terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Velhos tempos, belos dias...

Publicada no Jornal Oeste em Dezembro 2009 - Belo Horizonte, MG



O pai ouvia a melodia nostálgica que outrora coçara seus jovens ouvidos, cantando o refrão, aproveitando-se da solidão na sala: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber...” Suspirou, ao recordar da época em que letras de músicas e idéias socialistas eram consideradas subversivas. O filho veio do quarto, despertá-lo do devaneio:
- Veinho, amanhã tem axé no Mineirão, valeu? Pode adiantar uma grana para segurar a onda?
O patriarca levantou os olhos nos óculos inclinados e suas grisalhas sobrancelhas contraíram-se.
- Axé? – De que se trata filho? Algum movimento sobre consciência negra? – entusiasmou-se, aproximando-se do filho que o mirava com incredulidade- Como fico feliz por vê-lo assim tão engajado em causas sociais! Movimento racial... Igualdade... Chego a me arrepiar! Sabia que nosso país foi edificado por braços negros? Certamente já ouviu falar de Chico Rei, Chica da Silva, da corrida pelo ouro e diamantes...–empolgava-se- Olhe, quando era jovem, da sua idade...
- Viaja não, paizão...– interrompeu o filho, ajeitando os cabelos para ficarem arrepiados– a parada é Axé Music, sacou? Agitação, Zoeira, mu-lhe-ra-da... Pense em uma louraça, cantando no palco “Eu quero mais é beijar na boca, eu quero mais é beijar na boca e ser feliz...” Então pai! É a deixa, cara... Vou beijar demais! Tira o pé do chão!!!
- Beijar muito...- retrucou o outro, coçando a barba - Só o velho aqui sabe o que teve que enfrentar para chegar aos lábios de sua mãe... É o tempo... Nos dá lambadas, revira a história, retira e põe seres em vários cenários, contraditórios como hoje. Veja você: na sua idade eu tinha que driblar meus amedontrados pais, se quisesse assistir a festivais de música. Você hoje de camiseta, bermudão e cabelo arrepiado. Eu ontem cabeludo, boca larga na calça, camisas vermelhas. Você no funk e no axé e eu brigando por um vinil do Raul Seixas e outros novos baianos, oriundos, inclusive da terra do axé... E aqui, face a face contigo vejo o quão é covarde esse tempo, né filhote? Ele brinca conosco! Veja você que suas músicas tocam livremente nas rádios e não são perigosas à sociedade, como aquelas...
-E aí paizão? O papo tá bom, mas... Pode ser? – apressou-se o jovem, com as mãos estendidas não para a benção e sim para receber o donativo. Alcançado o intento, o filho iniciou a promessa de beijos já na face porosa do pai, que, ainda meditativo, o viu sair apressado, caminhando -com os pés no chão - contra o vento.

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