terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Criança Bomba

Premiação Concurso Crônicas Carlos Heitor Cony, Publicação Uberlândia, MG, 2007


 - Mamãe morava aqui, Mariana.... – Disse a mãe, saudosa, apontando com o indicador o imenso prédio que imperava atrás da calçada larga, limpa, com paralelepípedos brancos contornando outros de cor escura, onde se projetava o nome do edifício. A vista do prédio invadia os olhos negros e curiosos  da pequena Mariana

 - Nossa! - Espantou-se a pequena -  nessa casa tão grande?

- Não! - a melancolia de Ana deu vazão a um discreto sorriso, diante da inocência de sua criança – a nossa casa era bem pequenininha, menor que aquela onde moramos, na vila. Tinha outras casas aqui também, que foram compradas para construir esse shopping. Sabe a Tia Cecília? – tornou, na intenção de ficar mais compreensível à pequena, a qual fixava os olhos nos seus, ouvindo com atenção – Então! Ela também morou numa casa aqui atrás da nossa, e várias outras pessoas que não sei que fim levaram viveram aqui com a gente. Nunca me esqueço – novamente saudosa, deixou escapar um suspiro – era tão bom aqui, minha filha! Sentia-me livre, podíamos plantar, ter criação...

Mariana contava já com onze anos e lembrava-se vagamente do passado relatado pela mãe. Sabia também que a mãe trabalhava como faxineira na casa de um senhor, que viria a ser o diretor daquele shopping, conforme a própria mãe o revelara durante o trajeto. Estava ansiosa em ver o patrão de sua mãe e já imaginava um senhor alto forte, porém muito sério, que dava à sua mãe o dinheiro para as compras, uma cesta de natal que vinha bombons e panetone que comiam com gosto, ela a mãe e o irmão. A mãe sempre prometera levá-la ao seu trabalho, mas temia que a menina a atrapalhasse nas tarefas e também receava que a governanta da casa não aprovasse a idéia. Aquele dia teria um recesso escolar e, temendo talvez delegar  ao irmão mais velho a tarefa de cuidar da irmã, decidiu por levá-la consigo para o trabalho. Ademais, o comportamento do filho ia de mal a pior nos últimos dias.

O motor do ônibus foi  acionado e os demais passageiros se ajustaram nos lugares. Alguns folheavam jornais populares, vendidos no arredor. Ouvem-se suspiros de alívio e outros protestos à meia voz, com referência ao atraso do ônibus.  Mariana lança novamente o olhar para o estabelecimento e, apesar de ser esse o segundo veículo que apanha, se diverte, naturalmente, com a paisagem. Em poucos segundos, a imagem titânica do shopping  se distanciara, deixando, portanto, as últimas palavras da mãe circulando, difusas, na cachola da pequena, formando um sentimento de velada indignação. O shopping visto há alguns segundos, à primeira vista grande e muito bonito, agora se figura na cabeça de Mariana como um impostor, desbravador de terras,  exterminador de grupos familiares. Lembrou-se do semblante triste de sua mãe quando relatou o passado onde, vejam só, estava chumbado um prédio imenso. Projetou então várias outras casas, e, nessa ciranda de fantasias, concebeu algumas famílias sendo despejadas do imenso campo. Idealizou o lugar com hortaliças iguais às que aprendia cuidar na escola – já se via na gangorra que os primos fariam na ameixeira- e pensou  que tudo isso era injusto, mesmo no seu pueril entendimento dessa palavra. A mãe viajava a seu lado, muda, talvez como pensamentos familiares aos dela.     

Ao chegarem no trabalho da mãe, Mariana teve um sobressalto ao avistar o casarão. Se orgulhou da mãe, atribuindo a ela a responsabilidade pela limpeza integral da casa. Já no interior da residência, percorria os olhos curiosos nos objetos arranjados educadamente sobre os móveis. Sua mãe recebia orientações de uma outra senhora, possivelmente a governanta, dado o seu semblante sério e certa aspereza na voz. A observadora menina comparou-a à sua professora. Enquanto vagueia, via-se brincando e correndo com seus vizinhos naquela sala. Pique esconde, jogo de almofadas, fariam o inverso da faxina, desordenariam tudo. Não atentou, portanto, aos passos firmes que se anunciavam, provocando o recuo das senhoras a um canto mais discreto, com clara intenção de deixar o caminho livre. Do fundo da sala, emerge um senhor bem vestido no seu terno cinza, de cabelos grisalhos, bem penteados que, na passagem, mal acusa a presença das senhoras, agora mudas. Contudo, não conseguiu evitar de tropeçar na criança que cruzou o caminho, atarantada, na tentativa de se juntar ao grupo feminino.  A mãe, resignada, olhou com repreenda e a governanta apenas meneou negativamente a cabeça. O interrompido senhor olhou friamente buscando entender pequeno obstáculo na tentativa de identificá-lo, e abandonou o intento de imediato sem esboçar qualquer expressão. Continuou seu percurso. Minutos depois, o ruído do motor de um automóvel denuncia a saída do patrão,  proporcionando, simultaneamente, tranqüilidade nas pessoas que lá permaneceram.

Sensações confusas apoderaram-se de Mariana. Incomodava-se do momento que vira o shopping e ouvira sequencialmente o saudoso relato da mãe até o infeliz encontro com o seu patrão. Sua jovem análise atribuiu indiretamente àquele senhor a responsabilidade por tirar sua mãe da antiga casa  onde hoje funciona o shopping. Ampliou essa acusação para os demais moradores também removidos. Ponderou acerca do conjunto habitacional onde atualmente reside, das várias casas aglomeradas, mesmo formato, mesmas janelas, portas iguais e concluiu que tudo era exatamente igual, mesmo formato de casa, sem particularidades de cada morador. Lembrou-se das brigas em que todos os vizinhos participavam, do trafico de drogas bem à sua porta, do envolvimento de jovens, inclusive seu irmão com o crime. Ana, notando a mudança da filha nos últimos dias, passou a preocupar-se, procurando conversar com os vizinhos na tentativa de auxílio. Atribuíram o estado da menina  a algum quebranto, adquirido por inveja ou mau olhado. A cada dia Mariana se via assaltada dessas intermináveis sensações de revolta. Próxima já dos treze anos, corpo e mente edificando desproporcionalmente, tornara-se silenciosa, abandonara os brinquedos e até algumas amigas. Sua única companhia em casa, entretanto, era o mau comportado irmão, que procurava sempre protegê-la das maldades daquela  vila.


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