terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Tempos Modernos

Tempos Modernos


- Alfredo, pode comprar o pão para a mamãe?
- Já ehh!
- Já é?!? O que você quer dizer com “já é”, filho?
-Já é, patroa... Quer dizer “só”, “tudo certo”, positivo...
A mãe ficou preocupada. O vocabulário do filho estaria cada vez mais excêntrico e desnudo de qualquer forma admissível de linguagem. Há tempos observava, melindrosa, o comportamento do adolescente: Dezessete anos e quatro piercings distribuídos por todo o corpo. Um deles em região tão escusa que apenas a namorada teria autorização para averiguar.

- Eu troquei sua fralda, ouviu moleque? - protestava a referida patroa- Agora me proíbe de até de reclamar dessa mutilação desenfreada no corpo que eu cuidei! Onde está o sexto pincin? Não vou perguntar de novo, hein!

-É piercing, véi...

-Que seja! Pincin, piercing, pinico, é tudo a mesma merda! -revoltava-se por jamais conseguir pronunciar o nome da interferência metálica- Ordeno que me mostre já!

-Nos badalo... E só a Marilu tem autorização para explorar a região... – disse sorrindo marotamente. Tentou fazer cócegas na mãe, a qual recuou, ainda indignada. Demorou alguns segundos para a rainha do lar associar o que diabos viria a ser “os badalo”, não sendo poupada, portanto, de um mal estar quando imaginou a crueldade que seria perfurar área tão sensível. Esperava apenas netos dos testículos de Alfredo.  O que estaria acontecendo com esses jovens de hoje? Por que essa violência no falar, agir e vestir-se? Como cravar assim de forma tão cruel, grampos, brincos e demais metais, na pele que mamãe tratou com amor, talco e beijinhos?  Veio-lhe na memória o ex-marido. Que falta lhe faz!  Certamente seria mais leve a bagagem se ele não tivesse interrompido o matrimônio para aninhar-se a sua aluna da biologia, biologicamente mais nova que ela. O pai mal procura pelo filho e o filho pouco interage com a mãe. Esta, crente nos moldes de um feliz casamento, sucumbia prevendo que a conclusão seria a solidão.

Alfredo retorna da padaria com a encomenda e já sem camisa, impaciente com o calor. Apavorada, a mãe visualiza mais uma tatuagem. Apenas vinte e cinco por cento do corpo que ela deu à luz mantinha a pele na tez original. Todo o restante era como um caleidoscópio, um mosaico de figuras que lançavam fogos, línguas viperinas, rabos e tridentes, enfim, o surreal epitelial.

- Mais uma tatuagem, Fredinho?

- Podes crê...!

Foi a gota d’água para que lágrimas rolassem em sua desesperada face. O filho ouviu os resmungos e, aliando a fato cotidiano, deu de ombros. Contudo, ao retornar da sala televisão para beliscar algo na cozinha deparou com a mãe acocorada ao tapete da sala, a cabeça entre as pernas. Chorava ruidosamente, como se pedisse colo.

Mesmo sem prática alguma em acalanto, o filho desajeitadamente tentou ampará-la:

-Fica assim não veínha. É a última, ou melhor, a penúltima tatoo. Prometi a Marilu tatuar o nome dela aqui- mostrou-lhe o cotovelo.

Ainda em lágrimas, a mãe não deixou de sentir uma ponta de inveja.

-Porque não o meu nome? Quem carregou você aqui no ventre, quem passou noites em claro tratando de sua bronquite, quem suportou seus gases, suas fraldas e cuecas sujas? E agora, tatua o nome dessazinha, em seu cotovelo?

- Menos mãe... segura a onda aí... tô pagando uma promessa, fraga? Fizemos um pacto. Ela tatuou meu nome todo na virilha, saca? Lá mesmo... E eu vou pagar tatuando o dela. Foi um custo conseguir que ela aceitasse a região... Ufa! Ela queria outra, é mole?

- E eu quero morrer! - foi o que disse dramaticamente, a mãe. Antes da nova crise de choro - Seu pai me deixou e nunca aparece para ajudar a cuidar de você, de nós... Tudo faço sozinha e vocês sequer preocupam como me sinto, o que sinto, se eu sinto! Não tenho mais vontade de viver!

Novamente Alfredo deu pouco crédito à cena, comuns às novelas seguidas pela mãe. Enganou-se, portanto, ou então a aquilo seria uma revelação materna nas artes cênicas já que os lamentos chorosos e soluços prolongaram-se pela tarde e durante toda a noite. Já tossia e fazia vômitos quando o filho resolvera procurar o médico da família.

-Depressão -diagnosticou o clínico, aspirando preocupação- ansiedade em excesso, preocupação e fadiga. Crise dos quarenta. Decepções com família, separação, solidão... Tudo isso em uma só panela, filho, é duro mastigar, engolir e digerir. Seu pai deixou a casa e restaram apenas vocês dois. Fique mais com ela, dê-lhe toda a atenção e não a deixe sem lazer.

O médico ministrou anti-depressivos, sugeriu passeios e outras terapias. Ao se despedir, segredou a Alfredo:

- É necessário apoiá-la, meu rapaz. Está muito desmotivada e isso pode ter conseqüências drásticas –procurou liquidar, enfático - irreversíveis.

