terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Insurreição


Menção Honrosa Concurso Guemanise de Contos, Rio de Janeiro, RJ, 2007



Ela entrou esbaforida naquele supermercado, sendo invadida pelo cheiro de lavanda vindo do piso. Forçava
os olhos à incisão das luzes que auxiliavam  comportadas e sedutores produtos brilharem como em um espetáculo. Contudo, remoía ainda lembranças da última reunião familiar onde ouvira a sabatina do marido sobre despesas que, segundo ele, eram desnecessárias e comprometiam o orçamento mensal. Sofria a cada vez que teria que ir ao mercado e a empregada ordinária cúmplice a acompanhava nas tarefas de supermercado, ouvindo desatenciosa as recomendações de economia e por vezes acudindo um e outro pedido das crianças. A patroa remoía a penosa aprovação em sua lista de compras elaborada, esta sim com muito custo, na véspera. Resignada, assistiu ser vetados itens relevantes, sucumbindo ao bico da impiedosa caneta do marido. Olha que ela, precavida, cuidou de não inserir produtos de beleza, apesar de necessários e ainda assim sofreu represálias. Tentava compreender, enquanto guiava o carrinho, examinando por diversas vezes os itens aprovados. Concluiu, portanto,  ser necessário agir com rapidez, para assim reduzir o martírio que seria ver o mosaico de produtos, imagina-los em sua casa a seu dispor e ainda assim não poder resgata-los. Empertigou-se, inspirou e expirou por três vezes seguidas e deu novamente partida no deslizante carrinho, direcionando-o ao setor de frutas e verduras. Enquanto selecionava os produtos listados, evitou olhar para tenras peras poque sentia que estas ousadamente que lhe sorriam, tentando atrair sua atenção. Atônita e buscando se concentrar, convenceu-se de ter ouvindo gôndolas sussurrando, mercadorias clamando por seu nome e buscava esquiva-se dos tentáculos que morangos lançavam a si! Veio à embaralhada mente materna o filho caçula, João Paulinho. Como gostava de peras, o querubim! Seus olhos brilhavam, quando via a fruta em sua lancheira , tão tenra e doce quanto ele. “Bom...  ponderou - ele não está bem em matemática, e no português, agonizante...”. Decidiu por condenar as peras a não serem comidas pela criança. A essa sentença, seguiu, resoluta, ao açougue e nesse setor não teve maiores problemas, inclusive adquirindo de bom grado o bife que ofereceria com batatas fritas no jantar, para o deleite de Marcelinho, filho do meio, carente de atenção e problemático para refeições. Andava magro o pequeno, prostrado em seus jogos eletrônicos e redes sociais. “Precisava, sem demora, visitar o médico” – concluiu, enquanto se dirigia ao setor de detergentes.
A lista continha apenas quatro itens de limpeza, aos quais foram acrescentados mais quatro. Justificaria como promoção relâmpago, se porventura o sovina a auditasse. Quando aproximou-se do setor de achocolatados e matinais sentiu que coração lhe abandonaria à sorte. Teve vertigens na presença de inúmeros biscoitos recheados. À sua frente, caixas de sucrilhos desafiavam-na, a foto do leite sendo derramado a cântaros  sobre a tigela entupida de cereal. Sacudiu a cabeça, tentou olhar para o teto e foi covardemente fulminada por diversas caixas de bombons enfileiradas e comportadas na prateleira superior, embora parecessem ensaiar um mergulho coletivo sobre sua cabeça, enterrando-a. Ignorou-as. Definitivamente não estavam previstas! Vacilando, examinou a lista, na esperança de alguma brecha, e viu somente a face severa e vigilante do marido, repreendendo-a. Dobrou, trêmula, o papel e, antes que desistisse, apanhou uma caixa de bombons, deixando o setor imediatamente após a aquisição, como se cometesse um grave delito. “O exemplar comportamento de Tati, a sua primogênita, justificaria o deslize – pensou, advogando-se - a pequena ajudava-a nas pequenas tarefas, além de se sobressair com esmero na escolares.Ademais era o xodó do papai.
