A Ceia
Ouvi em algum lugar e algum momento que somos
escravos de nossos sentidos. Estes, que sempre a tudo se antecipam, formam conceitos, tornando-os por vezes nossa concepção do real um tanto recheados
de valores ou deméritos. Não fosse pela agradável aparência, ignoraria talvez aquele restaurante que mantinha à sua porta de entrada graciosa e sorridente atendente, convidando famintos a conhecer o ambiente rústico e requintado. Decidi
por ali cear e, assim que transpus a porta, o garçom se apresentou, alinhado em
sua camisa branca como a toalha que cobria a mesa. Seus cabelos demonstravam
rigor ao penteado e o perfil era um todo disciplina e cortesia. Indicou-me
polidamente o assento.
_Boa tarde, o cardápio, senhor. Algo para beber?
_Boa tarde. Por hora, água tônica. Tenho agenda
para a tarde e preciso de algo rápido – busquei sugestões enquanto corria o
olho nas opções e não percebi que estava falando às paredes, já que o atendente
voltara sua atenção a outro cliente que me furtava de seus serviços.
Com efeito, entendi a preocupação do garçom que se
precipitou pra tentar interromper a figura maltrapilha, de irregular cabeleira
e grotesca barba, tendo pendurado sobre o ombro puída sacola do pior aspecto possível. O típico andarilho urbano foi entrando sem maiores anúncios do que sua própria figura, tomando assento à minha mesa, para meu espanto.Ao fundo, a recepcionista da porta indagava com gestos ao garçom, talvez frustrada por não ter conseguido barrá-lo à entrada.
- Senhor... – antecipou afetadamente o garçom, na
intenção de indicar ao maltrapilho o local de saída.
- Muito boa tarde, tudo bom? – ouvi como
resposta do outro. Sua bocarra movia-se e conduzia junto dela os pelos espessos e disformes
do rosto – Oh! Não, meu caro. Hoje não... -continuou ele, para o garçom-Declinarei de entradas... Escusa
disso. Por favor, traga-me apenas um bom e fumegante virado, à moda da casa...
– discorria, fitando o garçom, com a amabilidade de um dandy. Sua voz
soava pausada e tão velada que tornaria imperceptível possível mau hálito. Fiz menção
de me retirar e procurar outro local para sentar embora a curiosidade e expectativa mantivera-me acomodado ali,
quase que paralisado e disposto a cear com o cliente. Absorto, decidi por um
prato qualquer com algo assado, talvez
o primeiro elencado no cardápio e investi de soslaio a observar o miserável
examinar, candidamente, o cardápio. O garçom, demonstrava descontrole.
_Senhor... A duas quadras daqui há outro
restaurante, com opções talvez mais adequadas... – indicou, mostrando a direção
com o braço, com clara intenção de auxiliar na retirada do cliente.
_Hum... Arroz de carreteiro... – ponderou
andarilho que pareceu tão envolvido na leitura do cardápio como se saboreasse
um clássico literário. Coçou a fronte para depois marcar com o indicador o
prato identificado. Um olho fechou e o outro se elevou, destacando confusas
ramificações de cores vermelhas em torno da íris. Num relance, pude observar suas enormes
unhas sobre a caderneta- Desejo saborear o mexidão aqi batizado como arroz de carreteiro - ironizou- Traga-o para mim, sim?
Percebi que o desânimo invadia o garçom talvez por
sentir que não se livraria do inconveniente e que o embaraço não agradaria à sua
gerência e certamente pagaria caro pela desídia. Gotículas de suor brotavam em
sua testa diante daquele mendigo, surgido do nada e supostamente provido de nada, conquanto um senhor já cozido; maduro e de um porte majestoso, a guisa das vestes e própria figura. Eu
fingia ler o cardápio apesar de já haver escolhido a refeição, enquanto
espionava o minimo ato. A cada gole da bebida tônica aproveitava para lançar o olhar, furtivamente, ao
meu companheiro. Validava a sua postura altiva e aristocrática. A cadência de
seus atos impunha, em alguma dúvida, certo fascínio. Talvez o serviçal bem gostaria de repugná-lo
e seria avalizado apenas pelas vestes do cliente, fatalmente um faminto sem recursos
e impróprio para usufruir dos serviços do requintado restaurante, alem de profanar a imagem do local.
Qual o quê! O farroupilha parecia inspirar-lhe algo como respeito, subserviência e outras atitudes dispensada a algo real, divino e superior. Veio a pergunta quase mecânica:
Qual o quê! O farroupilha parecia inspirar-lhe algo como respeito, subserviência e outras atitudes dispensada a algo real, divino e superior. Veio a pergunta quase mecânica:
– Bom... Algo para beber?
_ Vejamos... Gostaria que sugerisse de sua carta, meu bom rapaz.
Adianto que nada tão frenético, ousado... Também não muito tímido. Alguma coisa
nativa, tocante e sedutora...
Desenhou-se na face do garçom a mais indisfarçada
ironia de quem ponderasse se disponibilizava a carta de vinhos ou convidasse a
esdrúxulo figura a visitar sua adega.Limitou-se a esticar-lhe novamente o cardápio,
deixando claro sua incapacidade em elaborar liquido no perfil descrito pelo outro,
o qual não se apressou em analisar o elenco de drinques.
-O que me diz desse?
