Tempos Modernos
- Alfredo, pode
comprar o pão para a mamãe?
- Já ehh!
- Já é?!? O que
você quer dizer com “já é”, filho?
-Já é, patroa...
Quer dizer “só”, “tudo certo”, positivo...
A mãe ficou
preocupada. O vocabulário do filho estaria cada vez mais excêntrico e desnudo de
qualquer forma admissível de linguagem. Há tempos observava, melindrosa, o
comportamento do adolescente: Dezessete anos e quatro piercings distribuídos
por todo o corpo. Um deles em região tão escusa que apenas a namorada teria
autorização para averiguar.
- Eu troquei sua
fralda, ouviu moleque? - protestava a referida patroa- Agora me proíbe de até
de reclamar dessa mutilação desenfreada no corpo que eu cuidei! Onde está o sexto
pincin? Não vou perguntar de novo,
hein!
-É piercing,
véi...
-Que seja! Pincin, piercing, pinico, é tudo a mesma
merda! -revoltava-se por jamais conseguir pronunciar o nome da interferência
metálica- Ordeno que me mostre já!
-Nos badalo... E
só a Marilu tem autorização para explorar a região... – disse sorrindo
marotamente. Tentou fazer cócegas na mãe, a qual recuou, ainda indignada. Demorou
alguns segundos para a rainha do lar associar o que diabos viria a ser “os
badalo”, não sendo poupada, portanto, de um mal estar quando imaginou a
crueldade que seria perfurar área tão sensível. Esperava apenas netos dos
testículos de Alfredo. O que estaria
acontecendo com esses jovens de hoje? Por que essa violência no falar, agir e
vestir-se? Como cravar assim de forma tão cruel, grampos, brincos e demais
metais, na pele que mamãe tratou com amor, talco e beijinhos? Veio-lhe na memória o ex-marido. Que falta lhe
faz! Certamente seria mais leve a
bagagem se ele não tivesse interrompido o matrimônio para aninhar-se a sua
aluna da biologia, biologicamente mais nova que ela. O pai mal procura pelo
filho e o filho pouco interage com a mãe. Esta, crente nos moldes de um feliz casamento,
sucumbia prevendo que a conclusão seria a solidão.
Alfredo retorna
da padaria com a encomenda e já sem camisa, impaciente com o calor. Apavorada,
a mãe visualiza mais uma tatuagem. Apenas vinte e cinco por cento do corpo que
ela deu à luz mantinha a pele na tez original. Todo o restante era como um caleidoscópio,
um mosaico de figuras que lançavam fogos, línguas viperinas, rabos e tridentes,
enfim, o surreal epitelial.
- Mais uma tatuagem,
Fredinho?
- Podes crê...!
Foi a gota
d’água para que lágrimas rolassem em sua desesperada face. O filho ouviu os
resmungos e, aliando a fato cotidiano, deu de ombros. Contudo, ao retornar da
sala televisão para beliscar algo na cozinha deparou com a mãe acocorada ao
tapete da sala, a cabeça entre as pernas. Chorava ruidosamente, como se pedisse
colo.
Mesmo sem
prática alguma em acalanto, o filho desajeitadamente tentou ampará-la:
-Fica assim não
veínha. É a última, ou melhor, a penúltima tatoo. Prometi a Marilu tatuar o
nome dela aqui- mostrou-lhe o cotovelo.
Ainda em
lágrimas, a mãe não deixou de sentir uma ponta de inveja.
-Porque não o
meu nome? Quem carregou você aqui no ventre, quem passou noites em claro
tratando de sua bronquite, quem suportou seus gases, suas fraldas e cuecas
sujas? E agora, tatua o nome dessazinha,
em seu cotovelo?
- Menos mãe...
segura a onda aí... tô pagando uma promessa, fraga? Fizemos um pacto. Ela
tatuou meu nome todo na virilha, saca? Lá mesmo... E eu vou pagar tatuando o
dela. Foi um custo conseguir que ela aceitasse a região... Ufa! Ela queria
outra, é mole?
- E eu quero
morrer! - foi o que disse dramaticamente, a mãe. Antes da nova crise de choro -
Seu pai me deixou e nunca aparece para ajudar a cuidar de você, de nós... Tudo
faço sozinha e vocês sequer preocupam como me sinto, o que sinto, se eu sinto!
Não tenho mais vontade de viver!
Novamente Alfredo
deu pouco crédito à cena, comuns às novelas seguidas pela mãe. Enganou-se,
portanto, ou então a aquilo seria uma revelação materna nas artes cênicas já
que os lamentos chorosos e soluços prolongaram-se pela tarde e durante toda a
noite. Já tossia e fazia vômitos quando o filho resolvera procurar o médico da
família.
-Depressão
-diagnosticou o clínico, aspirando preocupação- ansiedade em excesso, preocupação
e fadiga. Crise dos quarenta. Decepções com família, separação, solidão... Tudo
isso em uma só panela, filho, é duro mastigar, engolir e digerir. Seu pai
deixou a casa e restaram apenas vocês dois. Fique mais com ela, dê-lhe toda a
atenção e não a deixe sem lazer.
O médico ministrou
anti-depressivos, sugeriu passeios e outras terapias. Ao se despedir, segredou
a Alfredo:
- É necessário apoiá-la,
meu rapaz. Está muito desmotivada e isso pode ter conseqüências drásticas –procurou
liquidar, enfático - irreversíveis.
Um fio tênue de
preocupação apossou-se do rapaz. Talvez a mãe e o prático tivessem razão.