Tão apavorada estava em distanciar-se do antro açucarado que quase pôs abaixo a montanha de cremes para mãos, sedutoramente exposta no corredor central. Deu-se conta de que  estava na família da perfumariam, local proibido para a oprimida vaidade e banido da lista. Ponderou que seria forte a ponto de resistir ao pecado iminente, até que e um dos diversos espelhos do setor, visualizou a figura horrenda, quase indefinível e repelente que a causou sua retirada imediada do local. Ainda assustada, cuidou que não poderia demorar mais por ali resolvendo liquidar as pendências na lista. À procura dos líquidos, águas sucos e derivados,  foi se aproximando da área de bebidas e a face do marido que parecia acompanhar-lhe em rígida censura, foi-se libertando da carranca e, para sua insana surpresa viu o esposo sorrindo-lhe a brancos dentes e brilhantes olhos, como um cortes príncipe  marido, impresso nos  rótulos da primeira garrafa de cerveja que visualizou, como se ratificasse a afinidade e aprovação com o lúpulo e que para essa linha de produtos, não existiria a menor restrição, tanto em quantidade quanto em preço. Esboçou um sorriso, não se sabe se para corresponder ao simpático rótulo ou mesmo o desvario da consumidora.
De súbito, algo acendeu-lhe a atormentada mente, como um raio, um clarão... Deteve-se, intrigada. “Meu Deus!– disse, em voz alterada-  “A figura que vi no espelho... me parece familiar...”
Voltou apressada à perfumaria buscando validar a intuição. Afastou bruscamente uma jovem que se perdia em sua própria imagem produzida no espelho. A mocinha recuou, assustada com a senhora e esta, não menos assustada, confirmou suas suspeitas sobre a imagem refletida: um monstro, de olheiras profundas e explicitas rugas, os cabelos opacos desalinhados ordinariamente ornavam a fervilhante cabeça e caia sobre a pele cor de pêssego, sem calda de sua face. Permaneceu ali recebendo a resposta do espelho, estática, com a lista de compras na mão e um brilho caleidoscópico no olhar. Amassava lentamente o papel, até que, em continuo ato, abriu levou-o à boca,  fagocitando a lista já compressa e regurgitando-o com a calma e precisão de um bovino. Finalmente, deu cabo da massa, sentindo que o próprio marido queimar em sucos gástricos, digerido até a última célula. Uma pequena multidão já se formava próxima à ela e seguranças do estabelecimento se posicionara em alerta. Alguns riam. Murmúrios surgiam aqui e ali.
Ela, portanto, buscou recobrar o fio de consciência possível e, com o ego alimentado, ajeitou sua roupa, remexeu os cabelos, contraiu e dilatou a face para expulsar as dobras. Por fim, estalou as mãos e deu partida no carrinho, cantando pneus e afastando curiosos. Suas mãos ágeis lançavam tudo o que alcançavam para o interior do carrinho. Comparou o supermercado à sua despensa doméstica e viu-se rolando sobre os produtos, seguida de sua empregada, solidária doméstica, em incontrolável frenesi.
Tanto exausta quanto satisfeita, na impossibilidade de colocar sequer uma agulha no carrinho, dirigiu-se ao caixa. Foi recebida com um sorriso amarelo da recepcionista, que mal disfarçou o desespero da iminente tarefa do registro de todas as mercadorias. Ainda assim retribuiu o sorriso, desafiadora. Ao findar os inúmeros registros, mirou o monitor onde totalizava a compra com algarismos a mais que o orçado. Na sequencia o monitor revelou uma cabeça decapitada, de olhos arregalados e língua presa entre dentes. Era o marido. Em sua volta, as três crianças, seus três anjinhos, rodeando felizes aquela cabeça hirta, tocando harpas em sagrada algazarra, coradas de tanta fartura. Digitou a senha do cartão e guardou-o na bolsa, percebendo que precisaria de uma nova. Maquiou-se e rearranjou os cabelos, enquanto acondicionavam a compra em seu veículo.
_ Encontrou tudo que procurava, senhora? – Inquiriu a mocinha, sorridente, mecânica e aliviada da tarefa.
Ela meneou positivamente a cabeça, certa de que encontrara sim, mais ainda do que procurava. Deixou o transformada, tão feliz por recompensá-lo com a compra, quanto ela própria, que chegara tensa minutos antes. “Realmente fazer compras relaxa” - pensou, ainda sentindo um gosto de papel e tinta na boca. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por visitar meu blog. Deixe aqui seu comentário...