terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Eleva dor

Premiação Concurso Internacional Crônicas, Publicação São Paulo, SP, 2008

Subi as escadas da portaria de dois em dois degraus. Precisava me apressar, já que estava há quinze minutos atrasado para a terapia, tão habitual às sextas-feiras quanto à feijoada que possivelmente devo atacar assim que possa me livrar daquele divã, onde tantos monstros já vomitei.

Não obstante, sentia-me enojado daquilo tudo. Terapia, terapia, análise... conhecer-me, ter prazer comigo... Às favas tudo isso! Preciso é de amar! Sequer me recordo qual último dia em que senti contato mais intimo com algum outro miserável mamífero. Estou enojado de mim, sinto-me um vegetal! Passeio pela casa dos trinta anos com passos e curvatura de noventa! Faço refeições sozinho, ouço músicas que ninguém ouve tenho hábitos que ninguém tem. Interajo com meus cães, plantas, carros e, até a lua, penso estar exausta de meus lamentos. Padeço de solidão! Anseio por doses de amor intravenal, sentir cheiro de pele, provar de suor salgado, morder e ser mordido, fungar... Imploro a Eros que mire-me e, impiedosamente, atire sua flecha bem no alvo exposto de meu aflito coração. Suplico a Dionísio que desencadeie torrencial chuva de vinho sobre minha cabeça que quero me inebriar, afogar nesse riacho de despudorado amor, gozar! Desejo ser tocado por outro ser, por outras mãos, quantas sejam, conquanto que não sejam as minhas! Evoco, com todas as minhas parcas forças a Príapo, fonte de poder para utilizar minha arma, que aniquile e liberte-me definitivamente dessa diário eunuco!

Adentrei a portaria principal do prédio e nem preciso me anunciar, a semanal entrevista com  analista  se da há bom tempo, sempre no quarto andar, onde divãs aguardam mentes ali desaguarem. O alerta do elevador acendeu e a ascensorista eletrônica – provando que desgraça pouca é bobagem - anunciou a subida do equipamento. Não bastasse a Internet, as salas de bate papo e milhões de e-mails que recebo, ainda tenho que interagir com uma assessora de bordo, sensualmente eletrônica. "Sobe" disse em estereo som a robotica companheira de bordo. Já no interior do elevador, fiz menção de agilizar o fechamento da porta quando ouvi afoita voz, desta vez humana.
- Sobeee? Tá subiendoo? Segura aí um minutinho, por favoar.

Meus até então melancólicos olhos se assanharam com aquela visão delineada, surreal. Vinha ela com os 
braços erguidos e as mãos espalmadas como linda manifestante de não se sabe de que, exibindo dedos  esticados e providencialmente afastados dos pares. Mal entrou no elevador, cravou uns raros  olhos cor de mel nos meus,  pobres abelhas operárias, fazendo um covarde biquinho:

 - Aperte o oaitoo, por favooarr...

Não vi o numeral convencional, uma bola sobre a outra, emaranhada. Visualizei o próprio infinito, o oito na sua horizontal, como se no divã estivesse a divagar sobre o eterno, e imaginei-me também deitado. Não sozinho, como de costume, mas acompanhado com a proprietária da voz mole e também infinita. Atarantado,  tateei o painel na busca do andar solicitado. "Oito, claro!, dois do sete e antes do nove! Ora, tão fácil"! Maquinava, tateando o  teclado que covardemente me apresentava embaçado. Na confusão, desastrosamente esbarrei nos outros números que instantaneamente acenderam ao calor de meus dedos.