-“Cachaça”? – Pestanejou o atendente, ainda irônico
e um tanto impaciente. Pude perceber o escárnio de um ante a sutileza do outro. Fosse concedida a mim oportunidade, premiaria com gorda gorjeta ao garçom por
ter me presenteado com tão fomentada mesa, ainda que testemunhasse seu
desarranjo em atender um miserável, sem eira de beira, esmolambado e com ares
de nobreza. Mal percebia o garçom que negligenciava aos outros clientes,
incluindo-me, para dedicar-se cegamente ao excêntrico. Seus colegas de
trabalho pareciam imitar-lhe, uma vez que aos poucos abandonavam afazeres para
indagarem, apreensivos, possivelmente apostando em atitudes, ou
ausência destas, que o colega de trabalho tomaria. Pratos jaziam à espera dos
seus condutores. Menus eram incorretamente servidos para desespero dos
famintos. O caos gastronômico anunciava-se.
O garçom retornava com a bebida definida, e o percurso do balcão à mesa foi seguido por diversos e curiosos olhares.
Até a cozinheira, que provavelmente desconhecia o meu pedido, trouxe seus
enormes peitos para o salão, ansiosa em testemunhar também tão famoso cliente.
Este, entretinha-se na leitura de um volume ensebado, que tentei em vão
identificar título e autor. Em suas pernas cruzadas sobre a cadeira, chinelas
capengas e desbeiçadas mal lhe protegiam os calcanhares rachados. O destilado servido à mesa anunciou seu regional aroma no local e, talvez embriagados pelo olfato,
percebia-se o elevar dos rumores e um ou outro abafado riso.
O cliente interrompeu sua leitura para sorveu um pequeno trago. Ao gole, comprimiu
os lábios, contraindo-os entre a língua. Como em êxtase, fechou vagarosamente
os olhos. Expirou. Por fim, meneou leve e positivamente a cabeça, aprovando a
bebida. Confesso que fiquei tentado a brindar com o companheiro, em outra dose.
- Um néctar! Um néctar! - Dizia, enquanto o copo
lagoinha enchia-se novamente. – Agora, por gentileza, traga boa água, dessas que só as
nossas fecundas minas conseguem parir...
-Com gás ou sem gás- tornou impacientemente o garçom, afastado-e sem aguardar reposta.
-Com gás ou sem gás- tornou impacientemente o garçom, afastado-e sem aguardar reposta.
Vieram enfim os pratos quentes e houve tanto o requinte do companheiro ao fazer a refeição que julguei impossível haver alguém no entorno de atributos tão
nobres. Todo o restaurante se convergiu à fatídica mesa. O universo parecia
observar o talher dançando no ar em sacros movimentos e passeando alternadamente
do prato à boca murcha e desdentada a quem servia. O garfo fazia-se esquecer de
sua grotesca forma, deixando em seu movimento um rastro aurífero, imitado pela
faca que ziguezagueava no corpo do prato leitoso. Vez por outra, o líquido
condensado e claro umedecia os lábios ressecados, sendo sequenciado pelo
guardanapo que, o outrora alvo, buscava secá-los.
Findado o banquete o cliente indagou sobre as
despesas, e senti que presenciaria o momento crucial. Abandonado pela fome, meu
prato permaneceu intocável sobre a mesa.
- Não se preocupe, Sr – disse, encabulado que
estava, o garçom. Espantou-se com a própria reação e certamente perderia o gorjeta destinada à equipe.
- Ora, meu bom rapaz, não me faça embaraços... –
atalhou o outro mirando o garçom, enquanto removia cédulas amassadas e velhas. – Está certo e a
contento! – procurava o interlocutor, buscando a confirmação, e, como não houve
resposta e sim a paralisação de seu atendente, acomodou os valores sob o
cardápio. Fez uma mesura, balbuciou algo e levantou-se com a mesma leveza e
graça com a qual se apoderou da mesa, dirigindo-se à saída com todos os olhos
possíveis direcionados a si. Talvez o único ser animado que se movia naquele
lugar. Seus passos, harmoniosos e precisos pareciam flutuarem sobre o piso e sua
figura, tão logo ultrapassou a porta de saída foi tornando-se distante até
desparecer por completo.
Entre o mosaico de eventos notei que, apesar de ter sido sua companhia em minha mesa, fiel telespectador, o maltrapilho não dirigiu a mim sequer um olhar e todo o seu relacionamento se deu com o garçom. Apressei-me em quitar minhas despesas para tentar segui-lo e não tive sucesso. Gostaria de almoçar mais vezes consigo e tentar ouvir sua prosa atraente de modo que sigo procurando-o em viadutos ou passeios próximos a igrejas, onde possivelmente estaria sentado com os pés esticados, tendo entre as pernas a cuia, para que moedas lá tilintassem e aliviasse os olhos e consciência quem as atiravam.
Entre o mosaico de eventos notei que, apesar de ter sido sua companhia em minha mesa, fiel telespectador, o maltrapilho não dirigiu a mim sequer um olhar e todo o seu relacionamento se deu com o garçom. Apressei-me em quitar minhas despesas para tentar segui-lo e não tive sucesso. Gostaria de almoçar mais vezes consigo e tentar ouvir sua prosa atraente de modo que sigo procurando-o em viadutos ou passeios próximos a igrejas, onde possivelmente estaria sentado com os pés esticados, tendo entre as pernas a cuia, para que moedas lá tilintassem e aliviasse os olhos e consciência quem as atiravam.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por visitar meu blog. Deixe aqui seu comentário...