terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Volta


Premiação Concurso Crônicas Carlos Heitor Cony, Publicação Uberlândia, MG, 2007



VOLTA




Com o controle remoto nas mãos, ela passeia entre os canais. Detêm-se quando ouve uma melodia que tinha o costume de cantar, na sua época de faculdade, em saudosas e não menos saudáveis noitadas que promovia com a sua turma. Seus lastimosos olhos vagam, preguiçosos, do anúncio transmitido ao porta-retratos que jazia sobre a mesma mobília que sustentava o televisor. Lembranças vieram, intrusas, fazerem-lhe companhia naquela abatida tarde de agosto.

“- Não vá se distrair na rua, Leozinho! Atravesse na faixa, e tenha muito cuidado. Assim que terminar ligue para a mamãe!”

Enquanto desfiava as recomendações diariamente sancionadas, seguia, pela varanda, o filho apressado:

“– Olha que o tempo está esfriando... vista o agasalho!” - E, ainda a tempo, – “Mamãe te ama!”



Léo- como gostava de ser chamado e pedira intermináveis vezes à mãe para abdicar do desconfortável Leozinho que ela insistia em clamar referindo-se a ele- reivindicava que não era mais um bebê, apesar dos seus tenros dez anos. No mínimo Leonardo, o qual era seu nome, alusão feita pela mãe ao signo de Leão, regente do mês em que nasceu o filho. Tentava o garoto fugir desses mimos, carregando sua pesada mochila importada-presente do tio- e um pequeno fichário preso ao antebraço direito. Ao alcançar a rua, recebia indiscretos olhares dos vizinhos que ouviam todas aquelas recomendações maternas. Alguns, ousados, cochichavam impropérios e emitiam risinhos irônicos. Ia então cabisbaixo em sua timidez e resguardo, desejando evaporar-se e odiando a mãe pelos intermináveis merengues. Embora desconhecesse o pai, nesses momentos preferia tê-lo em dobro a uma mãe cacarejante igual à sua.

Já distante de casa, passou por um grupos de crianças brincando e correndo em total algazarra. Adiante, outros mais velhos divertiam-se rolando uma bola esfarrapada dos fortes chutes recebidos pelos pés que a disputavam. Teve ímpetos de se juntar aos garotos e dominar a pequena esfera, sentindo momentânea inveja do grupo, logo suprimida pela concepção de que era necessário engolir o curso de informática e inglês, indispensáveis ao intercâmbio que o tio prometera, no exterior. Seus olhos brilhavam à expectativa de que em breve, muito breve,  estaria fora do país!

Desde que viajara a trabalho, há quatro anos, o tio alimenta o Leonardo da promessa de levá-lo também. O aprendizado duraria três anos e, segundo idealizava, ficaria um período em passeios e se habituando para estudar, para assim arrumar ocupação naquelas américas. A mãe, que lecionava História do Brasil em escolas públicas protestava contra o desejo do filho e a sedução imposta pelo irmão.

“ - Esses estrangeiros! – dizia, indignada- já levaram muito de nosso patrimônio e não se dão por satisfeitos? Seduzem nossos próprios filhos e ainda nos privam da companhia deles! O que falta aqui?”

Essas eram as raras vezes que Léo sorria e a abraçava, divertindo-se com a dor de cotovelo demonstrada por sua mãe. Ambicioso, contudo solidário às queixas da mãe quanto ao aluguel e demais despesas, pretendia economizar dinheiro adquirido com a ajuda prestada ao tio,  no ofício de pintor residencial. Compraria uma casa melhor para ambos, no Brasil, retornando na primeira oportunidade para fazer-lhe companhia ou então tentar levá-la consigo, conquanto enjaulada – pensava - talvez a única maneira de conseguir removê-la desse país.

Tanto absorto estava com esses devaneios que foi preciso o veículo buzinar por três vezes para ele o perceber. Estava estacionado no acostamento com o pisca alerta acionado e o condutor, de óculos escuros, buscava informações sobre uma rua qualquer. Coincidentemente, o destino do automóvel era idêntico ao do jovem interpelado que, expansivo e vaidoso, se prontificou a ajudar, entusiasmando com o porte e beleza do automóvel. Projetou-se nos países do primeiro mundo, desta vez conduzindo um carro daquele porte, novo, lustrado, e só seu. Seria respeitado como um rei, absoluto, cheio de si.

Estava frio o sofá. Frio e áspero. Toda a sala também. Tudo era irremediável cinza, aos olhos decaídos da solitária professora, a não ser a foto que ainda brilha sob o criado, como um astro principal, desafiando o luto instaurado no ambiente. Um gato descansa pachorrentamente sobre a almofada rota e desfiada pelas unhas do felino. Há exatos três anos, a mesma foto circula nos cartazes afixados em ônibus, nas escolas e em milhares de e-mails, ignorados ou não, além dos demais locais de intenso tráfego de pessoas. Entretanto, aparentemente ninguém viu aquele garoto tão vistoso, nem mesmo o condutor do carro que o abordou e que ele prontamente procurou auxiliar, com a presteza de um nobre. Talvez o indivíduo, propenso humano que fosse, não saiba que a mãe de Leonardo não dormirá em paz, enquanto o filho não retornar aos seus braços. Talvez desconheça os intermináveis dias e cruéis noites enfrentados pela educadora, a preocupação em alimentar, cuidar-lhe das roupas e vê-lo tornar-se homem em sua pátria, aquecer o seu rebento do impiedoso frio que ora habita seu materno ser.. O telefone anunciado para contato ainda não tocou, para esse fim. Por certo, não querem libertá-la da sensação de impotência que lhe hospeda, impedindo-a até do alivio do choro. Ainda não foi restituído à ela ao menos o conforto de saber como estaria o seu Leozinho, seu pequeno reizinho, o seu sol, que, a despeito da hierarquia, provavelmente sucumbiu à investida de um astuto lobo mau.













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