Ademais, não poderia perdê-la para um sanatório. E, se os prognósticos viessem
a se consolidar, só lhe sobraria, a namorada, e esta obviamente não supriria a
ausência materna, a não ser que soubesse cozinhar, localizasse seus pertences
dentro de casa. Também teria que saber combinar pares de meias, separar roupas limpas
das sujas, fiscalizar o vaso sanitário, já que ele ainda não entendera da
necessidade de se acionar a descarga. Enfim, teria que aprender fazer
brigadeiro e lasanha, condição indispensável para pleitear o cargo ocupado pela
mãe. Antevendo a impossibilidade de substituir uma pela outra e baseado em sua análise
precária na distinção entre mãe e mulher, Alfredo decidiu por tentar mudar de
hábitos e conceitos. E já.
Dedicou-se mais
aos estudos e se preparava para vestibulares. Preocuparia mais com sua imagem e
concluindo a retirada do último piercing que, até então, somente a namorada
teria visto. Abandonou o intuito de tatuar o nome de Marilu, sua namorada, no
cotovelo. Aproveitando, transferiu a possível dor que sentiria no cotovelo pela
à então namorada, quando decidiu por dar fim ao relacionamento. Via com bons
olhos a recuperação da mãe, paralelamente à suas mudanças e planejava cauterizar
todas as tatuagens na tentativa de voltar à pele natural, sem interferências.
Lera três romances em tempo recorde. Tornara-se caseiro e introspectivo e nas
raras vezes que passeava, ia ter com o pai, na tentativa de persuadi-lo a
reconciliar-se com a ex-esposa e conviver mais com a família. Contudo, desistiu
do intento uma vez que foi visitá-lo e uma adolescente o atendeu, em roupas e
maquiagem cor de rosa. Custou acreditar que estudante caminhava para o posto de
sua madrasta. Ela o conduziu até o quarto onde o pai estaria acamado devido à aventuras e
diversões com a infante namorada. Sete
dias de repouso absoluto, bolsa de água quente nas articulações e até fisioterapia.
Priorizar atividades pouco exaustivas como cinema, teatro, pescaria. Tudo recomendações
médicas, do mesmo que assistia à família. Deixara recado para que Alfredo o
procurasse e, assim quem o rapaz atendeu recebeu as orientações para
diligenciar também os hábitos paternos, com recomendações contrárias ao
ministrado para a mãe.
Já a desquitada
resolvera também seguir as ordens de quem entende sobre saúde. Dois dias depois
da crise dos quarenta estava em um shopping com amigas, também solteiras e cicatrizadas
do matrimônio. Bebiam, sorriam entre milhares de assuntos que facilmente
dissertavam. Não raro, o filho teria o sono interrompido para abrir a porta
para ela, altas madrugadas, totalmente ébria e sem ao menos se recordar de sua
própria chave. Sentia o bafo pelo beijinho de boa noite, já sendo dia.
Incomodado, percebia que a mãe melhorara o humor e ponderou que talvez
estivesse ela mal dimensionando as recomendações médicas.
Alfredo era
outro, portanto. Proferia as palavras como se estivesse defendendo um litígio,
sem gírias e com todos os pingos nos is, esses, vírgulas e ponto final. Evitava
monossílabos. Seu guarda roupa também recebeu peças de roupas sóbrias. Não
deixava um palito sequer fora do lugar e auxiliava a mãe na maioria das tarefas
domésticas. Uma noite, ao retornar da faculdade, pensou que estivesse errado de
casa quando avistou em sua sala um rapaz pachorrentamente espalhado no sofá, com
controle remoto em uma das mãos e latinha de cerveja na outra. Na mesinha de
centro, uma travessa, recheada de batatas
fritas e amendoins, esperavam serem degustadas. Havia televisor e o som
ligados. Alfredo quedou-se por instantes, examinando o terráqueo de cabelos
projetados para o alto, empapados de gel. Apesar de mamífero, o espectro
lembrava a uma ave silvestre. Só no seu rosto contava-se cinco piercings, sendo
dois grandes, um em cada orelha, um menor no nariz, outro na sobrancelha e o
último nos lábios. Uma camiseta preta, totalmente aberta denunciava outro metal
cruelmente cravado no mamilo e a calça deixava à mostra metade da cueca. Apesar
da grotesca aparência, aparentava ter idade inferior à sua.
A mãe vem da
cozinha trazendo mais cerveja, cantarolando e sorrindo. Seus cabelos estavam
desalinhados e suas roupas um tanto desconexas. Deteve-se, entre surpresa e acanhada,
tentando em vão se compor diante de seu filho.
-Alfredo! Chegou
tão cedo, filho!- Tentou quebrar o gelo, embora o outro não tirasse os olhos da
visita- Oh! Este é o Rô... –franziu a testa e odiou sua memória.
-Rogério – disse
o novato, mordiscando uma azeitona e não tirando os olhos da transmissão
televisiva
-Rogério!. Isso,
Claro! Rogério! Eu e Rogério estamos “ficando”, meu filho...
O recém chegado ainda
permanecia inerte processando o termo utilizado pela mãe para definir o
relacionamento com possível candidato a padrasto, o qual estendeu-lhe a mão,
exibindo o braço tatuado. Entre várias figuras excêntricas , um nome
grotescamente impresso na pele: “Amelía”.
Alfredo sentiu
uma fincada no peito! Era o nome de sua mãe, erroneamente escrito no braço
analfabeto! Olhou desolado para a outrora patroa, que procurava esboçar um
sorriso. Percebeu que o braço esticado para si aguardava o seu para apertarem
as mãos.
- Prazer,
Alfredo – mentiu, quanto ao prazer, buscando polidez nas palavras. Quis exigir
imediata correção no acento agudo no nome tatuado no estranho braço.
-Já é... – foi o
que ouviu como resposta.
Muito bom!
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