e levantou-se com a mesma leveza e graça com a qual se apoderou da mesa, dirigindo-se à saída com todos os olhos possíveis direcionados a si. Talvez o único ser animado que se movia naquele lugar. Seus passos, harmoniosos e precisos pareciam flutuarem sobre o piso e sua figura, tão logo ultrapassou a porta de saída foi tornando-se distante até desparecer por completo. 

Entre o mosaico de eventos notei que, apesar de ter sido sua companhia em minha mesa, fiel telespectador, o maltrapilho não dirigiu a mim sequer um olhar e todo o seu relacionamento se deu com o garçom. Apressei-me em quitar minhas despesas para tentar segui-lo e não tive sucesso. Gostaria de almoçar mais vezes consigo e tentar ouvir sua prosa atraente de modo que sigo procurando-o em viadutos ou passeios próximos a igrejas, onde possivelmente estaria sentado com os pés esticados, tendo entre as pernas a cuia, para que moedas lá tilintassem e aliviasse os olhos e consciência quem as atiravam.









Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por visitar meu blog. Deixe aqui seu comentário...