A deusa sorriu lindamente ao meu desarranjo, talvez certa que que os maravilhoso dentes que se apresentaram com em ribalta  não atrapalhasse ainda mais a situação. Suas mãos, ainda espalmadas, desenhavam várias letras V no espaço, anunciação impiedosa da Vênus. Tão atônito estava com a companheira que tardei em perceber o cheio forte de acetona que envolveu o cubiculo. Mantinha-me sem controle a admirar a aparição, que mantinha ainda as mãos suspensas, recomendação da manicura que acabara de torná-la ainda mais bela ao pintar suas felinas unhas. Mal o elevador tinha parado no segundo andar eu já sentia torpores. O cheiro de acetona mesclado com esmaltes e demais perfumes formava corrente de odores fêmeos mulher e causavam-me um frenesi perturbador e eu já nao sabia meu nome, onde estava o que diabos viria a ser um divã.  Em meio a mensagens de sobe, sobe ditados pela ascensorista robô, ainda estávamos no terceiro andar quando uma campainha se anunciou.
 Não deve ser meu celular. – conclui. O toque alto e a melodia  Discretamente, averiguo a cintura de minha companheira, na tentativa de localizar algo e a única coisa que captei foi uma zonzeira, só por visualizar aquela cintura.

- Pode pegar meu telefone aqui, por favoar? – Pediu a ninfa de unhas pintadas.

Senti-me se agredido, só por ouvir a voz rouca, provocante, a qual combinava com todo aquele conjunto. Precipitei-me, encabulado, para abrir sua bolsa e atendê-la.

- Não tá na minha bolsa não, moreno... Tá no bolso da calça. Bolso da frente... – alertou-me, a voz cantada, dolente, rouca e cruel.

Senti-me ultrajado! Aquela calça apertada como estava, não armazenava nem pensamentos do subconsciente! E, logo eu, teria que explorar aquele campo?

A insistências da musa e barulho do celular, forcei o bolsinho do arrochado jeans e enfiei dois dedos que mal couberam naquela caixinha de Pandora. O simples contato de meu indicador com o tecido da calça já me fez sentir queimado, dado o calor que o bolso reservava. Pesquei, suado e vitorioso, o minúsculo aparelho que, além do som alto, vibrava em meio aos meus dedos, para o aumentar meu desespero. Abri cautelosamente, para possibilitar a conferência, buscando posicionar o aparelho entre o ouvido e aquela boca imprópria. Ela piscou de agradecimento. Tremi absolutamente todo o corpo.

- Alôoaa... Oi amoor...Lindooa! Tava esperando sua ligação... Por quê demorou?

Sentia já ciúmes quando chegamos enfim ao oitavo andar. Ainda segurava o aparelhinho e ela teria que desembarcar ali. O jeito foi deixar o elevador também para que ela continuasse a conversa ainda no corredor. Obviamente, continuei ainda segurando o telefone para não ser responsabilizado pela tragédia que seria estragar àquelas unhas. Minhas mãos tremiam, enquanto às delas estavam impossibilitadas de qualquer movimento ou confronto.

- Como assim? Não poderá ir? O quê? Sua mãe está com dor de cabeça? Ameaça que vai parti-la ao meio, de tanta dor? Não amor, de novo não! – girava o corpo a cada frase, indignada, e eu, antes desconhecido companheiro de viagem, monitorava o minúsculo celular entre a boca e o ouvido dela, admirando aquela boquinha meiga, redobrando o cuidado para não deixar escapulir o telefone.

- Ah! É sempre assim, né? A sua mãe está sempre em primeiro lugar. Está certo... Ela come seu fígado diariamente, e você ainda volta. É só a Jocasta chorar e você vai, engatinhando pro lado dela. Tudo certo, tu-do cer-to. Lembre-se que você prometeu! Não.. não vou brigar mais – Jurei ter visto os olhos dela lacrimejarem, essa cena já me incomodava – Não dá prá sair comigo, né, pois eu vou me virar então... A vingança, meu bem, é um prato que se come frio. Vou desligar sim, senhor! Até.

A despeito do choque térmico, desejei ser uma salada tropical naquele momento. Atônito, não sabia se a deusa findara ou não a conferência. e somente após um gesto dela que distanciei o aparelho celular, fechando-o novamente e devolvendo ao inferno de onde saíra.

- Obrigadoa!Você não estava indo para o quarto? – inquiriu, provocante, flechando-me com seus olhos de cruel cupido.

Balbuciei algo, ininteligível, petrificado.Jamais sairia daquele andar.

Um comentário:

  1. Salve Maiangole...

    Essa do elevador ainda não tinha lido. Cmo sempre genial !!!

    Só a breve citação de "devolvendo o celular ao inferno de onde saira" já vale por centenas de paginas KKKKKKKKKKKKK

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