Um fio tênue de preocupação apossou-se do rapaz. Talvez a mãe e o prático tivessem razão. Ademais, não poderia perdê-la para um sanatório. E, se os prognósticos viessem a se consolidar, só lhe sobraria, a namorada, e esta obviamente não supriria a ausência materna, a não ser que soubesse cozinhar, localizasse seus pertences dentro de casa. Também teria que saber combinar pares de meias, separar roupas limpas das sujas, fiscalizar o vaso sanitário, já que ele ainda não entendera da necessidade de se acionar a descarga. Enfim, teria que aprender fazer brigadeiro e lasanha, condição indispensável para pleitear o cargo ocupado pela mãe. Antevendo a impossibilidade de substituir uma pela outra e baseado em sua análise precária na distinção entre mãe e mulher, Alfredo decidiu por tentar mudar de hábitos e conceitos. E já.

Dedicou-se mais aos estudos e se preparava para vestibulares. Preocuparia mais com sua imagem e concluindo a retirada do último piercing que, até então, somente a namorada teria visto. Abandonou o intuito de tatuar o nome de Marilu, sua namorada, no cotovelo. Aproveitando, transferiu a possível dor que sentiria no cotovelo pela à então namorada, quando decidiu por dar fim ao relacionamento. Via com bons olhos a recuperação da mãe, paralelamente à suas mudanças e planejava cauterizar todas as tatuagens na tentativa de voltar à pele natural, sem interferências. Lera três romances em tempo recorde. Tornara-se caseiro e introspectivo e nas raras vezes que passeava, ia ter com o pai, na tentativa de persuadi-lo a reconciliar-se com a ex-esposa e conviver mais com a família. Contudo, desistiu do intento uma vez que foi visitá-lo e uma adolescente o atendeu, em roupas e maquiagem cor de rosa. Custou acreditar que estudante caminhava para o posto de sua madrasta. Ela o conduziu até o quarto onde o  pai estaria acamado devido à aventuras e diversões com a  infante namorada. Sete dias de repouso absoluto, bolsa de água quente nas articulações e até fisioterapia. Priorizar atividades pouco exaustivas como cinema, teatro, pescaria. Tudo recomendações médicas, do mesmo que assistia à família. Deixara recado para que Alfredo o procurasse e, assim quem o rapaz atendeu recebeu as orientações para diligenciar também os hábitos paternos, com recomendações contrárias ao ministrado para a mãe.

Já a desquitada resolvera também seguir as ordens de quem entende sobre saúde. Dois dias depois da crise dos quarenta estava em um shopping com amigas, também solteiras e cicatrizadas do matrimônio. Bebiam, sorriam entre milhares de assuntos que facilmente dissertavam. Não raro, o filho teria o sono interrompido para abrir a porta para ela, altas madrugadas, totalmente ébria e sem ao menos se recordar de sua própria chave. Sentia o bafo pelo beijinho de boa noite, já sendo dia. Incomodado, percebia que a mãe melhorara o humor e ponderou que talvez estivesse ela mal dimensionando as recomendações médicas.

Alfredo era outro, portanto. Proferia as palavras como se estivesse defendendo um litígio, sem gírias e com todos os pingos nos is, esses, vírgulas e ponto final. Evitava monossílabos. Seu guarda roupa também recebeu peças de roupas sóbrias. Não deixava um palito sequer fora do lugar e auxiliava a mãe na maioria das tarefas domésticas. Uma noite, ao retornar da faculdade, pensou que estivesse errado de casa quando avistou em sua sala um rapaz pachorrentamente espalhado no sofá, com controle remoto em uma das mãos e latinha de cerveja na outra. Na mesinha de centro, uma travessa,  recheada de batatas fritas e amendoins, esperavam serem degustadas. Havia televisor e o som ligados. Alfredo quedou-se por instantes, examinando o terráqueo de cabelos projetados para o alto, empapados de gel. Apesar de mamífero, o espectro lembrava a uma ave silvestre. Só no seu rosto contava-se cinco piercings, sendo dois grandes, um em cada orelha, um menor no nariz, outro na sobrancelha e o último nos lábios. Uma camiseta preta, totalmente aberta denunciava outro metal cruelmente cravado no mamilo e a calça deixava à mostra metade da cueca. Apesar da grotesca aparência, aparentava ter idade inferior à sua.

A mãe vem da cozinha trazendo mais cerveja, cantarolando e sorrindo. Seus cabelos estavam desalinhados e suas roupas um tanto desconexas. Deteve-se, entre surpresa e acanhada, tentando em vão se compor diante de seu filho.

-Alfredo! Chegou tão cedo, filho!- Tentou quebrar o gelo, embora o outro não tirasse os olhos da visita- Oh! Este é o Rô... –franziu a testa e odiou sua memória.

-Rogério – disse o novato, mordiscando uma azeitona e não tirando os olhos da transmissão televisiva

-Rogério!. Isso, Claro! Rogério! Eu e Rogério estamos “ficando”, meu filho...

O recém chegado ainda permanecia inerte processando o termo utilizado pela mãe para definir o relacionamento com possível candidato a padrasto, o qual estendeu-lhe a mão, exibindo o braço tatuado. Entre várias figuras excêntricas , um nome grotescamente impresso na pele: “Amelía”.
Alfredo sentiu uma fincada no peito! Era o nome de sua mãe, erroneamente escrito no braço analfabeto! Olhou desolado para a outrora patroa, que procurava esboçar um sorriso. Percebeu que o braço esticado para si aguardava o seu para apertarem as mãos.

- Prazer, Alfredo – mentiu,  quanto ao prazer,  buscando polidez nas palavras. Quis exigir imediata correção no acento agudo no nome tatuado no estranho braço.

-Já é... – foi o que ouviu como resposta.



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