terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Vida de Cão

Menção Honrosa Concurso Guemanise de Contos, 2007



Basta! Não vou! Se preciso for, farei greve de fome. Não mais buscarei o jornal na garagem, não anunciarei visitas, tampouco usarei notícias antigas para depositar meus indesejáveis detritos. Para mim, chega!
- É tão complicado assim passearem a sós? Será que sou obrigado a participar desses eventos bucólicos, coleira ao pescoço, colete atado ao dorso e por vezes até sapatinhos de tricô? Receber palavras confeitadas, interjeições de afetados estranhos: “Que fofo!” “Que mimo!!” Qual o nome?!?” “Quantos anos?!”, “Ohh!!”.. Não teria então razão para essa intolerância que me acomete? Acaso sou ou tenho sangue de um poodle?
Abdico terminantemente a esses passeios. Oferto-os a qualquer sarnento de minha rua e posso apostar que eles saltitariam de alegria, tanto que, quando divulgo minha aversão por esses programas, sou praticamente excomungado. Alguns até rosnam, raivosos, exibindo os caninos. Várias vezes fui atacado e quase perdi a orelha direita, além de insinuações que ouço, como a que tenho alma de vira-latas e deveria levantar as patas aos céus, em vez de ganir melancolicamente pelo tratamento recebido.
Um cão com dono! Essa é a minha sina... Não se assuste, portanto, se me apresento um tanto esquisito. Afinal, qual o cão que não se deleitaria com um bom passeio? Outrora, era o primeiro invadir o carro assim que se abria a porta, agitando a calda freneticamente. Por vezes inclinava-me, embora fosse a pior parte, para receber a coleira, ansioso pela caminhada. Já na rua, não perdia um lance sequer. Precipitava-me na janela, vento nas fuças. Ladrava para os carros vizinhos ou transeuntes que cruzavam meu caminho.
Todavia, esses arroubos se dissiparam. Meus latidos já estão mais roucos. Esganiço apenas. Todos lá em casa comentam essa minha vitiligem e ouvi discutirem sobre uma possível análise, para conter a depressão. O papagaio jura ter escutado sobre uma internação num SPA para animais domésticos! Sinto calafrios só de pensar em me submeter a algumas horas frente a qualquer veterinário. Tento então saltitar, morder algo, cheirar, como se tomado por um “trem doido”, para tapear as impressões sobre meu estado emocional. Tudo, menos uma clínica. Já me são suficientes visitas mensais para exames rotineiros e controle de pragas. Quisera eu que a causa dessa angústia se originasse de uma paixão descabida, talvez pela angelical Helena, a cocker que vi no salão de beleza ou algo do tipo instinto selvagem, como a sensual vira-lata Babalu, responsável por quase todos os jatos d’água investidos contra os machos da minha rua. Meu incômodo, entretanto, seria outro. Até me divertiria com os passeios se não fosse aquela tarde em que enfrentávamos um congestionamento e aquele abusado menino surgiu, imenso, bem na nossa frente, preto e saltitante como a uma pulga.
Fez uma rápida mesura e desferiu no ar duas piruetas, fazendo girar seus gravetos por cima do corpo, retornando ao chão tão perfeito como- argh!- um felino. Lati muito, besuntei o pára-brisas com minha saliva encolerizada. Após a evolução, o aparecidinho fez girar simultaneamente três bolas entre as mãos, sem deixar cair uma sequer! Eu, com muito custo consigo carregar na boca uma daquelas. Depois o engraçadinho, não se dando por rogado, apanhou dois bastões que repousavam no encostamento da rua, ateou fogo nas extremidades de cada um e os fez girar. Que revolta! Como esse mundo animal era injusto, cruel! Estava eu preso naquele carro, impossibilitado de passear se não com coleira, enquanto aquele vadiozinho pulava, dançava, fazia macaquices. Ainda sob as minhas barbas!
Várias vezes fui obrigado a passar por ali, no mesmo semáforo. Não tinha mais forças para latir e maroto já percebera minha preocupação por ele. Contudo, queria me provocar-tenho certeza!-sorrindo e fixando os olhinhos brilhosos em mim. O resto do que o compunha não imitava, porém, brilho dos seus olhos. Seus cabelos apresentavam-se opacos, possivelmente não tratados e escovados, tal e qual os meus. As roupas sujas, puídas. Um sorriso disforme denunciava alguns dentes quebrados, talvez pelos ossos que teve de roer. Qualquer pavão se orgulharia de seus pés quando caso deparasse com aquele par de ossos pretos e cascorentos que o garoto apresentava. No entanto, mantinha um sorriso invejável diante do seu picadeiro. Após as apresentações rápidas, inclinava-se desajeitadamente. Estendia os dedos secos e olhos ávidos para os vidros que ainda mantinham-se abertos. Indignado, eu aumentava a freqüência dos protestos.
- O que deu nele, meu bem? Está tão agitado! Não para de latir... – Ela olha para mim e para o espelho após a pergunta. Ajeita os cabelos. E busca o batom para realçar os lábios.
 - Não sei amor, deve ser o calor... tem moedas na sua bolsa? O garoto hoje se superou. Fez três números em menos de um minuto!
Gargalhadas encheram o veículo. Reforcei os protestos, indignado com a popularidade do rival.maltrapilho.
- Vou procurar... só um minuto...
- Agora não dá mais, o sinal está verde para nós.
- Oh, coitadinho! Outro dia entregamos a ele... E você, Toby. O que há? Anda tão agitado ultimamente... precisamos ver isso. Amanhã mesmo te levo a um psicólogo.
- Não exagere, querida! Não deve ser nada... Talvez ele se sinta sozinho lá em casa. Quem sabe não lhe arrumamos uma companheira? Ficaria até mais barato -olhou para meus olhos e depois para os dela- Viu quanto gastamos com ele só esse mês?
- Começa você – epa! A coisa está esquentando– Foram somente mil e quinhentos reais... Ah, meu bem... Precisei planejar a sua festinha de um ano... O Toby merece, ora!
Afagos, e mais afagos. Não agüento mais isso. É melhor esquecerem essa da terapia, para eu não ser de todo desmascarado. O que sinto é apenas inveja do garoto artista. Queria ser livre, andar nas ruas, fuçar as lixeiras e baldes para encontrar restos do que comer, tal e qual ele faz. Sem coleiras, sem coroas ou guilhotinas. Cobrir com jornal ao me deitar, em vez de depositar sobre ele excrementos de rações vitaminadas, bifinhos e ossinhos nutritivos que recebo sempre. Pêlos ao vento prefiro, a xampus perfumados, escovas, talco. Não mais carregar na boca jornais e sim auxiliá-lo, quando uma de suas três bolinhas cair no seu tablado. Pular em sua barriga, lamber as crostas de sua canela suja, rasgar ainda mais suas roupas com meus afiados dentes. Tenho sim, uma profunda inveja dele!
Planejam agora minha festa de aniversário. Mais essa! O papagaio da vizinha repetiu tudo o que ouviu. Todos os pedigrees do bairro foram convidados, com exceção do Pirata, um Pit Bul pelo qual nutro providencial respeito. Foi mais além a ave mexeriqueira: narrou que arquitetavam o meu enlace com Ághata, a fêmea recuperada de um seqüestro relâmpago. Pagou-se fortuna como recompensa para quem fornecesse pistas dela. Que situação! Planejam minha festa e interferem em minha vida íntima. Sequer cogitam em que penso a respeito.

Se assim o fizessem, gostaria que convidassem aquele menino exibido, que me causou esse desconforto. Sentiria-me vingado. Exibiria a ele meus presentes recebidos, meus amigos, cartão de vacina personalizado, minha família! Empatado das provocações, poderia tornar-me então seu melhor amigo, como um bom cão sem dono.

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